Embarcamos em uma viagem de trenó de cachorro pelo Ártico sueco. Nas linhas desenhadas por nossa caravana na paisagem branca, incertezas e descobertas se uniram em uma experiência intensa e onírica.
*Andrea Estevam é diretora executiva e de conteúdo da Rocky Mountain Sports Content. Essa reportagem foi originalmente publicada na edição 182 da Go Outside. Baixe a versão online neste link.
+ Nos 110km da Fjällräven Classic, na Suécia, o importante é viver o percurso
PIRKO ERA SEMPRE O PRIMEIRO a olhar para trás, indignado, quando eu encostava no freio. Dessa vez Aino, ao seu lado, também vira o pescoço e me encara. Posso ler os pensamentos daqueles dois: “Fala sério, vai mesmo querer que a gente desacelere agora?”
Depois de três dias juntos pelas planícies, lagos congelados e montanhas do Círculo Ártico, eu já consigo sacar os humores, personalidades e movimentos de cada um dos cinco integrantes do meu time. Pirko e Aino, os líderes, são animados, focados e não querem baixar o ritmo nunca. Menores que os outros, têm um jeito saltitante de correr, com cadência alta e passos leves. Akke, entre as duas duplas, é o mais tranquilão: nunca parecia ansioso e aproveitava todas as oportunidades para curtir a neve. Já Esko e Hedwig, a dupla de trás, são meu motor de popa – obstinados e fortes, empurram a neve com vontade, músculos das coxas mostrando todo o trabalho.
À nossa frente, um time abre caminho. Atrás, mais 17 grupos vêm em nossos rastros. Vistos de cima, naquela brancura, parecemos uma fila de carruagens cortando o nada. E somos, de certa forma. Não exatamente carruagens, mas trenós. Não cavalos, mas cães. Não uma cena do século passado, mas certamente surreal.
Escolho essa palavra, surreal, com cuidado. Porque minha sensação, em muitos momentos dessa viagem, é a de ter sido teletransportada para um universo paralelo, onde nada se parece com o que estou acostumada. O estranhamento de tudo – a paisagem gélida, os cães à minha frente, a linha de trenós cruzando o branco, a beleza única do cenário – aumenta ainda mais a sensação de sonho.
Estamos em Kiruna, um município sueco 200 quilômetros acima do Círculo Ártico. É um dos maiores condados da Suécia, com 20 mil quilômetros quadrados e seis mil lagos. Mais de um quarto dessa área é protegida por parques nacionais e toda ela é parte da Lapônia. Ou seja, estamos tecnicamente no quintal do Papai Noel. Se no verão a natureza permite trekkings, pedais e remadas, no inverno ela nos lança em experiências nevadas – são populares por lá os passeios de moto de neve, de snowshoe (caminhada na neve) e também os rolês de trenó puxados por cachorro, como o que faço agora.
Estou com meu time de cães alaskan huskies, que vocês já conheceram: Pirko, Aino, Akke, Esko e Hedwig. Em nossa caravana estão, além dos guias, outros 13 jornalistas e fotógrafos da Austrália, Chile, Estados Unidos, Finlândia, Alemanha, Dinamarca, Noruega, Bélgica, Canadá – todos convidados pela marca sueca Fjällraven para uma amostra do evento que ela promove desde 1997, o Fjällraven Polar, que leva 20 participantes para uma expedição de trenó de cinco dias e 300 quilômetros pelas áreas mais remotas do Ártico escandinavo. Nosso “aperitivo”, batizado de Taste of Polar (algo como “um gostinho da Polar”, em português), percorrerá 130 quilômetros em três dias.
TRÊS DIAS, DUAS NOITES, CINCO CACHORROS. Quando recebi o convite para a Taste of Polar, esses números não me assustaram. Me preocupava mais os números nos termômetros. Eu já havia feito um passeio de dogsled no Canadá e foram duas das horas mais frias da minha vida: de pé no trenó, quase sem me movimentar, cortando com o corpo o ar glacial. No fim do passeio canadense eu estava congelada. Foi bom, mas foi ruim.
Mas o objetivo da Fjällraven era exatamente colocar a galera em uma gelada. A marca, fundada em 1960, respeitada na Europa por fabricar produtos técnicos de qualidade e pela preocupação com a sustentabilidade, é uma versão nórdica da marca Patagonia. Sua missão declarada é inspirar as pessoas a passar mais tempo ao ar livre, e tanto a expedição completa quanto o nosso aperitivo polar buscavam provar que, com equipamentos e conhecimento, qualquer pessoa pode curtir a natureza – mesmo em condições extremas, mesmo com pouca ou nenhuma experiência prévia.
