No último mês de maio, o fotógrafo e montanhista brasileiro Gabriel Tarso esteve pela terceira vez no topo do Everest (8.848m), a montanha mais alta do Planeta, mas por pouco não voltou para contar a história.
Durante seu retorno ao Acampamento 4, o último e mais alto da montanha, Tarso ficou sem oxigênio suplementar e chegou à exaustão na chamada “Zona da Morte”, a mais de 8.000 metros de altitude.
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Ao se perder do seu grupo, o brasileiro se viu sozinho, sem forças para continuar a descida. E sua agonia não foi percebida por outros alpinistas, já que ninguém parou para prestar ajuda.
Em um grande sacrifício, Tarso conseguiu achar algumas garrafas de oxigênio usadas pelo caminho e conseguiu retornar se arrastando ao Acampamento 4, onde recebeu ajuda, sendo posteriormente resgatado de helicóptero no Acampamento 2.
Pouco tempo depois, o brasileiro testemunhou de perto um drama muito parecido com o seu, só que desta vez no K2 (8.614m), a segunda montanha mais alta do mundo – considerada por muitos a mais fatal e perigosa de todas.
O que aconteceu no K2 no dia 27 de julho de 2023
Por volta das 2h30 da manhã do dia 27 de julho, uma longa fila de alpinistas avançava lentamente acima dos 8.000 metros no K2.
A equipe dos novos recordistas mundiais Kristin Harila e Tenjen Sherpa Lama, que contava com Gabriel Tarso como cinegrafista, era uma das mais próximas do topo. Pouco acima deles estava o carregador paquistanês Mohammad Hassan, de apenas 27 anos.
Hassan, um pai de três filhos que trabalhava para a expedição Lela Peak, foi avistado momentos depois por Gabriel e sua equipe já bastante ferido. Ele estava pendurado nas cordas de cabeça para baixo, na temida região conhecida como Bottleneck, a apenas 400 metros do topo.
De acordo com Tarso, ninguém sabe exatamente o que fez Hassan cair, uma avalanche ou a falta de oxigênio. Relatos também dizem que ele não usava downsuit, oxigênio suplementar e estava sem luvas, de madrugada a 8.200 metros de altitude, condições bastante precárias para o ataque ao cume no K2.
Gravemente ferido, com a perna quebrada e em estado hipotérmico, enquanto dezenas de outros alpinistas “pediam licença” e passavam por ele em direção ao topo, apenas uma pessoa parou para socorrê-lo, o mantendo consciente.
Esse socorrista era o próprio Tarso, que em decisão com a sua equipe decidiu arriscar a própria vida – chegando a ficar mais uma vez horas sem oxigênio acima dos 8.000 metros – para dar um pouco de conforto e dignidade ao montanhista paquistanês antes que ele morresse devido aos ferimentos.
Isso foi revelado no relato publicado pela norueguesa Kristin Harila em suas redes sociais nesta quinta-feira (10).
Leia abaixo na íntegra:
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“Esta é uma declaração difícil de escrever. Como muitas pessoas já sabem, Muhammed Hassan faleceu no K2, ele tinha apenas 27 anos, deixando para trás sua esposa, três filhos pequenos e sua mãe. A razão pela qual ainda não comentei isso antes é pelo respeito à sua família. Eu queria perguntar se estava ‘ok’ escrever sobre isso, pois o que estou compartilhando hoje não é apenas minha história, mas também a história de Gabriel, meu cinegrafista no K2, que também trabalhou por horas para tentar salvar Muhammad. Infelizmente, ainda não recebi uma resposta da família de Muhammed, mas devido a toda a desinformação e ódio que está sendo disseminado agora, sinto que tenho que fazer esta declaração sobre o que aconteceu no K2 no dia 27 de julho de 2023. Também sinto raiva de quantas pessoas estão culpando outras por esse acidente trágico. Isso não foi culpa de ninguém, você não pode comentar quando não entende a situação, e enviar ameaças de morte nunca está certo. Lama, eu e especialmente Gabriel, fizemos tudo o que pudemos por ele na ocasião. Isso aconteceu na parte mais perigosa da montanha mais mortal do mundo, e você deve lembrar que em altitudes acima de 8.000 metros seus instintos de sobrevivência afetam as decisões que você toma. Também estou extremamente decepcionada com todos aqueles que estão compartilhando fotos e vídeos do corpo morto de Hassan sem consentimento, especialmente considerando o quão recente toda essa situação está na mente de todos. Isso é extremamente insensível e mostra falta de respeito pelos próximos de Hassan e por ele mesmo. Ele era uma pessoa importante para tantas pessoas e não deve ser lembrado apenas como alguém que faleceu no K2.
