Sexismo no surf: dropando a Rainha em mar revolto

Por Alexandra Marques, da Hardcore

sexismo no surf
A big rider havaiana Emi Erickson

– “Saia daí, você não vai conseguir pegar nenhuma onda aí atrás”, me diz um homem no outside.

Estou sentada em meu longboard, em dia de marolas com um pouco de vento, mas dá pra encontrar bastante diversão nesse meio metrão mexido. Não estou nem “muito lá atrás” esperando a da série, nem muito embaixo, aonde ficaria se estivesse de pranchinha. Uma onda se aproxima e deixo ela passar, esperando pela próxima. Esse mesmo homem grita:

– “Vai, vai, vai!!!”

Ignoro-o completamente e sequer olho para sua face. Escutar um conselho não solicitado nesse caso em que é absolutamente inútil [detalho isso mais a frente]; esta afronta; intromissão… tão fora de órbita, no templo oceano, em um momento sagrado, tentando dar um relax, é tão deselegante e me deixa tão desconcertada, que naquele momento minha ação mais natural é fingir que ele não existe.

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Não me considero radical. Não coloco tudo na “mesma caixa”: às vezes, um conselho não solicitado pode literalmente lhe salvar a vida dentro da água. Ou salvar a vida de outra pessoa, sobretudo se você apresentar uma conduta “perigosa” no outside, tanto para sua integridade quanto à de qualquer ser presente. Enfim, um surfista experiente sabe que segurança e autonomia são atributos essenciais à prática dessa arte havaiana.

Mas não. Aquele homem não estava me instruindo a partir de ímpeto nobre, no melhor estilo guardião, tipo Mark Cunningham em Pipeline, zelando pela vida dos seus irmãos e irmãs oceânicos [inclusive, acho que essa conduta deve ser mais praticada por todo surfista e pessoas que frequentam o mar]. Não era sobre isso. Eu podia sentir que não era, embora não conseguisse provar materialmente.

Claramente se tratava de mais um episódio sexista na minha vida de surfista, de mulher. Desde os 13 anos de idade, hoje com 33 anos, foram tantos que perdi a conta e que faço questão de esquecer e simplesmente deixar pra lá porque muitas vezes prefiro focar minha energia em situações positivas e na minha evolução.

Enfim, mesmo assim, sexismo é dos assuntos que ainda causam polêmica na sociedade, quando na verdade deveríamos apenas ter mais aulas de história e entender que falar sobre sexismo não precisa soar como grito de guerra.

Espero que chegue o dia em que tratemos de assuntos como esse com respeito e livre expressão.

 

Stephanie Gilmore: um pouco de poesia em forma de surf passando por aqui…

Porque, bora lá, se você é mulher e surfista, chances altíssimas de já ter passado por situações de discriminação e preconceito no surf pura e simplesmente por ser mulher.

Ou, até mesmo, como já aconteceu comigo, ter proferido algum comentário sexista por ter isso internalizado dentro de você até que você ganhasse consciência disso a ponto de não reproduzir tal comportamento. Evoluindo…

Se você é homem, as chances são muito grandes de você já ter dito algum comentário ou teve alguma atitude sexista, tendo consciência disso ou não.

Porque, afinal, nascer mulher em uma sociedade alicerçada nos valores patriarcais, que há milênios atrás, suprimiu o matriarcado, automaticamente coloca nós, mulheres, desde o nascimento, o fardo da conquista do próprio respeito e espaço, simplesmente porque não pertencemos ao gênero histórico-dominante… Coisa que Simone de Beauvoir, após décadas de estudo e observação, e o livro “O Segundo Sexo” publicado, sintetizou com a complexa e profunda “Não nasce mulher, torna-se mulher”.

E é crucial que homens e mulheres compreendam isso para que vivamos de forma mais harmônica e justa.

