O ultracorredor brasileiro Joilson “Jabá” Ferreira conquistou prova solo de 320 km que ninguém completava havia dois anos
Por Bruno Romano*
O SILÊNCIO DA MADRUGADA gelada no Alasca é cortado pelo uivo de um lobo selvagem. São 5h da manhã de uma típica noite de inverno local. Quem escuta o barulho é o corredor baiano Joilson Ferreira, o “Jabá”. Aos 45 anos, ele se encontra no meio da maior aventura da sua vida esportiva até aqui: a ultramaratona Iditasport, prova solo e autossuficiente de 320 km, responsável por ele estar há mais de dois dias andando pela vastidão da neve e puxando seu trenó de equipamentos (com quase 50 kg) usando apenas a própria força. Jabá percebe que o lobo não está sozinho. Sua matilha parece perseguir o brasileiro. É um momento tenso da competição, quando a fadiga, a baixa visibilidade e a difícil navegação começam a pesar ainda mais. Sem alternativa nem ninguém para compartilhar o desespero, ele aciona sua técnica infalível há algumas décadas: “Meter o pé”.
Além de acelerar o passo, o baiano aumenta a potência da luz da lanterna. O plano de emergência é mostrar seu tamanho e força – ou o que sobrou dela – para intimidar uma possível aproximação perigosa. Alguns quilômetros depois, uma nevasca piora a situação, mas Jabá segue em frente. Mesmo de longe, dá para imaginar seu alívio quando ele finalmente avista um posto de controle do evento. Era a penúltima marcação oficial antes da linha de chegada. Ainda faltavam 32 milhas (pouco mais de 50 km) para cumprir um desafio bruto que passou os últimos dois anos sem ver um só competidor conseguir completá-lo.
Após três dias, 18 horas e 54 minutos da largada, no fim de fevereiro, o corredor baiano comemorava sua chegada com direito a vitória na categoria 200 milhas da Iditasport. O evento já é celebrado há três décadas (existem também categorias de fatbike, esqui e travessias de até 2.000 milhas, ou 3.219 km), percorrendo, em parte ou na sua totalidade, a simbólica “trilha” local conhecida como Iditarod – na verdade, um imprevisível cenário de neve, traçado a centenas de anos por povos nativos. São rios congelados, montanhas e vales intermináveis, que ligam pequenos vilarejos, na conexão dos arredores de Anchorage até Nome, uma espécie de “velho oeste” do Alasca.
“Em 30 anos me dedicando a isso, nunca tinha visto alguém correr com tanta agilidade, mesmo carregando 50 kg. Jabá foi simplesmente fenomenal!”, diz Billy Koitzsch, diretor-geral da competição e profundo conhecedor da área. O roteiro inusitado da jornada do corredor brasileiro ainda acumula capítulos de tirar o fôlego, de temperaturas abaixo de 40oC negativos, que quase congelaram suas mãos, a um atropelamento de um trenó guiado por um esquimó, terminando com uma aurora boreal particular.
“A prova foi a mais dura que já fiz, mas não passa nem perto da correria que foi minha vida”, fala Jabá, logo depois da viagem. Ele está de volta ao calor do verão de Piracicaba, no interior de São Paulo, cidade que escolheu para morar no começo da vida adulta. Nativo de João Amaro (BA), no sul da Chapada Diamantina, Jabá enfrentou uma infância dura e trocou a vida adolescente de servente de pedreiro – época em que já treinava por dois turnos (manhã bem cedo e fim do dia) nos intervalos do batente, acumulando cerca de 150 km de corrida por semana – para tentar novas oportunidades no Sudeste. Em Piracicaba, terminou os estudos via supletivo, se encontrou profissionalmente como instrutor de academia e seguiu treinando forte nas horas de folga do trabalho principal em uma sacaria, o que incluía carregar pesos absurdos durante a maior parte do dia.
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A trajetória segue com Jabá pegando gosto por musculação, capoeira e jiu-jítsu. Ele dá um jeito de fazer cursinho, passa no vestibular para educação física na PUC de Campinas, consegue bolsa e encara percursos que exigem até quatro ônibus (ou 60 km de bike, quando se mudou, um ano e meio depois, para um sítio mais perto da universidade). No fim do dia de estudos, adivinhe… Jabá não dava mole na academia ou decidia puxar treinos de corrida. “Sempre mantive o foco e os objetivos na vida”, conta. “Nunca parei de treinar ou deixei que me batesse desânimo.” Da necessidade de parar de estudar para colocar comida em casa quando era mais novo, Jabá realmente correu atrás do prejuízo. E, no fim, a própria corrida em si começou a abrir portas para o mundo.
Nas primeiras maratonas, sem grana para inscrição, ele competia de “pipoca”. Tempos depois, há cerca de dez anos, quando já estava na casa dos 35, começou a se aventurar em ultras. Seu fascínio era a BR 135, prova de 135 milhas (217 km) considerada uma das mais desafiadoras do país. Jabá deu duro para ser aceito pela competição, que exige currículos com experiência em grandes distâncias. Seu sonho se realizou em 2011, quando completou o percurso em 51 horas (dentro do tempo de corte de 60 horas). No ano seguinte, baixou para 43 horas e ganhou vaga para a Badwater, a icônica ultra no deserto do Vale da Morte (EUA), mas sua participação travou por falta de recursos financeiros.