Esta é a nossa recordação da situação. Gabriel, Lama, Nima e eu começamos nossa escalada ao cume por volta das 20h do dia 26 de julho. Mantivemos um bom ritmo desde o início e pudemos ver a equipe de fixação na nossa frente antes de chegarmos ao Bottleneck. É um lugar perigoso, com neve e gelo pendurados sobre você, e você está caminhando por um trecho extremamente estreito, sobre neve que pode ceder a qualquer momento. Todos precisamos caminhar extremamente perto da montanha e passar por esse trecho o mais rápido possível. Cada minuto que você fica lá aumenta o risco de acidentes, não apenas para você, mas para todos acima e abaixo. Quando chegamos a este local, a equipe de fixação havia saído do Bottleneck e não conseguíamos mais vê-los, pois estavam ao redor da “esquina” do serac (bloco de gelo). Vimos seis pessoas na nossa frente. Mohammed Hassan estava em outra equipe e era o número 2, Lama o número 7, eu o número 8 e Gabriel o número 9 na fila. Atrás de nós havia muitos outros sherpas e alpinistas tentando chegar ao cume do K2. Então, por volta das 2h15, aconteceu o acidente. Eu não vi exatamente o que aconteceu, mas de repente Hassan havia caído e estava pendurado na corda entre duas ancoragens de gelo. Ele estava preso à mesma corda que todos nós, estava completamente escuro e podíamos ouvi-lo ao nosso lado esquerdo, longe do caminho. Também conseguíamos ver que ele estava pendurado a cerca de 5 metros abaixo, mas não sabíamos se ele escorregou e caiu, ou se um pouco de neve desmoronou abaixo dele. A princípio, ninguém se moveu, provavelmente por choque e medo, e depois percebemos que ele estava de cabeça para baixo e não conseguia subir sozinho. Ele deve ter caído quase 5 metros e seu arnês estava todo enrolado ao redor dos joelhos. Além disso, ele não estava usando um traje de proteção, e sua barriga estava exposta à neve, ao vento e às baixas temperaturas, tornando a situação extremamente perigosa. Com Lama e Gabriel, primeiro tentamos chamar a atenção do número 1, o companheiro de Hassan que estava à frente dele. No entanto, parecia que ele também não conseguia chegar até ele.
Então, nós três saímos para ajudá-lo, juntamente com o número 3 na fila, que também tentou puxá-lo para cima, prendendo-se às quatro pessoas na nossa frente. Lama colocou outra ancoragem de gelo, eu me prendi a esta e à corda fixa, enquanto Lama escalava por cima de Muhammad, que ainda estava de cabeça para baixo. Ele tentou ajudá-lo sozinho lá, mas era impossível para um homem virá-lo sozinho. Então, fizemos outro plano, Lama subiu acima e Gabriel subiu por baixo, enquanto eu ficava ao lado da ancoragem de gelo, já que Lama agora estava apenas preso a uma corda a mim. Dessa forma, conseguimos virar Hassan. Ele não tinha máscara de oxigênio, nem estava usando um traje de proteção. Suas pernas estavam torcidas em uma posição desconfortável, provavelmente por causa da forma como ele caiu. Gabriel deu a Mohammad seu oxigênio e tentou acalmá-lo enquanto o posicionava de cabeça para cima. O amigo de Mohammad, que era o número um na fila, desceu até Lama para nos ajudar.
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Também adicionamos uma nova corda a Gabriel para que pudéssemos prendê-la a Hassan. Enquanto estávamos tentando mover Hassan mais perto do caminho, uma avalanche ocorreu ao nosso redor, onde a equipe de fixação estava. Recebemos a mensagem de que eles estavam com problemas. Nesse estágio, decidimos nos separar. Gabriel ficou com Hassan e seu amigo no Bottleneck. Preocupados com a segurança da equipe de fixação, Lama e eu fomos à frente para ver como poderíamos ajudá-los. Lama, Gabriel, o amigo e eu passamos 1,5 horas no Bottleneck tentando puxá-lo para cima antes da avalanche e do chamado de socorro da equipe de fixação. Quando entramos em contato com a equipe, percebemos que eles estavam bem. Lama continuou à frente e eu fiquei para trás e perguntei aos sherpas se eles estavam voltando. Eles disseram que sim, e entendemos que isso significava que mais ajuda estava indo para Hassan. Decidimos continuar à frente, pois muitas pessoas no Bottleneck tornariam mais perigoso para um resgate. Considerando a quantidade de pessoas que ficaram para trás e que haviam desistido, acreditávamos que Hassan receberia toda a ajuda possível e que ele seria capaz de descer. Não compreendemos completamente a gravidade de tudo o que aconteceu até mais tarde.
