HIKE AND FLY (H&F) é o feliz encontro do parapente com o montanhismo. Essencialmente, subir andando e descer voando. Você pode caminhar até um ponto de decolagem bem conhecido ou explorar lugares de onde ninguém jamais voou antes. Com parapentes cada vez mais leves e seguros, a liberdade e as possibilidades que se abrem para montanhistas são incríveis: você identifica um lugar, verifica as condições, sobe caminhando e desce planando, aproveitando o visual de paredões de rocha, colinas e florestas.
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A modalidade vem ganhando muitos adeptos no Brasil, com encontros de praticantes, competições e iniciativas que divulgam pontos de decolagem, fora das rampas tradicionais de voo. Para entender essa dose de rebeldia, é preciso explicar a diferença entre o voo livre tradicional e o hike and fly. “O cross-country é o voo de distância, em que o piloto busca térmicas para ir o mais longe possível. Todos os campeonatos aqui são baseados em distância: começam quando o piloto está voando, e quando ele põe o pé no chão acaba”, explica Leandro Montoya, montanhista, piloto de parapente e praticante desse esporte. No H&F, o praticante não depende das térmicas, faz uma descida simples e rápida – o chamado “voo prego”. Além disso, no Brasil, o parapente se desenvolveu em paralelo à asa-delta, que por causa do peso e estrutura dependia de carro para chegar às rampas e pistas.
Em 2019, Leandro fez o primeiro hike and fly do Pico da Neblina, o ponto mais alto do Brasil. Escoteiro desde criança, montanhista e escalador, ele descobriu o voo com Christian e John Boettcher, dois irmãos que desenvolveram a modalidade na cidade de Monte Verde, no sul de Minas Gerais. “Eles desmistificaram o voo livre para mim. Eu achava que era algo extremamente difícil”, conta Leandro. “No hike and fly o parapente é uma das etapas de uma aventura, não o único objetivo. Um dos baratos, por exemplo, é encontrar um ponto de decolagem na montanha que você quer subir”, explica o montanhista. Aliás, “rampa”, no caso do H&F, é um ponto de decolagem selvagem, nada parecido com as rampas artificiais
construídas para o voo livre tradicional.
Depois das descidas, Leandro passou a explorar outras possibilidades com os amigos, esticando os voos ao pegar térmicas até o pico seguinte e combinando voo com caminhada. Nessa toada, saíram travessias na Serra da Mantiqueira – cadeia de montanhas entre Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro – no Espírito Santo e até a travessia
Transmantiqueira no modo H&F. Com isso, os pontos de decolagem possíveis conhecidos vão se multiplicando, uma aventura inspirando a outra.
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Em junho de 2021, uma expedição de hike and fly com 20 montanhistas celebrou a “abertura” da rampa oficial mais alta do Brasil, dentro do Parque Nacional de Itatiaia. “Anos atrás, o parque era contra, então é muito simbólica essa mudança. O parapente não causa impacto ambiental. Tanto que o ICMBio fez uma portaria autorizando abrir rampas em todos os parques nacionais”, conta Leandro. No caso do Itatiaia, o ponto de decolagem é selvagem, com mato na altura da cintura. “Mas para quem tem os fundamentos do parapente sedimentados, não é uma decolagem difícil, a inclinação é apropriada, segura.” E o voo é lindo: vê-se as Agulhas Negras e as Prateleiras de cima.
Para o voo do Pico da Neblina, em 2019, foi preciso mais de um ano de preparação. O
ponto mais alto do Brasil fica no coração do Amazonas, em território yanomami, e hoje
ainda está fechado para montanhistas – o projeto Yiaripo, de turismo yanomami, deve
mudar isso em breve. Myka Will, que já tinha uma relação com os yanomami, convidou
Leandro para uma expedição piloto do projeto. Foram quatro dias caminhando na floresta amazônica com um guia e portadores yanomami, partindo de 50 metros de altitude para 2.992 metros. “Quando chegamos lá em cima, veio uma tempestade, com muito vento e chuva forte”, conta o montanhista. Ele já tinha perdido a esperança de voar, mas o dia seguinte amanheceu com um tempo perfeito. “Corri, juntei as coisas na mochila, com medo da janela de voo acabar. Todas as linhas do meu parapente embaraçaram e não
consegui desfazer o nó. Então o Myka ofereceu o parapente dele”, relembra. Leandro
saltou no abismo de quase 3.000 metros, vendo mata se estendendo ao infinito em 360
graus. “Fiz uma volta toda, pousei atrás da montanha. Foi um marco para o hiking and
fly nacional, antes que um francês viesse aqui e se adiantasse”, diverte-se.
A brincadeira tem razão de ser: o berço do esporte é a Europa. É lá, por exemplo, que acontece o evento mais importante da modalidade: o Red Bull X-Alps, lançado em 2003, que ocorre a cada dois anos, passando pela Áustria, Alemanha, Itália, Suíça e França. O brasileiro Raphael Fanti é gerente de desenvolvimento de novos projetos na Salewa, marca italiana de equipamentos outdoor, que apoia diversos atletas de H&F. “Eu fui acompanhar o evento e conheci os atletas. É muito fascinante: os caras fazem 2.000 km em dez dias. As decolagens são de outro mundo, muito perigosas”, diz. Ele lembra que algumas das aventuras mais extremas e impressionantes dos últimos anos têm colocado o paraglider na equação da montanha. Em 2015, Ueli Steck escalou 82 picos alpinos em 62 dias, sem nenhum transporte motorizado, usando apenas bicicleta, subindo a pé entre os acampamentos-base e descendo de parapente dos picos até os vales, sempre que possível.
