O misterioso mundo dos keirins, os samurais da bike

Por Don Cuerdon, da Outside USA

Keirins
Foto: Shutterstock.

As muitas formas e subculturas que o mundo da bike pode adotar são surpreendentes – e às vezes incompreensíveis. Uma das menos conhecidas é a modalidade japonesa do keirin, que existe desde 1948. Nesse mundo misterioso e peculiar, os atletas vivem praticamente isolados quando não estão competindo, e os espectadores apostam neles como se fossem cavalos, disputando grandes recompensas em dinheiro. Provas keirins acontecem em 47 velódromos ao redor do Japão, e estima-se que até 14 bilhões de ienes, a moeda do país, circulem anualmente pelo sistema de apostas.

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Os keirins intrigaram o fotógrafo norte-americano Narayan Mahon quando ele era adolescente, um jovem fanático por ciclismo folheando antigos exemplares da revista VeloNews, onde topou com fotos do esporte. Cerca de 20 anos depois, ao programar uma viagem para o Japão e fascinado pelos paralelos que estabelecera entre o estilo de vida e o treinamento dos ciclistas de keirin e dos antigos samurais, Narayan decidiu que tentaria uma sessão de fotos com esses atletas.

“As provas keirins são totalmente diferentes de qualquer outro tipo de evento de ciclismo que eu já presenciara antes”, diz ele. “Os ciclistas vivem absurdamente imersos nesse universo, composto de regras muito rígidas. Mas o clima é de profundo respeito de quem ali ingressa.”

Nesta reportagem, as fotografias de Narayan acompanham um texto originalmente publicado pela revista Outside. Em 1992, Don Cuerdon se tornou o primeiro jornalista norte-americano a ser aceito em uma escola de keirin – o programa de treinamento que todos os competidores precisam superar antes de poderem participar das competições.

O misterioso mundo dos keirins, os samurais da bike – Por Don Cuerdon

SHAUN WALLACE, que havia sido medalha de prata no campeonato mundial de perseguição individual, está seis metros acima de mim, enquanto aceleramos empoleirados sobre os 35 graus de inclinação da pista de um velódromo encravado no topo de uma montanha japonesa. Shaun solta um grito horripilante ao acelerar, depois despenca em direção à minha roda dianteira, escapando, talvez, por alguns centímetros (não saberia precisar porque, naquele momento, fechei os olhos aterrorizado).

Para piorar a minha angústia, o ex-ciclista profissional alemão Michael Huebner, que havia sido campeão mundial de sprint, apareceu do nada na minha esquerda – com todos os seus pouco mais de 100 kg – e também despenca sobre minha roda dianteira. Meio batimento cardíaco mais tarde, a lenda norte-americana de sprint (e medalha de prata olímpica) Nelson Vail disparou como um foguete da minha roda traseira em direção aos colegas, que escapavam rapidamente.

Todo esse episódio durou uns poucos segundos. Mas para mim o tempo se alongou em um estado de consciência especialmente reservado aos esportistas e àquelas pessoas convencidas de que estão a ponto de morrer. Não sei ao certo em que categoria me inserir. Isto que estou testemunhando de perto é um esporte, mas morro de medo. O trio dinâmico de ciclistas me deixa para trás, depois dispara doses extras de potência nos ataques finais até a linha de chegada. Não consigo saber quem vence pois minha visão está embaçada pelos flashes luminosos decorrentes dos meus batimentos cardíacos bem acima do limite. Posso sentir o gosto dos meus pulmões.

Estamos apenas em mais um aquecimento na Nihon Keirin Gekko (Escola Japonesa de Keirin), com oito dos melhores ciclistas de pista do mundo e um jornalista norte-americano passando dos seus limites — eu.

O KEIRIN É UM ESPORTE de apostas que parece uma corrida de cavalos humana. O primeiro evento da modalidade foi realizado em uma pista de cavalos em 1948, aqui no Japão. A modalidade se expandiu por 47 velódromos ao redor do país e ocupa a terceira posição na receita bruta de apostas japonesas, atrás apenas das corridas de cavalos e de lanchas.

O competidor da elite Koichi Nakano trouxe respeito internacional ao keirin japonês ao vencer dez campeonatos mundiais de sprint consecutivamente durante os anos de 1970 e 1980. Talvez graças a ele, uma forma de keirin (usando uma moto como pacer em vez de um ciclista) foi introduzida no Mundial de 1980. No ano seguinte, vários atletas não japoneses foram convidados para o que acabou sendo chamado de International Exchange Race. Era apenas uma demonstração, mas foi bem-sucedida o suficiente para se tornar um evento regular organizado periodicamente. O International Keirin de 1990 atraiu quase U$ 14 milhões em apostas, com o australiano Stephen Pate vencendo 16 corridas e embolsando mais de U$ 100 mil.

