NESTE TRECHO DE SEU NOVO LIVRO, A REPÓRTER FLORENCE WILLIAMS PARTE PARA UMA REMADA SOLO DE MAIS DE 190 KM NO RIO GREEN, EM UTAH (EUA), PARA SE REFAZER DA DOR DO FIM DE UM CASAMENTO DE 25 ANOS

Meu maior problema no momento era o banheiro portátil. Ele era simplesmente pesado demais. Estava afundando a proa da minha canoa, que já carregava 40 litros de água e uma geladeira de parede dupla com itens honestamente ridículos, como leite de coco, filés de costela e ovos caipira líquidos. Além disso, eu também levava um exuberante guarda-sol de praia.

Mas por que essa merda que você enterra na areia precisa ser feita de aço à prova de balas, de 20 mm de espessura? Não precisa! Eu só queria bolsas de plástico resistentes. O mal concebido banheiro portátil foi apenas um dos inúmeros erros, pequenos e gigantes, que tinham me levado até aquele momento, praguejando sozinha em plena natureza selvagem. Havia os erros do meu casamento, o erro cósmico (na minha cabeça) do divórcio, o homem errado pelo qual eu me apaixonei no ano seguinte à minha separação, as amizades que eu tinha forçado. Tudo isso estava, sim, me afundando. Se eu pensasse muito sobre essas metáforas cheias de merda, minha cabeça doía.

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Houve ainda a péssima decisão, tomada provavelmente sob os efeitos de uma onda de calor, de iniciar esta perna de minha jornada um dia antes, às 19h, sob uma luz cada vez mais pálida, deslizando sobre uma pequena corredeira, em uma canoa que parecia pesar 500 kg. Era agosto e a temperatura passava dos 36°C no rio Green, em Utah (EUA). Até mesmo um menino adolescente sofreria um superaquecimento. Acampar no parque da cidade, sem nenhuma sombra, era uma opção insuportável. Descer um rio no meio do deserto em pleno verão provavelmente foi outra decisão ruim. Mas lá estava eu. Um fornecedor chamado Craig me alugou uma canoa de 15 pés com o banco quebrado e bordas lascadas, além do banheiro-tanque. O barco era da cor daquele batom que você usa quando quer forçar a barra. Combinava, no entanto, com o guarda-sol.

“Apenas lembre-se”, ele disse,“se você não sabe muito sobre nós, faça muitos!” Ele riu, tirou uma foto minha com meus equipamentos ao redor e partiu em sua picape com ar-condicionado.

Para ser clara, eu sei, sim, como fazer nós e costumo saber o que estou fazendo quando me encontro na natureza. Mas minha canoa estava virada para baixo, em Washington D.C., onde esperava, petulante, por dias melhores e onde eu também durante grande parte do último ano, havia ficado deitada, geralmente de lado, depois que meu marido decidiu pular fora do nosso casamento de 25 anos porque, entre outras coisas, ele precisava encontrar sua alma gêmea. Ainda assim, nenhuma das minhas experiências anteriores na canoagem tinha me preparado completamente para a realidade de que eu dificilmente poderia alterar o rumo desta embarcação uma vez que ela estivesse dentro do rio. Apenas alguns poucos centímetros de distância separavam a linha d’água de sua borda mais alta. Eu encarava os bancos de areia se aproximando. Encarava o banheiro, cintilando como um oficial presunçoso sob o crepúsculo.

O rio se dividia em dois canais. Escolhi o da direita, mas a corrente ficou rápida, rasa e turbulenta. A canoa passou raspando sobre algumas pedras, então sobre outras, e começou a inclinar de lado. Eu voltei a enfiar os pés em meus sapatos de rio e saltei dentro d’água, que chegava na altura da minha canela, imaginando que seria mais fácil manter o barco virado para cima e longe das pedras se eu estivesse fora dele. Meu coração batia acelerado, e eu me repreendi por não ter amarrado melhor meu equipamento. O barco avançou às sacudidas e eu saltei para dentro. Sabia que precisava encostar e acampar em breve, antes que ficasse ainda mais escuro. Encalhei o barco na primeira faixa de cascalho disponível. Em minha primeira noite outdoor sozinha, eu acamparia a poucos metros da rodovia interestadual.

