Nesta coluna, procuramos analisar diferentes tipos de estudos clínicos randomizados. Mas algumas pessoas podem começar a tomar um novo suplemento só porque o amigo disse que é bom ou imitar os treinos do norueguês Jakob Ingebrigtsen só porque ele é muito rápido. Mas, de preferência, esperamos sempre por evidências científicas sólidas, vindas de estudos de longo prazo com grandes amostras sintetizadas em meta-análises.
Na verdade, no entanto, essa abordagem inevitavelmente deixa muitas perguntas sem respostas. Boa sorte na tentativa de conduzir um ensaio em que metade dos participantes são randomizados para correr 160 km por semana pelos próximos 20 anos, enquanto a outra metade não faz nenhum exercício.
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Como resultado, muitas de nossas principais informações sobre como otimizar a saúde e melhorar o desempenho vêm de outros tipos de fontes, incluindo o que um novo artigo chama de “experimentos da natureza”. O fisiologista da Mayo Clinic Michael Joyner e seus colegas examinaram alguns dos experimentos naturais mais importantes na história da ciência do exercício, oferecendo uma importante correção ao culto do estudo clínico randomizado.
Joyner e seus colegas começam com uma distinção sutil. “Experimentos da natureza”, em sua terminologia, envolvem pessoas com raras condições genéticas ou adquiridas que lançam nova luz sobre como um determinado sistema fisiológico funciona. “Experimentos naturais”, por outro lado, envolvem a observação de grandes populações que foram expostas a algum tipo de estímulo ambiental ou comportamental.
Experimentos da Natureza
Em 1951, um médico britânico chamado Brian McArdle descreveu um paciente de 30 anos que, durante toda a vida, sofrera de dor e fraqueza muscular após apenas um ou dois minutos de exercício leve. Até mastigar alimentos deixava seus músculos da mandíbula exaustos. McArdle descobriu que o paciente tinha uma condição rara – hoje conhecida como doença de McArdle – que o impedia de quebrar o glicogênio, a forma em que os carboidratos são armazenados no músculo e no fígado, em lactato.
Se você está tentando entender o conceito muito discutido do limiar de lactato, as pessoas que não produzem lactato acabam sendo muito úteis. O conceito inicial de um “limiar anaeróbico”, formulado na década de 1960, era que quando seus músculos não recebem oxigênio suficiente, os níveis de lactato começam a se acumular no sangue, o que (através de algumas etapas intermediárias) faz com que você comece a respirar mais pesado. Mas os pacientes de McArdle também mostraram um aumento acentuado na taxa de respiração além de um certo limiar, mesmo que eles não produzissem lactato, o que obrigou os cientistas a repensar o conceito.
Aquele estudo original de 1982 tinha apenas quatro sujeitos – o tipo de estudo que pessoas como eu poderiam ser tentadas a descartar como sendo pequeno demais para ser significativo. “No entanto”, observou posteriormente o pesquisador principal James Hagberg, “na época esses quatro pacientes representavam 10 por cento do total mundial da população de doença de McArdle descrita na literatura médica”. Essas foram percepções que só foram possíveis por meio de pequenos experimentos da natureza.
O mesmo vale para muitos outros tópicos. Joyner e seus colegas mencionam Eero Mäntyranta, o campeão finlandês de esqui cross-country que tinha uma rara variante genética levando a níveis elevadíssimos de hemoglobina (cuja história eu li pela primeira vez no livro de David Epstein, “The Sports Gene”), bem como diversos estudos com gêmeos idênticos que alteraram nossa compreensão dos tipos de fibras musculares e das ligações entre exercício e composição corporal. Até estudos de atletas de alto nível mundial se enquadram nesta categoria: eles são fenômenos da natureza (e da cultura, é claro) cuja fisiologia excepcional lança nova luz sobre como o corpo funciona. Mas você não pode randomizar as pessoas para se tornarem campeões olímpicos, e não pode recrutar 100 deles para comparecer ao seu laboratório para testes.
Experimentos Naturais
O exemplo paradigmático de um experimento natural de Joyner é o estudo de trabalhadores de transporte de Londres, que é frequentemente citado como o ponto de partida para a pesquisa moderna sobre atividade física e saúde. O epidemiologista britânico Jeremy Morris coletou dados de 31 mil trabalhadores de transporte, comparando dois grupos nominalmente semelhantes: aqueles que dirigiam os ônibus de dois andares de Londres e aqueles que passavam seus dias de trabalho subindo e descendo as escadas dos ônibus para cobrar tarifas. Os resultados, publicados em 1953, mostraram que os cobradores tinham cerca de metade da probabilidade de morrer de doenças cardíacas em comparação com os motoristas, fornecendo alguns dos primeiros dados em grande escala que mostram que o exercício é bom para a saúde.