Em vez de baixar a cabeça, Jabá decidiu se aliar a instituições filantrópicas da sua região, conseguindo apoio para uma nova participação na BR 135. Em 2013, lá estava ele cruzando mais uma linha de chegada e carimbando o novo passaporte para a Badwater – dessa vez ele conseguiu viajar e completar a prova mesmo com os dois pés completamente queimados. Em um ambiente totalmente oposto, o Alasca entrou no seu radar nos anos seguintes, quando ele encarou a ultra Arrowhead 135, em Minnesota (EUA), sua porta de entrada para a Iditasport de 2018. De Piracicaba para os confins da América do Norte, Jabá treinou duro por um ano. Nas folgas do trabalho de personal trainer – hoje ele também é pós-graduado na área de reabilitação cardíaca –, dedicava-se à sua planilha, subindo montanhas e correndo na areia sempre que possível, além de puxar pesados pneus na simulação do trenó. Com acompanhamento nutricional e de exames detalhados, ele perdeu 13 kg, dos 98 para os 85, e diminuiu sua porcentagem de gordura dos 14% para os 7%, uma marca e tanto para um “amador de elite” de 45 anos.
Também foi preciso investir em equipamentos específicos, do trenó às luvas e ao saco de dormir. Em casos como esse, a escolha inteligente do material não visa apenas o bom desempenho como pode significar a diferença entre a vida e a morte. Na Iditasport, os atletas têm rastreamento via GPS, porém um resgate pode demorar muitas horas (ou até dias) dependendo das condições. Ao apertar o “botão” da desistência, também é preciso tirar do bolso US$ 1.000. “É sobrevivência mesmo”, resume Jabá. “Correr no deserto é duríssimo, mas não se compara a isso. Se você parar de andar no Alasca, pode congelar até morrer”, conta. Jabá sentiu na pele o drama de ter sua provisão de água congelada durante o último dia do percurso, mesmo com térmicas feitas para baixíssimas temperaturas. No improviso, ele não teve dúvidas: usou os bastões de caminhada e quebrou parte das garrafas para acessar algo de líquido.
No Iditasport, a linha entre o sucesso e o fracasso não é mesmo brincadeira. Relatos de abandono da competição se acumulam com o passar dos dias nos boletins da organização. Extremidades do corpo congeladas, insuficiência cardíaca, quadros de alucinação e quedas seguidas de concussão fazem parte dos informes. Na prática, os competidores tentam se locomover se guiando por algumas marcações em estacas na neve. O uso de eletrônicos é permitido, mas nada garantido, já que baterias e baixas temperaturas não costumam combinar muito bem. No percurso de 200 milhas (espécie de ida e volta ao local de largada em Willow), há alguns abrigos onde é permitido comer, descansar e organizar o material pessoal. “Parava só pelo tempo necessário e, muitas vezes, as dores musculares eram tão fortes que ficava melhor seguir adiante”, relata Jabá.
Para driblar o cansaço, o baiano usava jogos para fortalecer a mente. “Fazia contas de matemática; estabelecia metas de passos ou algum destino próximo para alcançar”, lembra. Não bastassem os desafios do terreno, Jabá ainda levou a pior ao atravessar um rio congelado. Poucas horas antes, ele tinha avistado uma luz forte e ficara confuso. Ao se aproximar, percebeu que se tratava de um esquimó cozinhando e alimentando os cachorros. No mesmo dia, ao cruzar uma área congelada, o nativo não desviou de Jabá, que foi atropelado pelo trenó. Como reação imediata, Jabá ficou com medo de ser atacado pelos cachorros, mas eles foram dóceis – diferentemente do dono. Com o choque, o brasileiro torceu o joelho e sentiu dores fortes até a linha de chegada. “Mesmo nos momentos mais difíceis e solitários, eu não me sentia sozinho. A cada nova esticada eu percebia algo diferente, parecia que uma galera ia junto comigo. Frequentemente eu me lembrava de pessoas no Brasil; foi uma conexão muito forte”, diz.
Nos momentos finais da prova, após vencer as noites de inverno polar, Jabá achou que havia se desorientado. Como sempre, pediu ajuda aos céus e seguiu caminhando. Logo depois avistou um fenômeno incrível da região: a aurora boreal. “Foi um espetáculo particular, a coisa mais linda que já vi na vida”, conta. Era o presente perfeito e a animação extra necessária para perceber que o caminho estava certo. Após cruzar uma enorme colina de gelo, Jabá seguiu firme e confiante para a chegada.
A organização da prova o aguardava, junto da esposa, Luciana, e do filho, João. Quando ganhou uma dose de uísque dos oficiais da prova que o brindavam como champion (campeão), ele sequer havia se dado conta da vitória. No meio da travessia, com a comunicação debilitada, Jabá nunca sabia ao certo sua posição. “Durante várias horas eu persegui um competidor que nem existia”, diverte-se. Dos cinco atletas que encararam a missão das 200 milhas, na categoria Original da Iditasport, apenas Jabá e um norte-americano – conhecedor da área que treina frequentemente no percurso – completaram a edição.
“Foi uma evolução absurda como pessoa”, conclui Jabá, que contou com a ajuda de amigos e alunos para bancar parte da viagem – a Iditasport não tem premiação em dinheiro. “Sou um cara bem animado para fazer as coisas, mas, no fundo, acho que sou bastante calmo. Depois da prova, percebi que meu comportamento mudou, estou ainda mais centrado e focado.” Mantendo a tranquilidade em horas difíceis, o típico bom humor e a disposição extrema (como já deu para perceber), Jabá fez história. E agora tem mais uma ótima para contar.
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*Reportagem publicada na edição nº 150 da revista Go Outside, abril de 2018.