Passei a noite acordada me censurando, em primeiro lugar simplesmente por existir, depois censurando meu marido e então maquinando sobre como me livrar daquele banheiro, porque não existia a menor possibilidade de eu arrastar aquela coisa nas próximas duas semanas.

Florence parte em busca de maneiras de deixar seu casamento para trás.

“Me relembre por que mesmo vai ser bom ficar sozinha?”, eu tinha perguntado à minha terapeuta alguns meses antes, talvez pela terceira vez. “Ficar sozinha é como um músculo”, respondeu Julia. “Um músculo que as pessoas deveriam exercitar, porque você nunca sabe quando precisará usá-lo e vai querer que ele esteja funcionando.”

Certo. Mas muita gente casa jovem e continua casada e nunca realmente exercita esse músculo. Será que eu precisava exercitá-lo? Aparentemente sim, porque eu já não era uma daquelas pessoas. Eu tinha que praticar.

Assim como David Sbarra, um psicólogo da Universidade do Arizona, tinha me explicado, “depois de rompimentos começamos a nos sentir melhor quando redescobrimos nosso senso de identidade. Este é o motor essencial da recuperação. A experiência de separação viola nossos mecanismos de significação e expectativas que temos para a vida, então como você organiza as coisas? Como você narra a experiência?”.

Eu disse a ele que alguns meses depois da separação eu continuava tendo problemas para interpretar o que tinha acontecido e o que aconteceria. Mencionei que estava começando a planejar uma grande viagem outdoor de canoa, e ele aprovou. David vive no Oeste e compreende o impulso de procurar consolo em lugares selvagens.

“Estar na natureza é expandir e sair de si mesmo”,ele falou.“O fazer é a chave. Aqueles que se fecham e recuam são os que têm mais dificuldade de encontrar um caminho após o fim do casamento.”

De acordo com o neurocientista Shane O’Mara, da Universidade de Dublin, a expressão em inglês walking it off (algo como livrar-se dos problemas caminhando) é um fenômeno real. Autor de In Praise of Walking [Ode à Caminhada, em tradução livre], ele explica que botar o corpo em movimento pode ajudar a prevenir a depressão, assim como uma série de problemas arteriais e metabólicos. À medida que o sangue bombeia e um novo fator de crescimento neuronal flui, nós nos tornamos mais criativos, mais autoconscientes, mais nós mesmos. “Um simples efeito colateral de levantar e se mexer”, diz ele, “é que a atividade se propaga até regiões do cérebro mais distantes, aumentando a probabilidade de que pensamentos no meio do caminho e frações de ideias, acomodados no subconsciente, possam se unir em novas combinações.”

Eu estava caminhando bastante – de 6 a 8 km por dia –, mas pensei que a ideia deveria se aplicar também à canoagem, outro movimento de longa distância, rítmico e bilateral. Esse não era um objetivo consciente durante o planejamento da viagem – eu simplesmente ansiava por atividade. Tinha que me mexer.

À medida que os planos de uma longa jornada outdoor ganhavam forma na minha cabeça, entrei em contato com Dave Strayer. Neurocientista cognitivo e professor da Universidade de Utah, ele é uma potência em seu campo, mas fica realmente realizado quando acampa no deserto. Defensor do chamado “efeito dos três dias” sobre o qual eu já escrevi – a ideia de que três dias na natureza podem fazer nossa criatividade pegar no tranco e acalmar nossas almas aturdidas pela vida na cidade –, ele era uma pessoa que eu sabia que seria solidária. E, como canoísta, também me ofereceria, certamente, alguns conselhos práticos.

