Algumas trilhas mundo afora reservam mais que desafios naturais: são caminhos sagrados de religiões que vão do cristianismo ao budismo, e que podem ser conhecidos em belos roteiros de bike e trekking. Escolha de um caminho de fé para fazer seu corpo e o espírito saírem mais fortes da jornada.
1 – Trilhas incas sagradas em Salta e Jujuy, na Argentina
Extremamente apegados aos seus costumes e a sua religiosidade, os incas foram dizimados pelos colonizadores europeus, mas deixaram ensinamentos e vestígios de uma civilização bastante avançada. Parte das ruínas pode ser vista em cidades peruanas, bolivianas, chilenas e argentinas. No norte da Argentina está Tilcara, um dos mais importantes centros espirituais do império inca. Acredita-se que o local, rodeado por cadeias de montanhas, concentra muita energia, por isso era escolhido para os cultos em celebração a Pachamama, a “mãe terra”.
Com estradas em boas condições, a região pode ser percorrida de bicicleta (informações em norteargentino.gov.ar). Tilcara, assim como sua cidade vizinha, Purmamarca, que também resgata a cultura andina, estão na Ruta 9, que corta a província de Jujuy, na chamada Quebrada de Humahuaca. Descendo para o sul, chega-se à capital de Jujuy, a cerca de 100 quilômetros de Salta, onde fica o maior aeroporto da região. Deixando a Ruta 9, ainda no sentido sul, chega-se à província de Tucumán. A beleza dos vales Calchaquíes, já na Ruta 307, ajuda a encarar os grandes desníveis da região.
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O esforço vale a pena para chegar a cidades como Amaicha del Valle, um povoado que respira a cultura andina. Lá fica o maior museu da região, o Pachamama, que explica os rituais e crenças dos antepassados, como a ideia de que somos encarnações de espíritos que podem se materializar em diferentes formas, como a serpente, a rã e o condor – a mais elevada delas.
De Amaicha saem passeios guiados para a cidade sagrada dos Quilmes. As ruínas representam toda a espiritualidade desse povo. Dados como extintos, os Quilmes foram os últimos a se render aos espanhóis, em uma batalha que durou três gerações. Guias locais explicam a formação da região, a luta pela sobrevivência e os rituais.
2 – Bike no jardim do Eden, entre Irã e Turquia
Cruzando as montanhas do Irã e da Turquia, bem perto da fronteira desses dois países, está a Blue Mosque, ou Mesquita Azul, ponto de parada obrigatório para quem encara este belo pedal de dez dias. Atribui-se ao lugar, onde está hoje a cidade iraniana de Tabriz, a localização do bíblico Jardim do Éden.
O passeio de bike é organizado pela TDA Global Cycling (tdaglobalcycling.com), especializada em pedais exóticos. Neste roteiro que mistura Oriente e Ocidente, não faltam ícones religiosos, com direito a passagens por centenárias igrejas ortodoxas e sagrados templos islâmicos, além de belezas naturais como o monte Ararat, o maior da Turquia, com 5.137 metros.
O roteiro de bike Irã-Turquia faz parte da Rota da Seda, que corta a Ásia do Mediterrâneo ao Pacífico. O pedal é exigente – média superior a 100 quilômetros por dia.
3 – Peregrinação no Tibete
No outono, tibetanos das províncias de Yunnan, Sichuan, Qinghai e do próprio Tibete saem em peregrinação ao redor do monte Meili para rezar e pedir boas energias para o futuro. A subida ao cume do Meili (6.740 metros) é perigosa, mas a caminhada ao seu redor conserva o misticismo dos locais. A área é coberta de florestas virgens, vales, cachoeiras e glaciais sagrados, onde se cruzam alguns isolados mosteiros budistas.
Tudo começa com a chegada à cidade de Kunming, capital da província de Yunnan, onde fica o maior aeroporto da região. De lá, toma-se um voo para Zhongdian, e segue-se de carro rumo a Deqin, a 186 quilômetros. É em Deqin que se encontra o mosteiro de Dongzhulin e a famosa White Horse Snow Mountain, locais sagrados na Ásia.
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O trekking começa na manhã seguinte com o trajeto Yangza-Yongbao e dura mais 13 dias, passando por diversos vilarejos, como o hospitaleiro Abing e o exótico Qizhu, local que guarda uma pedra sagrada (que todo peregrino deve tocar), na confluência dos rios Nu e Abing. No caminho, passa-se por outra montanha sagrada, a Gebula, de 4.100 metros.