Keirin é o nome da competição, mas dinheiro é o que move esse jogo. É por isso que corredores como Nelson Vails, Michael Huebner, Shaun Wallace, entre outros, estão aqui. Mesmo que eles fiquem em último lugar em todas as competições, recebem cerca de U$ 30 mil por dois meses de trabalho. E, como esses caras certamente não vão chegar em último, então o mais provável é que ganhem de U$ 50 mil a U$ 80 mil cada um.

A JAPAN KEIRIN SCHOOL fica no topo de uma atemorizante e íngreme montanha nos arredores de Shuzenji, cidade que está duas horas ao sul de Tóquio de trem-bala. Uma estreita rua ziguezagueia várias vezes até chegar a um portão com guarita e guarda. Do outro lado da cerca, há dormitórios, salas de aula, uma academia, um edifício repleto de rolos para treinos invernais, dois tortuosos circuitos de asfaltos, um laboratório de exames, uma oficina de bikes e três velódromos de alta qualidade que podem ser usados em todas as situações climáticas.

Há aproximadamente 90 estudantes matriculados no programa nacional de cada vez. A idade deles varia de 18 a 23 anos. Depois de dez meses de doutrinação e treinamento, esses atletas estarão qualificados para participar do circuito. Os melhores ciclistas podem chegar a ganhar US$ 700 mil por ano. Embora seja pouco em comparação aos salários dos atletas de esportes profissionais mais famosos, como o futebol, é uma soma alta para o ciclismo – e a maioria dos atletas que se formam nessa escola pode competir durante 20 anos ou mais.

Nosso dia começa na sala de aula. O instrutor fala em japonês, que é traduzido simultaneamente para inglês, francês, alemão e italiano. O resultado é uma balbúrdia de Torre de Babel, mas tudo bem porque a aula não passa de um monte de bobagens pedantes sobre a organização dos keirins e a grana desembolsada para melhorar hospitais, escolas e estradas.

Nelson, ou Nelly, como ele é conhecido, está sentado ao meu lado me contando a história real, ao mesmo tempo que aponta para sua apostila para parecer que estamos debatendo sobre as nuances da distribuição dos gastos nesse esporte.

“Mandei bem no meu primeiro ano, mas tive um desempenho horrível no ano passado, então estou aqui tipo em caráter experimental de teste”, diz. “Acho que eles só pediram para eu voltar porque perdi o bronze no Mundial por uma roda de distância e porque atuei com profissionalismo no ano passado, apesar de não ter ido bem. Preciso melhorar. Cerca de 60% da minha renda anual vem daqui.”

Enquanto isso, o inglês Shaun Wallace está acumulando pontos na categoria respeito ao grifar sem parar trechos da sua apostila. Este é o primeiro ano de Shaun nas competições keirins, e aos 30 anos de idade ele tem potencial para ganhar perto de US$ 500 mil por ano. E tem tudo para ser convidado a vir para cá novamente.

O belga Michel Vaarten, de 35 anos, é o mais velho dos estrangeiros. Este é seu 11º ano no circuito, com 56 vitórias ao longo da carreira. Michel deve se sentir intensamente entediado, suportando a mesma aula todos os anos durante uma década, mas não aparenta.

Não há conflitos de personalidade no nosso seleto grupo internacional, o que é bom, considerando que aqueles que forem aprovados ficarão isolados durante quatro dias de cada uma das próximas sete semanas uma vez que comecem as competições. As autoridades keirins acreditam que isso evita que “elementos do mal” poluam as mentes dos competidores com pensamentos sobre possíveis problemas nas corridas (por alguma razão, os outros três dias da semana parecem não contar…).

O instrutor finalmente acaba de falar e começa um vídeo. Não há espaço para fraudes. Todas as pistas de keirin têm câmeras de vídeo que gravam cada centímetro das disputas caso haja necessidade de analisar possíveis infrações. Na sala de aula, essas fitas são valiosas ferramentas de aprendizado. O keirin tem reputação de ser um esporte duro – com choques de cabeça, cotoveladas e ombradas na briga pelas melhores posições atrás do pacer.

“Isto aqui, por exemplo – advertência grave”, diz o professor, apontando para um ciclista forçando outro contra as laterais da pista.