Eu disse a ele que queria encontrar um rio longo o suficiente para uma viagem de canoa de várias semanas, algumas com amigos e outras completamente sozinha. Dave levantou as sobrancelhas. “Em solitário?” “Sim.” Tinha pensado bastante sobre isso, sobre a necessidade de encontrar coragem, de aprender autoconfiança e de enfrentar meu medo de estar só. Depois de décadas de casamento e muitas primaveras e verões remando com meu pai ou com meu marido, precisava aprender, tanto literal como metaforicamente, como remar meu próprio barco. “Interessante”, refletiu Dave.

Descansando ao longo do Rio Green.

Nós discutimos sobre os prós e os contras de rios que ambos conhecíamos e já havíamos percorrido em Utah, no Colorado, em Montana e Idaho. “Você quer olhar para dentro ou para fora?”, ele perguntou, quase retoricamente.

“Hum, para dentro? Mas também quero aventura.” Eu queria uma aventura confortável, se isso não deixasse de ser em si mesmo um paradoxo. “Bom, se você estiver sozinha, vai ter aventura”, afirmou. Dave me confessou que tinha passado apenas uma noite sozinho na natureza. “E foi o suficiente”, disse rindo. E olha que ele tinha sido líder escoteiro. Eu nunca tinha estado sozinha no outdoor.

O rio Green é o maior afluente do rio Colorado. Ele começa como um fio de água proveniente da neve derretida no oeste de Wyoming, ganha bastante força ao esculpir seu caminho entre os cânions do noroeste do Colorado e depois faz um longo e solitário descenso em direção ao sul, atravessando grande parte de Utah, para então se juntar ao rio maior, uma bela distância até o Grand Canyon. Eu já tinha percorrido partes dele antes – o fervilhante e divertido cânion Lodore, que leva aproximadamente quatro dias para ser remado, o cânion Desolation, uma viagem de uma semana que fiz em canoa pela primeira vez com meu pai. Mas nunca tinha me aventurado mais ao sul disso. Dave sim.

Começar em Wyoming e remar a maior parte do rio levaria pelo menos um mês, ele me alertou. Faria mais sentido remar os trechos mais desafiadores de águas brancas com outras pessoas, tanto por razões de segurança como para contar com ajuda para carregar meus suprimentos e poder remar um barco mais leve e menor. Mas nas últimas duas semanas de remada o rio desacelera consideravelmente ao fluir entre dois cânions espetaculares, antes da confluência com o rio Colorado. Poderia mudar para uma canoa individual grande o suficiente para carregar toda minha água, comida e equipamento.

Passei muitas horas do inverno e da primavera falando com gente dos rios, lendo mapas atentamente e convencendo amigos e membros da família, com ou sem barco próprio, a se juntarem a mim em vários pontos da viagem. Comecei a pensar sobre comida, equipamento e os múltiplos riscos de entrar em território selvagem e sem estradas. E então vinha a parte em solitário. Como seria sozinha no deserto, durante semanas? Não tinha ideia. Liguei para a escaladora Aleya Littleton, uma das terapeutas de aventura que eu tinha conhecido ao fazer uma reportagem sobre sobreviventes do tráfico sexual.

Ela disse, sabiamente, que viajar em solitário não era a mesma coisa que estar sozinha, porque – idealmente – você se sente acompanhada pelo amor e apoio de amigos e familiares, assim como pela presença viva do mundo natural. Eu teria uma equipe terrestre livre, faria amizade, de certa forma, com novas criaturas – mamíferos e pássaros – e teria tempo para desfrutar delas.

E, ainda, a parte em solitário seria cheia de significados. “Todos os seus erros e suas conquistas lá fora serão seus”, ela afirmou. “Você não tem como culpar ou creditar nada a ninguém além de si mesma. É um lembrete ou um resgate do que é ser você mesma.”