De volta ao Bottleneck, Gabriel conseguiu montar um sistema de tração com três ancoragens e uma corda, e o amigo de Hassan estava ajudando Gabriel a puxá-lo para cima, pouco a pouco. Enquanto faziam isso, as pessoas estavam cruzando-os, tentando sair do perigoso Bottleneck que fica a 8.200m. Todos estavam exaustos, especialmente Gabriel, que havia estado puxando e ajudando Hassan por tanto tempo. Felizmente, Halung Dorchi Sherpa veio para ajudar com os últimos metros, para puxar Muhammad para uma pequena plataforma de neve no Bottleneck. Gabriel deu seu oxigênio a Muhammad novamente. Ele também lhe deu água quente e tentou aquecer seu corpo da melhor maneira possível. Não sabemos por quê, mas Hassan não estava usando luvas, então Gabriel também tentou aquecer suas mãos. Por mais uma hora, Gabriel ficou e tentou ajudar. Tudo o que ele podia fazer era ficar com ele e falar com ele. Em algum momento, Gabriel quase não tinha mais oxigênio e percebeu que, se ele mesmo quisesse voltar para casa naquele dia, precisaria pegar mais oxigênio. Ele teve que subir para pegar um, pois sabia que seu sherpa tinha uma garrafa extra, mas estava mais alto. No total, acho que Gabriel passou quase 2,5 horas com Hassan no gargalo enquanto as pessoas passavam. Acredito que as pessoas não entenderam a gravidade do que estava acontecendo com Hassan enquanto estavam escalando, e é por isso que vemos nas imagens que estão passando por cima dele para alcançar a segurança do outro lado. Gabriel ficou com eles o máximo que pôde antes de ter que sair para buscar mais oxigênio por sua própria segurança. Isso foi muito muito traumático, para todos os envolvidos, e só posso imaginar a força física e mental que foi necessária para Gabriel fazer algo tão heroico e gentil. MingTemba, Makhpa, Lama, Nima e eu ainda estávamos subindo e não sabíamos o que havia acontecido atrás de nós, mas vimos pessoas se aproximando. Ouvimos dizer que Hassan estava recebendo toda a ajuda possível. Pouco depois de chegarmos ao cume, Gabriel se juntou a nós. Perguntei a ele se eles conseguiram subir Hassan e ele disse que sim. Perguntei se ele estava vivo, e Gabriel disse que sim, mas que ele estava em uma situação muito difícil. Entendemos que ele talvez não conseguisse descer. Foi de partir o coração.
Foi apenas quando descemos que vimos que Hassan havia falecido e nós mesmos em nenhuma condição de carregar seu corpo. São necessárias seis pessoas para carregar uma pessoa, especialmente em áreas perigosas. No entanto, o Bottleneck é tão estreito que só cabe uma pessoa na frente e outra atrás da pessoa que está sendo ajudada. Neste caso, foi impossível carregar Hassan com segurança. De volta ao Acampamento Base, ouvimos dizer que as pessoas pensavam que ninguém o havia ajudado, mas havíamos ajudado. Fizemos o nosso melhor, especialmente Gabriel. É verdadeiramente trágico o que aconteceu, e sinto muito pela família. Espero que possamos aprender algo com essa tragédia. Todos que sobem um cume precisam de treinamento adequado, equipamento adequado e orientação adequada. Pelo que entendi, Hassan não estava devidamente equipado para enfrentar um cume de 8.000m. O que aconteceu não é de forma alguma culpa dele, mas mostra a importância de tomar todas as precauções possíveis para que possamos nos ajudar e ajudar os outros. E por favor, por favor, por favor. Sejam gentis. Não apenas com aqueles que subiram o K2 naquele dia e que passaram por algo muito difícil. Mas o mais importante, em memória de Hassan e para aqueles próximos a ele. Sejam respeitosos.
Se você quiser ajudar a família de Hassan, vi que um crowdfunding no site GoFundMe foi criado para sua família por Wilhelm Steindl, então se quiser ajudar, pode fazer isso aqui. Envio todos os meus pensamentos e orações à família. Obrigado por lerem esta história.”