Travessia Petê-Terê é uma bela oportunidade para se refazer as primeiras conquistas em rocha no país

Por Verônica Mambrini

OS ROTEIROS DE AVENTURA no Brasil oferecem uma variedade surpreendente de atrações. Dos mais conhecidos e queridos a lugares isolados ainda a serem desbravados, tem para todos os gostos. Mas até rolês clássicos, como a travessia de Petrópolis-Teresópolis, na Serra dos Órgãos (RJ), podem ganhar outra cor dependendo da perspectiva: o destino consolidou-se como um dos berços do montanhismo no país, e é emocionante fazer essa caminhada retraçando os passos das primeiras conquistas de rochas nacionais – algumas consideradas inatingíveis até a década de 1940. E é nesta época do ano, com poucas chuvas e céus claros, o melhor momento para se embrenhar por aqueles picos fluminenses.

O ponto de partida é em Petrópolis, no Parque Nacional da Serra dos Órgãos, que teria ganhado esse nome porque, visto do Rio de Janeiro, lembraria os tubos de um gigantesco órgão. Antigamente o terreno onde fica o parque era uma fazenda, e sua criação, em 1939, teve apoio de muitos montanhistas, que chegaram a fazer uma vaquinha para ajudar a comprar uma parte da terra e doar à União.

A travessia de Petrópolis a Teresópolis geralmente acontece em três dias. No começo, enfrenta-se uma longa subida, de 7 km, com 1.100 metros de ascensão, dividida em dois trechos. O primeiro mirante é a Pedra do Queijo, e um pouco depois chega-se ao Ajax. Calma, não acabou: a partir desse ponto, inicia-se a Isabeloca, subida pesada que, diz a lenda, recebeu esse apelido por causa de uma suposta visita da Princesa Isabel (conhecida como “A Louca”, daí Isabeloca) aos Castelos de Açú, carregada por escravos em uma liteira.

O primeiro pernoite é exatamente na formação Castelos do Açú. Com tempo aberto, dá para avistar o Rio de Janeiro, com os contornos da Pedra do Corcovado, o azul do mar se fundindo com o céu, as curvas da baía da Guanabara e até o traço da ponte Rio-Niterói. Há um mirante perfeito para curtir o pôr do sol, com um cruzeiro em homenagem a montanhistas que morreram em uma tempestade elétrica, em 1992. No lugar do escuro profundo que os primeiros conquistadores encaravam, enquanto cai a noite vão surgindo lentamente as luzes de Petrópolis de um lado, e do Rio e de Niterói do outro.

O segundo dia é repleto de sobe-e-desce, por uma linha de vales e cumes. São rampões de rocha e vegetação de altitude, passando pelo Morro do Marco, de onde se vê o cartão-postal da travessia – o conjunto de Pedra do Sino, Garrafão e Dedo de Deus no segundo plano, cercados de vários cumes e pontas menores. São justamente essas formações o palco de algumas das escaladas mais clássicas do Brasil. Por essa razão o Rio de Janeiro foi um dos estados a entrar para o Desafio Vias Históricas (desafioviashistoricas.com.br), criado em 2016 por amigos que queriam homenagear a trajetória do montanhismo brasileiro. “No século 19, no Rio de Janeiro, já haviam sido realizadas as ascensões da Pedra da Gávea (1828), do Pão de Açúcar (1817) e, na região da Serra dos Órgãos, a da Pedra do Sino (1841), entre outras. Mas foi a conquista do Dedo de Deus, em 1912, que marcou o início do montanhismo no Brasil”, conta Michelle Dutra, uma das organizadoras do desafio. “Daí em diante, muitas outras conquistas ocorreram na região, que passou a atrair um grande número de escaladores.”

Nesta edição do Desafio Vias Históricas, são 39 escaladas tradicionais em três estados, incluindo Paraná e São Paulo. Basta o participante completar as escaladas, anotando-as no “passaporte” do projeto. No final da temporada, os escaladores com maior pontuação no ranking geral vencem. Há vias de dificuldades bem variadas, e não é preciso completar todas para vencer ou participar. “A partir da trilha Petro-Terê, dá para ver o Dedo de Deus, mas não diretamente a via Leste/Maria Cebola, que está no nosso desafio”, conta Michelle. Qualquer um pode participar se inscrevendo no site do desafio.