Poucos dias antes de viajar a Utah, de volta a Washington, meu marido veio falar de alguns pontos finais do acordo de divórcio. Eu lhe pedi conselhos de pesca. Nosso filho de 16 anos se juntaria a mim para a primeira perna da viagem e queria pescar nas águas cristalinas de antes da represa Flaming Gorge. Que varas, que iscas, que moscas usar? Grande parte do nosso equipamento familiar ainda estava bagunçado e misturado, e eu estava organizando. Tinha minha própria vara, mas a havia utilizado em rios menores de Montana, e o rio Green provavelmente demandaria algo mais robusto. Assim como com as crianças, o cachorro e a nossa picape, decidimos compartilhar a custódia de nosso bote de rafting e da maior parte de nosso equipamento básico de canoagem, que mantínhamos guardado na garagem do meu irmão Berkeley, no Colorado, em troca de que ele pudesse utilizá-lo também. Ironicamente, talvez, o bote e os remos foram presentes de casamento, então eram propriedade comum no sentido mais puro. Meu ex foi prestativo e prático. Ele até mesmo amarrou uma isca especial na linha de pesca.

“Parece estranho fazer uma viagem por um rio sem você”, eu disse, fechando o zíper da bolsa de varas. “É por isso que quero ajudar com as varas”, ele falou, “e Berkeley conhece o barco.” “Isso não é o que eu quero dizer. Eu me referia a nosso divórcio. Ele parece estranho e errado. É simplesmente uma opção atômica.” Era tarde demais para prolongar aquilo novamente, mas aquelas palavras quiseram ser ditas entre a confusão de galochas, mochilas de viagem e tristes iscas de mosca.

A canoa de Florence, pronta para ação.

Ele assentiu, encolheu os ombros e entrou no carro debaixo da chuva. Ele estava indo passar o fim de semana na casa da namorada. O que eu queria realmente fazer no rio Green? Queria, é claro, ser consertada – me transformar em uma mulher pronta para enfrentar o resto de sua vida, como se lançar meu barco significasse o mesmo que me lançar em um futuro melhor. Queria me diferenciar daquela identidade, moribunda e fossilizada, que fazia parte de um casal. Para isso, queria acessar minha bravura, algo que as mulheres da minha geração não costumam ser ensinadas a fazer. Queria transmutar meu medo em alguma outra coisa, algo como o que eu tinha vislumbrado na primeira parte da viagem pelo rio com minha família e amigos enquanto remava sobre as grandes corredeiras dos cânions Lodore e Desolation: ímpeto, força, ação. Eu queria aprender como cuidar de mim mesma e aprender como estar só. Queria cultivar beleza e vivenciar o encantamento. Queria, finalmente, dizer adeus ao meu casamento.

Aquela primeira noite sozinha na estrada, depois de quase virar, foi repleta de temor e autorrecriminação. O que eu estava fazendo lá, sozinha, no deserto, em agosto, com um cargueiro como canoa? Até mesmo em sutis ondulações, uma canoa pode emborcar, e seria muito difícil, senão impossível, empurrar esta besta até a margem sozinha. Virar não era uma opção. Mas agora, reconhecendo essa possibilidade, vi que precisaria levar o dispositivo de emergência que tinha trazido comigo constantemente, assim como um pouco de comida e pastilhas purificadoras de água. Estar sozinha, eu já tinha me dado conta, era antes de mais nada uma questão de não estragar tudo. Eu teria que levar meu equipamento amarrado o tempo todo, resguardar o barco perfeitamente durante a noite, acampar longe de zonas inundáveis, onde enxurradas pudessem aparecer sem aviso prévio, não me cortar, não quebrar nenhum membro, não incendiar a praia.

Era claro que, embora encontrasse momentos de paz, eu deveria estar plenamente alerta todo o tempo. Hipervigilância, eu me lembrei, é o estado físico da solidão. Agora eu estava aprendendo a razão literal e evoluída disto: sobrevivência. Supostamente, nós não deveríamos ficar sozinhos na natureza, e se isso for necessário, precisaríamos de todos os sentidos aguçados, todas as listas de tarefas feitas, acompanhadas e duplamente verificadas. Eu vinha desejando reabitar minha pele ao vivenciar a solitude, transformando minha solidão e minha mágoa em algo mais produtivo.