H&F é acessível
Feitos assim podem nos levar à compreensão de que o H&F é apenas para montanhistas de elite. Muito pelo contrário: O próprio Raphael se tornou praticante da modalidade recentemente, acrescentando a disciplina ao montanhismo, esqui e escalada, que ele já
praticava. “A boa surpresa que tive é que o voo curto do hike and fly é muito mais acessível do que se imagina. São voos extremamente seguros e muito democráticos, na minha opinião”, afirma. Concluir o curso e estar devidamente habilitado é fácil. O problema, para ele, é persistir no esporte, que exige uma certa constância para manter a confiança mental em dia. “Pensar que você pode fazer uma longa caminhada e deixar para tomar água no carro depois de oito minutos de descida muda muito a percepção do que você consegue fazer em um dia na montanha. Será que eu consigo subir 4.000 metros e descer de parapente?”, reflete.
Talvez essa diferença seja o ponto alto do esporte: o voo muitas vezes pode ser só um detalhe de um dia perfeito ao ar livre. “O parapente cross-country possui um elemento de
frustração: você pega o carro para voar grandes distâncias, vai para a montanha e precisa lidar com a incerteza. Mesmo que faça um bom voo, pode voltar frustrado para casa porque queria fazer mais”, afirma Wanderley Junior, o CB, que foi atleta de parapente por 27 anos.
Em 2013, depois de um ano extremamente intenso, com cerca de 20 competições em
dez meses, ele decidiu dar um tempo nas provas e se voltou para outras modalidades de montanha, como o ciclismo e o trekking. Até que começou a trabalhar com uma marca de equipamentos de parapente ultraleves, que abriam a possibilidade de casar caminhada e trail com o parapente. “Essa combinação foi perfeita. Eu excluí o elemento artificial, o carro”, conta, empolgado. Nessa perspectiva, não tem dia ruim: o praticante não depende do voo para ficar feliz. Se o tempo virar, é só descer curtindo a trilha, com o dia de montanha garantido. E se você ainda está com um pé atrás com a possível dificuldade técnica, do alto da experiência de um campeão no cross-country ele reforça o coro de todas as fontes ouvidas nesta matéria e garante: “O voo básico, planado, para baixo, é seguro e fácil de aprender”.
Quando se apaixonou pelo hike and fly, CB morava no Espírito Santo, estado muito
propício para os treinos. “Acabei criando o projeto de travessia do estado, de norte a
sul, somente voando e caminhando. Esse projeto me apresentou a riqueza da modalidade, a autonomia e a relação únicas que estabelecemos com a montanha, de simplicidade e minimalismo”, declara o atleta de aventura. Ele calcula já ter feito mais de cem decolagens em pontos fora de rampas tradicionais de voo livre.
Até o momento, a travessia do Espírito Santo é o projeto de maior envergadura do H&F no Brasil, ainda não repetido. Pelo menos por enquanto, já que outro ávido praticante tem sonhos ambiciosos para essa rota. Lucas Porto é um montanhista do Espírito Santo que, ao descobrir o parapente, se apaixonou à primeira vista. “O voo me tornou um montanhista mais completo. Todo montanhista tinha que experimentar o hike and fly”, fala entusiasmado. Ele descobriu a modalidade aos 24 anos. Já era instrutor de escalada e entrou de cabeça nesse mundo. Hoje divide o tempo entre o trabalho como consultor de segurança em trabalhos em altura e atleta de H&F.
Quando um acidente na decolagem o obrigou a ficar de molho por cem dias, ele usou o tempo livre para planejar, junto com a namorada, Micheli Sossai (os dois também são corredores de montanha), uma prova. “Decidimos fazer a primeira competição em
terras capixabas. Já tinha rolado três outras, como o X-Pedra, em Atibaia, a segunda no
Morro do Araçatuba, no Paraná, e o X-Rio, na capital fluminense”, conta. Foi assim que nasceu o Hike and Fly ES Competition, no Espírito Santo, a primeira competição internacional da modalidade no Brasil, em novembro. Foram 48 competidores, três etapas e dois níveis de dificuldade.
Deu tão certo que ele já está organizando a edição de 2022. “Em três anos acho que a gente já consegue trazer para a prova a travessia do Espírito Santo, do norte ao sul do estado. A ideia é ter um formato inspirado no Red Bull X-Alps, mas no nosso território”,
conta Lucas. O Espírito Santo tem muitos topos de colina que são pastos, perfeitos para decolagem. Esse formato de prova em travessia tem pontos de controle obrigatórios, mas as distâncias percorridas a pé ou voando dependem da estratégia, equipamento e talento de cada piloto para aproveitar tanto as condições atmosféricas quanto as altimétricas. Se depender da vontade das pessoas que têm movido a cena, o céu é o limite.
Como começar no Hike and Fly
Talvez o principal empecilho hoje para uma popularização maior do esporte seja o preço do equipamento. Se nos anos 1980 as primeiras mochilas com vela e selete (cadeirinha)
eram trambolhos volumosos de mais de 25 kg, hoje o equipamento de alta performance tem cerca de 7 kg. Já combinações de selete chegam a impressionantes 2 kg. O equipamento completo de um H&F novo, com perfil adequado para um iniciante, tem custo de cerca de R$ 30 mil – um preço similar ao de uma boa bicicleta de carbono.
Os cursos de voo podem custar entre R$ 4.000 e R$ 7.000, com equipamento da escola. O aluno sai habilitado, com carteirinha nível 1 de iniciante e as certificações obrigatórias
no Brasil e pela Federação Aeronáutica Internacional (FAI). Se o objetivo é o hike
and fly, procure um instrutor que pratique a modalidade: o aprendizado e as orientações na escolha do equipamento já vão ter em vista esse objetivo.