A CONQUISTA do Dedo de Deus é uma das primeiras tretas do montanhismo nacional, com gostinho de revanche. Em 1912, escaladores alemães não conseguiram subi-lo e espalharam que a empreitada era impossível. Só para provar que os gringos estavam errados, os irmãos brasileiros Américo, Acácio e Alexandre de Oliveira, acompanhados pelo ferreiro José Teixeira e pelo caçador Raul Carneiro, fizeram uma expedição de quatro dias e domaram a montanha. Santo de casa às vezes faz milagre: foram fundamentais as habilidades de mateiro de Raul, e os grampos produzidos artesanalmente por José, que inventou esse tipo de proteção – os alemães só iriam desenvolver uma proteção similar cerca de 30 anos depois. Aliás, alguns dos 22 grampos de José ainda estão lá e são usados por quem repete a via. Só em 1936 outras montanhas do complexo foram conquistadas: o Segundo (seu vizinho) e o Terceiro (mindinho) Dedinhos, pelo casal William e Sylvia Bendy.

Foi nesse pedaço de Brasil que o aventureiro André Ilha, que já abriu quase 700 vias de escalada pelo Brasil, começou sua relação com as montanhas. Quando tinha 12 anos, seus pais se mudaram do Rio para Petrópolis. Jovem meio revoltado, só sossegou quando foi parar em um clube de montanhismo, depois de ver as fotos que um colega levou para a sala de aula, em preto e branco, de uma escalada pioneira do Dedo de Deus, em Teresópolis – onde, por sinal, ele acabou anos depois conquistando cinco diferentes vias de escalada, uma com proteções fixas, em 1977, e outras quatro em equipamentos móveis (que antes nem existiam no Brasil), em 1990. André conta a história no recém-lançado livro Por um Triz (editora Valentina), em que também relata dezenas de perrengues dos quais se safou por muito pouco.

“Não há como não se render à disposição e ao espírito de aventura de nossos mateiros, que foram os primeiros conquistadores. A rede de transportes e de comunicação era precaríssima, e os equipamentos, rudimentares. É de admirar o espírito explorador de quem subiu essas montanhas pela primeira vez, quando não existia sequer estrada. Eles iam com botas precárias, corda de sisal , dois ou três mosquetões de ferro e só”, diz André (que, apesar do currículo impressionante de explorador, passou por tanto perrengue nas tentativas de subir a Coroa do Frade que nunca fez esse cume). Diz a lenda que os montanhistas subiam no trem que atravessava a serra e saltavam dele em movimento para chegar à região.

A dica de André para curtir ainda mais um roteiro como esse, hoje bastante acessível, é fazê-lo já de olho no que pode ser explorado além do lugar comum. “A travessia é um eixo: se você for até um ponto e sair um pouco para os lados, tem possibilidades de passeios lindos que praticamente ninguém conhece”, afirma. E nem é preciso ir tão longe: levar uma carta topográfica e identificar os cumes, formações rochosas e vales menos óbvios já é diversão garantida.

Alguns desafios da travessia são divertidos por si só, como os trechos mais técnicos do segundo dia. Há rampões de aderência bastante inclinados, difíceis de descer se a pedra estiver úmida; o Elevador, via-ferrata que exige um pouco de atenção e equilíbrio; o dorso da Baleia (de onde dá para ver a maior parede de escalada do Brasil, na Pedra do Sino, com as vias Franco-Brasileira e Terra de Gigantes); o Mergulho, um lance de desescalada de cerca de 3 metros, em que é preciso fazer oposição com o corpo para chegar ao chão; e o Cavalinho, bloco de rocha em que você deve fazer um jogo de corpo com pé alto, como se estivesse montando um cavalo mesmo. A emoção fica por conta da exposição: do lado esquerdo, tem-se um abismo de centenas de metros. O prêmio depois desse dia cansativo é o pôr-do-sol na Pedra do Sino, se pondo atrás dos Castelos de Açú. A vista noturna do cume do Sino, com as luzes do Rio de Janeiro, também é espetacular. Se a escolha for pelo nascer do sol, ele chega por detrás da cadeia do Parque Estadual dos Três Picos, de onde se pode admirar o trio inconfundível do Pico Maior, Pico Menor e Capacete.

O último dia é passeio, para soltar as pernas, dominado por uma longa descida de 11 km, com alguns mirantes para Teresópolis. Um bom momento para pensar em qual vai ser sua próxima travessia.

* A jornalista Verônica Mambrini fez a trilha Petrópolis-Teresópolis a convite da agência Pisa Trekking.

(Matéria publicada na revista Go Outside de agosto/ 2016 – nº 132)