Um pouquinho de vivência e você percebe como muitos surfistas têm e nutrem entre si atitudes misóginas e preconceituosas. A dominância masculina é realidade em muitos dos “altos” cargos – os diretores; os editores; os diretores; os juízes; são homens. Não vou nem entrar em detalhes sobre a objetificação da mulher na publicidade no surf [e de maneira geral]- coisa muito forte nos anos 1990 e 2000, presente até mesmo nos dias de hoje. Fica pra outro texto.

A questão é que falar de sexismo é necessário, e sobram exemplos a partir dos quais podemos aprender e evoluir. Basta estar aberta à observar.


Os desafios de Maya  

Um exemplo recente da questão sexista é o recém-lançado documentário de de Maya Gabeira, dirigido por Stephanie Jones, que capta o machismo arraigado no esporte, mesmo daqueles que afirmam apoiar Gabeira.

Maya Gabeira em Nazaré.

 

No doc Maya diz ter sido forte o suficiente para suportar os desafios de seu esporte e seguir o seu sonho de se tornar surfista profissional de ondas grandes. Conforme ela contou, os desafios não são apenas físicos, mas emocionais, pois ela é recebida com dúvida e escárnio por muitos surfistas do sexo masculino.

Foram muitas as situações sexistas das quais Maya foi alvo e uma das mais marcantes foi em 2013, depois que ela quase morreu em Nazaré. Gabeira persistiu após a experiência de quase morte, passando por extensas cirurgias nas costas e terapia para retornar aos treinos.

No meio disso, viu o waterman Laird Hamilton opinar na TV que um acidente desses era inevitável, pois ela simplesmente não tinha habilidade necessária para surfar as ondas que surfava.


Evolução, auto-análise e mudança

Mas alto lá: se você é uma pessoa atenta, percebeu que as coisas vem mudando para as mulheres rumo igualdade.

Alguns exemplos disso são a premiação nivelada pela Liga Mundial de Surf desde 2019; as mulheres na etapa de Pipeline do circuito mundial; a volta das surfistas para a etapa de Teahupo’o; o fato de a WSL ter chamado a ex-surfista profissional Jessi Miley-Dyer para ser comissionária e o circuito mundial de longboard agora liderado por dupla feminina.

Enfim, historicamente a caminhada se endireita para reparação histórica. Inclusive, frutos dessa mudança já nascem organicamente: basta ver jovens como Sierra Kerr, Bela Nalu, Erin Brooks e Sky Brown, naturalmente desmontando crenças limitantes e redefinindo o que muitos achavam ser inalcançável, em termos de técnica e performance, para as mulheres, no surf e no skate.

A questão é que tanto eu, quanto você que chegou até aqui, precisamos sair da zona de conforto e agir para resolver os problemas que temos como sociedade.

“A segurança é o maior inimigo do homem”, disse Willian, o Shakespeare.

A partir dessa premissa, um bom começo talvez seja se conscientizar sobre a definição de sexismo:

Sexismo é o preconceito ou discriminação com base no sexo ou gênero de uma pessoa. Relacionado à ampla gama de comportamentos prejudiciais, desde atos de violência a comentários sutis que reforçam estereótipos. Todas manifestações de sexismo são prejudiciais e têm impacto negativo na sociedade. As mulheres são as mais afetadas, mas o sexismo também afeta pessoas de outros gêneros marginalizados. Menos diretamente, também prejudica os homens, explica o Dr. Jairo Bouer.

Várias são as maneiras de classificar o sexismo: hostil, ambivalente, benevolente,
institucional, interpessoal e internalizado, são as elencadas no Inventário do Sexismo Ambivalente, estrutura que os pesquisadores usam para compreender e medir os efeitos desse preconceito.

Se você pescar a definição de cada uma, possivelmente encontrará alguma identificação com algum desses modus operandis sexistas.

O que não é para virar motivo para apontar dedos; pelo contrário, indício deste bom prenúncio: ao tomar consciência de suas atitudes, você pode ocupar um melhor lugar de ação e assim contribuir para uma sociedade mais elevada e edificada. A partir daí, o line up fica mais leve.

Fontes:
Jayne Leonard (psicoterapeuta) – MedicalNewsToday
Dr. Jairo Bouer

Especial Dia das Mulheres