Mas agora me preocupava que o oposto fosse mais provável: transformar solitude em solidão. Aquela noite na estrada, a ponto de entrar no cânion Labyrinth, eu estava me sentindo mais vulnerável, não menos. Dei um jeito de me livrar do banheiro quando topei com um motorista de transporte em uma rampa privada de acesso para barcos ao rio. Eu tinha wag bags, e elas dariam conta. Com a canoa mais leve, eu me senti melhor. Comecei a fazer o percurso planejado para o dia durante a manhã, descansando de vez em quando ao deslizar por pedaços de sombra projetados pelos reluzentes penhascos vermelhos, bebericando o chá verde da minha garrafa térmica, conversando com uma garça que dei o nome de Gabby, ou com alguma outra Gabby, quando ela aparecia. Che cosa, Gabriella?

Estava encontrando muitos encantamentos: o nascer do sol, a dança rodopiante dos rouxinóis, as listras da rocha do Triássico. Na terceira manhã, um castor nadou ao meu redor e bateu sua cauda cinco vezes. O som dos golpes estalou como tiros. Será que ele estava emitindo um sinal de alerta? Esperando uma interação de chamada e resposta? Castores são pequenos personagens mal-humorados. Mas eu os admirava por seu renascimento. Uma vez erradicados das águas da América do Norte por caçadores e depois rancheiros, agora eles finalmente eram apreciados por sua diligência, utilidade e charme. Eles eram, eu decidi, valiosos modelos de comportamento.

Depois de fazer 20 ou 30 km até o começo da tarde, eu procurava uma árvore. Na maioria dos dias tinha sorte e encontrava uma ou duas onde pudesse pendurar minha rede. Nadava nas águas mornas do rio e, por volta das 15h, me transformava em morcego, pendurada e inerte. Bebia muita água. Finalmente estava aprendendo a meditar. Era tudo tão silencioso que podia escutar o interior de minha cabeça, literalmente, um zumbido sutil e agudo. Seria aquele o som normal de uma cabeça humana? Nunca tinha escutado aquele som antes.

Descobri ser um alívio surpreendente não falar com ninguém. Quanto tempo passamos socializando! Não havia fofoca, conversa fiada, afirmação, idealização, negociação, coação, manipulação, apaziguamento, mensagem de texto, de sexo, postagens, interações, curtidas. Havia um espaço interminável no dia, de repente. Comecei a me sentir menos dominada pelo medo, embora não desprotegida. O principal predador da fêmea humana é o macho humano. Mas aqui, sem estradas, não estava preocupada com isso. No acampamento, eu nadava e jazia quase sempre nua, conversando comigo mesma, tirando o lodo do meu umbigo. Eu gostei disso.

Em um país que valoriza o herói solitário e atribui à autoconfiança as maiores virtudes e façanhas, a narrativa da mulher-sozinha-na-natureza é surpreendentemente nova. Ela é a próxima fronteira para o poder feminino. Em grande parte do mundo, no entanto, ser mulher e viajar sozinha por territórios remotos é um convite ao perigo.

Graças à Livre, a autobiografia de Cheryl Strayed, agora havia mulheres de todo tipo se autorrealizando na natureza. Isso se tornou um tema tão previsível quanto sua versão masculina. Mas, para a minha geração, não era nem um pouco previsível. Nós crescemos lendo Os Eleitos [publicado no Brasil pela editora Rocco], sobre um grupo de caras curtindo, rompendo a barreira do som e depois decolando rumo ao espaço. Aventurar-se com segurança e em solitário sendo mulher segue sendo dos mais raros privilégios.

“Permita-se desmoronar”, disse minha cunhada Lisa antes da minha partida.
“Passe seu tempo lá fora pensando sobre o que realmente deu errado”, aconselhou minha terapeuta.
“Mas isso não era remoer?”, eu respondi, já resistindo. “Os mesmos pensamentos agonizantes inúmeras vezes?”
“Não é remoer se você encontrar novos insights”, ela recuou.
“Não confio nos meus insights.”
“É por isso que eu estou aqui”, ela falou. Era minha lição de casa, e eu precisava progredir. Sonhava com meu ex-marido todas as noites. Ele estava esperando ser levado em conta.