Uma “advertência grave” custará ao atleta um terço do seu prêmio em dinheiro naquela corrida, enquanto uma “advertência simples” custa 1/15 da sua gratificação. Causar uma queda ou fazer alguma outra coisa que interfira significativamente no resultado ocasiona desqualificação e perda do prêmio. A nuance tática é correr o risco de receber uma “advertência”, e não uma ofensa mais séria para conseguir vencer, porque 14/15 de um 1º lugar ainda é melhor que 100% de uma 3º colocação. O movimento certo pode significar outros U$ 1.000 no pagamento de um ciclista por três dias de competição. A estratégia errada pode significar perder o dobro.

TEMOS UMA HORA para digerir o almoço antes de irmos para a pista. Retas quase planas se unem graciosamente com curvas inclinadas cobertas por um revestimento que lembra o tartan das pistas de corrida para todas as condições climáticas. Esse material proporciona tração suficiente para que os trechos inclinados sejam pedalados mesmo debaixo de chuva, como no dia em que estamos aqui.

Em um edifício ao lado da pista aquecido com querosene, nós nos amontoamos fugindo do frio e da umidade. Preciso de algumas voltas para confiar o suficiente na superfície para pedalar. Mas imagino que se um gigante como Michael Huebner não escorrega, eu também não escorregarei.

Estou pedalando uma bike emprestada de pista Nagawa tamanho 57 de aço, com pedivela de 165 cm e firma-pés diminutos que apertam meus dedões para que eu consiga enfiar meus tênis tamanho 42. Não é o melhor fit para uma pessoa de 1,82 metro e 90 kg, mas jornalistas não podem ser muito exigentes.

Depois de 15 minutos girando ao redor do velódromo, dois motociclistas se juntam a nós. Dentro de dois minutos, todos estão pedalando em pacelines atrás das motos.

Eu tinha passado um tempo limitado em velódromos e pedalando em bikes fixas e sem freios. Quando a paceline passa por baixo de mim, despenco pelo declive da curva apavorado com quão rápido me aproximo do último ciclista. Aplico um pouco de contrapressão sobre os pedais para frear e escapo da roda iminente por folgados três metros. Giro despreocupadamente pelo interior da pista como se tivesse planejado fazer aquilo, depois tento pegar a traseira da próxima paceline quando ela passa acima de mim a quase 50 km/h. Sem chance.

Finalmente consigo alcançar o grupo e pedalo várias voltas, comendo a esteira de água da chuva que jorra da roda do último ciclista. A velocidade aumenta aos poucos até a motocicleta sair da frente, então estamos de volta ao começo deste texto, quando as portas do inferno se abrem e minha bermuda é sugada até meu intestino. E aquilo era só o aquecimento – nenhum contato, nenhum prêmio. De volta ao interior do edifício, conferimos a lista das saídas das corridas de treino daquele dia. Sem surpresas, meu nome não aparece.

O keirin japonês é impressionantemente formal. Há nove competidores em uma bateria. Cada um com um número, além da jersey e capa de capacete correspondentes. Tradicionalmente, os números 1, 2 e 3 são branco, preto e vermelho, respectivamente, reservados para os favoritos. Os outros números e combinações de cores dizem aos espectadores quem são os novos corredores e as apostas mais arriscadas.

Os nove ciclistas se reúnem por ordem numérica fora do edifício de aquecimento. Eles reverenciam o instrutor, sobem nas suas bikes e rodam a exatamente duas bicicletas de distância um do outro. Esse ritual é chamado de “apresentação”, e seu propósito é permitir que os apostadores avaliem suas escolhas.

Uma fileira de suportes para bike é colocada na pista, e os corredores inserem suas rodas traseiras nela. Então fazem reverências uns aos outros, montam nas suas bicicletas e mantêm os pés apoiados nos pedais. Trinta metros à frente, um único suporte de saída segura o pacer, um ciclista vestido com uma jersey roxa sem número e um capacete com listas laranjas. Quando o rifle eletrônico dispara, as bikes são liberadas, e o pacer toma a dianteira. Dentro de uma volta, os corredores estão na roda do pacer, disputando posições. A corrida tem 2.000 metros de extensão, ou cinco voltas em uma pista de 400 metros. Durante a metade da distância, os corredores devem permanecer atrás do pacer. O objetivo é manter uma boa posição até as 2,5 voltas terminarem, sem se cansar demais antes do sprint.

