Trinta e um anos após o início de um imbróglio jurídico que parecia longe de um final, um bem público vai voltar a ser público. A Ilha das Cabras, no canal de São Sebastião, a poucos metros de Ilhabela – desde 1989 uma propriedade privada pertencente ao ex-senador Gilberto Miranda -, vai se tornar um museu da cultura caiçara, a partir de 2025. Isso só será possível por um acordo judicial celebrado entre o Ministérios Público Estadual, a Fundação Florestal e o ex-parlamentar.
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Condenado por danos ambientais causados à ilha, no litoral norte de São Paulo, Miranda recorreu a todas as instâncias antes de seus advogados assinarem um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) pelo qual se compromete, por meio de uma de suas empresas, permissionária de uso da ilha, a transferir R$ 14 milhões diretamente para a Unesco – braço das Nações Unidas para educação, ciência e cultura.
A agência da ONU será a responsável pela implementação do Museu de História, Antropologia e Cultura do Litoral Norte na Ilha das Cabras e pelo desenvolvimento de um projeto de gestão que deve ser de responsabilidade de entidade privada. O cronograma inicial para a instalação do museu e todas as obras necessárias é de 48 meses.
Ajustamento
De acordo com o diretor executivo do órgão estadual, Rodrigo Levkovicz, a população local e comunidades caiçaras serão ouvidas durante o processo de desenvolvimento e instalação do museu.
O TAC prevê também a transferência de quatro imóveis em Ilhabela para atividades de logística e administrativas do museu. Em julho, as chaves da luxuosa mansão com sete suítes construída por Miranda na ilha foram entregues à Fundação Florestal.
Mordomias
Piscina, heliporto, garagem para jet ski e praia artificial são algumas das mordomias instaladas pelo ex-senador no local, apesar de sucessivos embargos dos poderes públicos.
“Esse foi um processo muito tumultuado, que começou em 1991. Agora, estamos animados com esse projeto e o modelo de construção da Unesco prevê essa participação”, afirma Levkovicz. “E a população do litoral norte é sempre muito participativa.”
Intervenções
No fim de agosto, técnicos da Unesco estiveram no local para uma análise prévia das instalações e das alterações feitas durante as três décadas no local. E elas não foram poucas. Além de uma casa, piscina, píer e aterramento de uma parte da entrada da ilha, onde foi alargada artificialmente uma praia particular, os costões rochosos foram concretados para receber as construções.
A análise prévia indica que essa cobertura de concreto deve ser retirada, deixando o local com o máximo possível de características naturais. O que já seria um atentado contra o meio ambiente se torna ainda mais delicado porque a ilha é parte de uma Unidade de Conservação, o Parque Estadual de Ilhabela.
Ao longo dos anos, a permissão para uso da ilha, um bem público, foi sendo trocada na Secretaria de Patrimônio da União (SPU) do nome do ex-senador para empresas nas quais é sócio.
Atualmente, respondia pelo direito de uso do patrimônio público a Bougainville Participações e Representações LTDA, empresa com sede em São Paulo e filial na própria Ilha das Cabras.
Todas as alterações promovidas no local causaram impactos ambientais consideráveis para a fauna marinha, diz o promotor Tadeu Salgado Ivahy Badaró Júnior, do Grupo de Atuação Especial de Defesa do Meio Ambiente (Gaema), do Ministério Público Estadual.
São espécies de peixes, crustáceos e aves afetadas pela intervenção no local. Durante os 33 anos em que a ilha foi ocupada por Miranda, espécies de plantas exóticas ornamentais também foram inseridas, descaracterizando a flora original.
Ao longo desse período, diversos embargos, administrativos e judiciais foram decretados pelo município de Ilhabela e também pela Justiça de São Paulo. “Ele (Miranda) não respeitou os embargos e continuou construindo”, afirma Badaró Júnior. “A ação teve vários percalços, com condenações por litigância de má-fé. Os direitos de ocupação da ilha foram sendo transferidos para empresas que o ex-senador é sócio, o que foi atrasando o processo.”
Mandado
De acordo com a Promotoria, desde o início o processo foi tumultuado. Em um mandado de segurança impetrado em 2021 para garantir a devolução da ilha, o Ministério Público afirma que “ocultações e recusas em receber citação e utilização de interpostas pessoas, físicas ou jurídicas, para dissimular seu vínculo jurídico com o imóvel foram alguns dos artifícios utilizados pelo réu da ação e representante da impetrante, o ex-senador Gilberto Miranda, para procrastinar o feito e se eximir de sua responsabilidade, do que resultou uma demora de mais de cinco anos apenas para o encerramento do ciclo citatório”.
Com a ação movida pelo MP já em fase de execução, e após os advogados de Miranda recorrerem ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), não restaram opções ao ex-senador. “Por uma falha do Estado, a ilha foi sendo ocupada. Ele (Miranda) não poderia sair edificando ali como fez, não pediu autorização para ninguém”, diz o promotor do Gaema. “Procuramos os advogados dele e propusemos uma solução racional com o pagamento de multas e restituição do local.”
Defesa
Procurada, a defesa do ex-senador que atuou durante o processo e o Termo de Ajustamento de Conduta, não respondeu à reportagem.
Para o promotor do Gaema, o desfecho do processo judicial de três décadas é uma mostra de que as leis ambientais brasileiras são funcionais e que, apesar, do tempo para resolver o imbróglio, o interesse coletivo foi preservado.
“Esse caso tem um simbolismo muito grande: o que é um bem público deve ter uso público”, acrescenta Badaró Júnior. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.