Perto do meio da viagem, eu estava procurando um lugar para acampar que, de acordo com meu mapa, tinha árvores. Como os álamos altos eram raros nesses cânions, era fácil encontrar onde montar a barraca. Remando sobre a superfície do rio, vi que uma gigante placa de rocha tinha se quebrado, soltado do alto do despenhadeiro e aterrissado com a forma de um coração perfeito, manchado e fraturado nas bordas. Tinha gotas de cocô de pássaros sobre o topo, mas estava sólida e ilesa, brilhando como uma placa de neon sobre a água. Fiquei contente de que ninguém mais houvesse reivindicado aquele lugar.

Não havia muitos grupos no rio. Eu tinha visto alguns, incluindo escoteiros que haviam ultrapassado mais cedo. Pendurei minha rede, meditei, e li C. S. Lewis em luto, escrito depois da morte de sua esposa. “Ninguém jamais me disse que o luto se parecia tanto com o medo”, ele escreveu. “Não tenho medo, mas a sensação é como a de estar assustado. O mesmo alvoroço no estômago, a mesma aflição, os bocejos.”

Se não conseguisse encontrar alguma medida de serenidade aqui, nunca encontraria. Nesse acampamento em forma de coração manchado, estava começando a habitar a calma. O calor e o silêncio, o peso da rocha antiga, o fluir lento do rio. Eu me despia de disfarces, limpa como um osso.

Não havia nenhum lugar onde me esconder de minhas memórias. Por que era tão difícil confrontar meu casamento? Aquela noite, por sugestão de uma amiga, escrevi uma carta de despedida a meu marido e o agradeci pelas muitas coisas que tinha aprendido com ele, pelas coisas que compartilhamos e nossas muitas formas de amar. Escrevi sobre como me sentia machucada e me desculpava pelas coisas que havia feito errado. Sentada naquela rocha que aflorava sobre o rio, queimei a carta numa frigideira: um casamento crocante como uma fatia de bacon.

Chorando, lancei as cinzas ardentes na corrente. Um pedaço enegrecido rodopiou e voltou na minha direção. Ele continha apenas uma palavra: doce. Eu me vi resistindo a dizer adeus ao casamento, a ele, à vida que tinha apreciado. Abri um caderno. Fiz uma lista de todas as coisas que amava nele e então escrevi abaixo todas as coisas que não amava. O que eu admirava: sua aparente tranquilidade, sua alegria radiante, sua competência, seu entusiasmo por aventura.

Eu amava a unidade de nossa família, que estes humanos dóceis, altos e magricelas constituíssem a minha galera, e amava a feliz ilusão – e que ilusão – de que estávamos rodeados por um campo de força especial de segurança e bom tempo. O que eu não admirava: não vou enumerar os fracassos dele aqui, exceto o maior deles – o único do qual realmente não sinto falta –, sua capacidade de me deixar com a sensação de não ser digna dele. O que era bastante ruim, mas o maior problema era que eu tinha começado a acreditar naquilo. E, enquanto eu continuasse acreditando, pior pareceria minha vida sozinha.

“Em um país que valoriza o herói solitário e atribui à autoconfiança as maiores virtudes e façanhas, a narrativa da mulher-sozinha-na-natureza é surpreendentemente nova. Ela é a próxima fronteira para o poder feminino.”

Não ajudou muito o fato de que a minha lição de casa principal, para Julia, fosse examinar meu papel nos problemas da vida conjugal. No acampamento, analisei profundamente meus defeitos, meus fracassos, meus ressentimentos e minhas neuroses. Eram tantos. Tinha sido impaciente com as necessidades dele e incapaz de avançar de forma eficiente sozinha. Estava cansada, severamente magoada, sempre ocupada, não suficientemente espontânea. Se ele não podia me amar, talvez ninguém mais pudesse. Meu estado de ânimo encontrou um reflexo na paisagem, como de costume. O que vi, equilibrando-se sozinho em uma pequena saliência no fundo de uma cavernosa formação do Triássico, foi um vazio quebradiço.