Os especialistas identificam três tipos de ciclistas keirins, ou de estilos de pedalada. O primeiro, e o mais reverenciado, é o senko, um ciclista forte o suficiente para liderar toda a última volta e vencer. O segundo é o makuri, que se movimenta poderosamente durante as últimas curvas para vencer. E o terceiro é o oikomi, que surpreende com um impulso rápido na última reta, ultrapassando o líder apenas na linha de chegada. As táticas dos keirins são tão sutis quanto um jardim de pedras japonês para olhos inexperientes, mas são emoção garantida para os espectadores mais assíduos.

Quando o sino tocou, Michael Huebner se move para a frente do grupo. Aparecendo na última curva, ele dispara pelo lado direito e conquista a vitória ao estilo makuri. Um vídeo reproduzindo cada uma das corridas é analisado pelos instrutores. Quem poderia dizer aos melhores ciclistas de pista do mundo como pedalar melhor no keirin? Katsuaki Matsumoto, o maior vencedor de provas de keirin da história — com mais de 1.300 vitórias, ou cerca de 500 a mais que Koichi Nakano até agora. Matsumoto-san é o Eddy Merckx do keirin.

“Hubner-san!”, grita o diminuto treinador. Por meio de um intérprete, ele repreende o alemão por ter permitido um momento em que outros competidores poderiam ganhar. É aqui que o keirin se choca com o ciclismo competitivo. Vencer não é suficiente para agradar a Matsumoto-san. Você tem que mostrar suas melhores habilidades.

NOSSA TEMPORADA de aprendizado acaba com três tipos de provas finais, incluindo um exame escrito, uma entrevista e um teste de velocidade. O primeiro é tão metido quanto as aulas: qual é o nome da organização que supervisiona e controla todas as competições keirins? (E as respostas são de múltipla escolha.) A entrevista é uma versão verbal da prova escrita. Até aqui, estou passando com distinção. Mas o teste de velocidade é outra história. Primeiro 1 km com saída parada – apelidado de killermeter (ou quilômetro matador) pelos que o pedalam. O tempo máximo para fazê-lo é de 1min20. Shaun é elogiado com um tempo de 1min06. Ninguém falha. O próximo teste são 200 metros com largada lançada. O tempo para se qualificar é de 13,3 segundos. Michael percorre a distância em 11. Ninguém demora mais de 12.

Estou quase dando a volta quando Matsumoto-san gesticula para mim do outro lado da pista. Saio e ele coloca minha bike dentro do porta-malas do seu carro, depois dirige por uma rua estreita e estaciona.

A estrada asfaltada possui 120 metros planos, depois se inclina abruptamente em um declive de 35 graus que dura 80 metros e acaba em um final plano e sem saída. Matsumoto-san tira minha bicicleta do porta-malas, me dá meu capacete, me diz que ciclistas japoneses faziam aquilo dez vezes em duas horas e acaba com um: “Tente você”.

Quando uma lenda do ciclismo oferece uma lição especialmente para você, não há espaço para perguntas. Você simplesmente aceita o desafio e pedala. Dei algumas voltas no trecho plano para soltar as pernas, depois acelerei na reta. Meus pulmões começaram a queimar depois de 100 metros, mas, antes de que eu pudesse ajustar minha velocidade, a parede se ergueu sobre mim. Vinte metros de pé e encaro a opção de girar minha relação 53×19 com esses pequenos pedivelas de 165 cm ou cair em um deslize nada delicado até a base da subida. Aperto os pedais.

Você pode pensar que há algum tipo de iluminação nos dez metros finais dessa selvageria. Mas se há, não o senti. Quase engulo minha língua tentando recuperar o fôlego no topo da subida. Quando minha visão desembaça, vejo Matsumoto-san gesticulando para eu voltar pedalando. Daqui, a subida parece a vista de uma janela do terceiro andar. Contorno a rua sem saída, pensando no que seria de mim. Quando finalmente me lanço paredão abaixo, sei que estou cometendo um grave erro. Pressionar os pedais para trás não os frearia. A bike não tem freio.

A iluminação é revelada durante a descida. Não tenho outra opção além de relaxar e deixar que meus pés girem o mais rápido que jamais pensei que eles pudessem fazer. Relaxar e manter o guidão reto. Ficar calmo ou virar um giz de cera humano de tanto pavor. Os 80 metros são uma eternidade.

Lá embaixo, desço da minha bike e tento disfarçar o tremor das minhas pernas. “Muito bom”, diz Matsumoto-san. Não vou ser aprovado pela escola de keirin. Mas essa lição permanecerá sempre comigo.







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