Por ser um trajeto bastante longo, os preços variam de acordo com as necessidades e vontades do viajante (opções em travelwestchina.com). A versão mais compacta do roteiro sai por US$ 2.760, incluindo trechos aéreos dentro do Tibete (worldexpeditions.com). Para a cultura local, esse é um trajeto muito importante na vida de uma pessoa. Segundo a crença tibetana, quem o faz por três vezes tem vaga garantida no paraíso.
4 – Trekking milenar dos maoris
O cenário que ficou conhecido na trilogia Senhor dos Anéis como Mordor pode ser percorrido em um trekking de três dias por um dos lugares mais sagrados para os maoris, o povo nativo da Nova Zelândia.
O trekking corta o Parque Nacional Tongariro, na ilha Norte do país. O ponto alto da peregrinação é uma caminhada pelo monte Tongariro (1.967 metros), vizinho do Ngauruhoe, um vulcão de 2.287 metros que teve sua última grande atividade em 1975. Entre as duas montanhas, está o vale Mangatepopo, que leva à grande Red Crater (cratera vermelha), próxima aos lagos Esmerald. A passagem pelo vale faz parte do dia mais longo do rolê, com sete horas de caminhada. No roteiro sugerido pela Hiking New Zealand (hikingnewzealand.com) ainda estão inclusos mais um dia de trekking pelo monte Ruapehu, e uma “saideira” com destino à cachoeira de Taranaki.
Se a ideia for chegar ao cume das montanhas da região, é preciso planejar a visita com antecedência. O mesmo vale para o período de inverno, quando o local costuma ficar coberto de gelo. Enquanto os visitantes observam vulcões, montanhas e crateras que foram pontos de culto dos primeiros maoris, guias locais neozelandeses explicam a história religiosa desse povo. Uma das ideias centrais da cultura maori é ativar o mana. Em outras palavras, a energia e a força presentes em pessoas que passam a ser consideradas sagradas. O mana pode ser despertado por meio de danças, cultos ou rituais – como a travessia pelo Tongariro, por exemplo.
5 – No coração do império khmer
Arqueólogos e estudiosos ainda tentam desvendar os mistérios de Angkor, enorme confluência de construções religiosas hinduístas e budistas que serviu de capital do império khmer, no século 9. Como outras grandes civilizações que desaparecem, a cultura khmer era extremamente evoluída, como atesta a elaborada rede de irrigação e esgoto e a arquitetura desse complexo de templos localizado no Camboja, vizinho à Tailândia (mais informações em tourismcambodia.org).
Antes de chegar a Angkor, a pedida é um trekking de quatro dias por onde se estendia parte do território khmer. Como no Egito antigo, todas as construções “faraônicas” que resistem no Camboja foram feitas com o trabalho de milhares de pessoas, guiadas por reis da época, como Jayavarman e Suryavarman, que tinham status de deuses. Descobertas há pouco mais de 100 anos, as ruínas cambojanas estavam tomadas pela mata. Hoje se espalham por esse patrimônio da humanidade, onde templos semi-destruídos mesclam-se com a exuberante natureza local.
6 – Caminho do Sol em São Paulo
Foi da cidade galega de Villa Franca del Bierzo que chegou a imagem de Sant’Iago (na grafia original). A escultura do apóstolo que dá nome ao famoso caminho de Compostela, pelas trilhas da península Ibérica, também marca, desde 2002, o trecho final de uma peregrinação brasileira: o Caminho do Sol, trajeto de 240 quilômetros pelo interior de São Paulo, considerado um preparatório para o Caminho de Santiago de Compostela.
São onze municípios, desde a largada em Santana de Parnaíba até a chegada em Águas de São Pedro, cruzando Pirapora do Bom Jesus, Cabreúva, Itu, Indaiatuba, Salto, Elias Fausto, Capivari, Mombuca, Saltinho e Piracicaba, entre outros. Setas sinalizam todo o caminho, que passa principalmente por áreas rurais. O peregrino pode seguir a pé ou de bike, no ritmo que escolher. Há quatro opções de rota: laranja, azul, verde ou vermelha, sendo que a última é a única recomendada apenas para o trekking (mais detalhes em caminhodosol.org).
A “versão brasileira” do Caminho de Santiago não almeja se igualar ao precursor, mas resgata o que há de mais típico em percursos que misturam esporte com a religiosidade de uma peregrinação. Prova disso é a proposta de hospedagem em pousadas peregrinas e coletivas, com hospitalidade típica do interior. O visitante deve pagar uma taxa de inscrição, usada para manter o percurso, que inclui passaporte, guia impresso e seguro contra acidentes pessoais. Feito isso, chega-se à primeira pousada em Santana de Parnaíba para receber o passaporte do caminho com o carimbo inicial.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de fevereiro de 2012)