Ao catalogar meus fracassos, eu tinha dado um passo importante, embora não soubesse disso até então. Não tinha percebido ainda que era ok estar despedaçada, que isso talvez fosse essencial para me tornar um animal mais permeável e capaz de um amor muito mais real do que eu pensava ser possível. Ainda levaria um tempo para aprender que nossos defeitos não são o problema; ao contrário, é a incapacidade de perdoá-los – em nós mesmos e nos outros – o que engana nossos corações.

Numa manhã quente, uma praia sinuosa de areia branca na sombra atraiu minha atenção. Encostei para nadar e me alongar um pouco, pelada. Um corvo ficou especialmente eloquente lá em cima. Sua ária ecoou pelas paredes rochosas rio acima. CAW caw caw caw CAW caw caw caw. Deitei de barriga para baixo sobre uma toalha, hipnotizada, meu coração batendo contra o frio âmago do cânion.

Neste rio eu tinha rido alto muitas vezes, observando lagartos se moverem rapidamente ao redor e castores dispararem debaixo da água e caminhado numa manhã chuvosa para ver um rio que tinha se tornado uma sombra brilhante e inesperadamente vermelha durante a noite. Sentiria falta desses ritmos e surpresas, mas me vi pendendo em direção à casa. Eu me lembrei de uma noite em Lodore em que tentei dormir ao ar livre sozinha sobre a lona enquanto minha filha, que tinha se juntado a mim em um dos primeiros trechos da viagem, permanecia dentro da barraca. Começou a ventar. A areia me golpeava por todos os lados. Eu me senti agitada. Ansiosa sobre a iminente parte solo da viagem e com meu cabelo cheio de pedrinhas, juntei minhas coisas e caminhei penosamente para dentro da barraca. Eu me aninhei ao lado da minha filha e dormi profundamente.

Tinha ido até ali encontrar tempo para reflexões profundas – e fiz isso. Mas estava pronta para voltar aos meus entes queridos.

Depois de duas semanas e quase 200 km, acordei cedo na última manhã da viagem para remar um trecho curto até a confluência do rio Green com o Colorado, ponto onde me pegariam. Com um táxi aquático passando a cada vários dias e com a diminuição do nível da água, aquele não era um dia para dormir até tarde. O rio tinha subido graças à chuva recente, então o bote não teria problemas para chegar. Maravilhada com a nova sombra avermelhada do rio, eu me surpreendi com quão rápido tinha alcançado a confluência dos dois rios. Suspirei. E, então, naturalmente, chorei. Dois dos rios mais poderosos do Oeste se torciam e se uniam lentamente como amantes vindos de diferentes direções.

Já tinha visto aquilo antes, com uma mountain bike, desde uma antiga estrada pelo alto do cânion, anos antes em uma viagem com amigos pelo Parque Nacional Canyonlands. Agora eu estava no meio daquela união, batizada, lavada, renascida. Parei um momento longo nas correntes fundidas, e aquilo pareceu o centro de poder pulsante do universo. Os rios pareciam especialmente mal nomeados – o Green corria com a cor de salmão cru, enquanto o Colorado, vindo do Leste, fluía verde. Era fácil sentir o dinamismo da paisagem, a sensação de que aqueles rios e sua bacia estavam sempre mudando, seja ao longo de milhões de anos ou em 24 horas.

A vida aqui é literalmente fluida. Outra lição do rio. Nada permanece o mesmo por muito tempo, e às vezes as coisas mudam de repente e quando menos esperamos.

*Este é um trecho do livro Heartbreak: A Personal and Scientific Journey [Desamor: Uma Jornada Pessoal e Científica, em tradução livre], de Florence Williams (publicado em 2022 pela editora W.W. Norton & Company, Inc. nos Estados Unidos).







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