Outro experimento natural famoso é o estudo de 1956 do pesquisador em nutrição Jean Mayer, da Universidade Harvard, com centenas de trabalhadores de uma fábrica de processamento de juta na Índia. Ele dividiu os trabalhadores em 13 categorias que variavam de funcionários sedentários e supervisores a cortadores, carregadores e ferreiros realizando trabalho físico muito pesado. Em seguida, ele avaliou o peso deles e a ingestão diária de calorias.
Os resultados, que são mostrados abaixo, exigem alguma explicação. As classes de trabalhadores estão organizadas dos mais sedentários (à esquerda) para os mais ativos (à direita). O peso corporal é plotado no eixo esquerdo, a ingestão calórica no eixo direito. Se você olhar apenas para o lado direito do gráfico, tudo faz sentido. Quanto mais físico o trabalho, mais calorias os trabalhadores ingerem, e seus pesos são todos aproximadamente os mesmos, sugerindo que o aumento na ingestão calórica está equilibrando a carga de trabalho aumentada.
Mas no lado esquerdo do gráfico, as coisas ficam estranhas. Os funcionários mais sedentários na verdade comem mais do que qualquer outra pessoa, e como consequência, também pesam mais do que qualquer outra pessoa. Aqui estão os dados:
Uma forma de interpretar esses dados é que seu apetite naturalmente o levará a comer o quanto seu corpo precisa – mas apenas acima de um certo limite de atividade física. Se você é sedentário, uma situação desconhecida na maior parte da história evolutiva humana, o mecanismo de apetite deixa de funcionar corretamente. Isso é consistente com a ideia de que a relação entre exercício e peso corporal não é tanto uma questão de calorias queimadas (você provavelmente está familiarizado com as estatísticas deprimentes sobre quantos km você teria que correr para queimar, digamos, uma tigela de sorvete), mas ajuda a garantir que seu apetite corresponda aos seus gastos.
Claro, a perda de peso e o exercício ainda são tópicos controversos, quase 70 anos após o estudo de juta de Mayer. Suas descobertas não resolveram a questão de uma vez por todas, e isso é verdade para a maioria dos experimentos naturais que Joyner e seus colegas discutem. Mas seu ponto mais amplo é que esses tipos de experimentos não convencionais adicionam ao nosso conhecimento de maneiras que muitas vezes não seriam possíveis de testar de outra forma, e ajudam a gerar hipóteses para experimentos laboratoriais subsequentes.
O valor de considerar diferentes tipos de evidência pode parecer óbvio, mas a motivação para o artigo foi a frustração que Joyner e outros experimentaram ao tentar utilizar plasma convalescente (sangue rico em anticorpos de pacientes recuperados) durante a pandemia de COVID. Eles encontraram barreiras com as diretrizes de tratamento dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês), que não endossavam o seu uso. A disputa girou em torno, em parte, da dependência do NIH em dados de grandes ensaios clínicos versus os dados de “experimentos da natureza” menores em pacientes com condições raras que os impediam de produzir seus próprios anticorpos.
A crítica de Joyner ao “jogo de corda burocrático” do NIH fez com que ele fosse suspenso e ameaçado de demissão pela Mayo Clinic (“O uso de linguagem idiomática tem sido problemático e reflete mal na marca e reputação da Mayo Clinic”, escreveu seu chefe na carta de repreensão). Então, agora ele está apresentando seu caso em uma linguagem mais acadêmica nas páginas da publicação científica Comprehensive Physiology – e é uma mensagem relevante para qualquer pessoa que esteja tentando otimizar seu treinamento ou melhorar sua saúde. Claro, eu ainda acredito em ensaios clínicos. Se você viajar muito pelo caminho dos “experimentos da natureza”, acabará concluindo que, por exemplo, as pulseiras PowerBalance realmente fizeram de Shaquille O’Neal um jogador de basquete melhor. Mas você deve avaliar cada evidência por seus próprios méritos, não apenas pela categoria em que se enquadra. Boa ciência, descobre-se, é uma arte.