A primeira proposta da Fjällraven Polar foi uma prova disputada de 1997 a 2006, inspirada na Iditarod, a duríssima corrida de trenó de cães que acontece no Alasca há cinco décadas. Mas em 2012 a Fjällraven Polar ganhou outro formato: saíram de cena a competição e os participantes experientes, entrou a intenção de proporcionar uma experiência diferente para gente disposta a viver algo novo. Teve gente que achou maluquice levar um grupo de pessoas sem vivência outdoor para um dos ambientes mais severos do mundo. Mas a marca estava certa e o evento se transformou num sucesso global. Este ano, 300 mil pessoas se inscreveram para as 20 vagas.
É com medinho do frio que chego ao canil Fjellborn, em Poikkijärvi, na margem do lago Torne, onde encontraríamos nossos cães e guias. Somos recebidos por Daniel Wilhelmsson, diretor técnico e Bear Grills oficial da coisa toda. Ele nos mostra os equipamentos e roupas que usaríamos: uma primeira camada (calça e blusa) de lã de merino, fleece de poliéster com lã resistente à água, jaqueta de pluma de ganso ultraleve feita para expedições, jaqueta impermeável, calça para neve, casaco tipo parka com muita pluma e tecido impermeável, botas duplas para neve até o joelho, duas camadas de meias de merino, três tipos de gorros, três camadas de luvas, protetor de pescoço, sacos estanques, dois óculos, faca, lanterna de cabeça, comidas liofilizadas, pá, fogareiro, garrafa térmica, colher e caneca, saco de dormir e barraca para -30o C.
Já devidamente encapotados e com uma muda de roupa para os próximos dias protegida no saco estanque, conhecemos nossos guias. Pilotaríamos os próprios trenós e haveria uma guia (musher) experiente para cada três de nós, pebas das neves. Minha guia se chama Anna, uma sueca alta e de bochechas rosadas, gentil para ensinar a pilotagem e firme quando tem que nos socorrer na trilha. Sim, precisamos de socorro. Mais de uma vez.
O TRENÓ É GRANDE. Tem cerca de dois metros de bagageiro na frente e, para trás, dois finos apoios para os pés que medem um metro e se parecem com esquis. Nesses apoios que me equilibro, segurando a barra do trenó com as mãos enluvadas. Entre os apoios de pé está o freio “macio” – uma placa de plástico que fica o tempo todo em contato com a neve e onde subimos quando queremos dar uma segurada na velocidade. Eu, com meu peso pena, passei 80% do tempo com ao menos um dos pés no freio macio. Há ainda o freio “duro”, com garras de metal que afundam na neve para frear o trenó rapidamente.
Da frente dessa caranga sai a corda que nos conecta aos cães. Em nossa expedição, cada trenó seria puxado por cinco cachorros (dois atrás, um no meio, dois na frente), mas esse número pode variar, dependendo do percurso, da duração e das condições da neve. Os cachorros usam um arnês, um peitoral que envolve o tronco e deixa os membros livres. Da corda principal, saem cordins que se prendem à parte de trás dos arneses. Os cães que correm em dupla também têm um cordim entre suas coleiras para que se mantenham próximos. Meu conjunto inteiro – trenó, corda, cachorros – mede cerca de 10 metros.
Enquanto Anna nos passa as instruções básicas, os cães uivam e latem loucamente, já tentando arrastar o trenó. A adrenalina canina é palpável no ar. Eles sabem que vai ter passeio e não tem nada que amem mais do que sair correndo com um monte de outros cães. Anna sorri com a barulheira, mas depois fica séria e nos ensina a regra número 1: “Nunca, jamais, não importa o que aconteça, solte o trenó. Mesmo que você esteja sendo arrastado, mesmo que esteja muito rápido. Se você soltar, eles vão correr por horas sem parar e será muito difícil resgatá-los”, diz. De pé em cima do freio duro, percebo que a coisa é séria. Preciso colocar toda força e peso ali para que o trenó não se mova.
Anna alivia o freio duro de seu trenó, que começa a se mover lentamente, provocando uma reação em cadeia. Disparamos rumo ao abismo branco. A expedição começa pela vastidão congelada do lago. Meus cães seguem os cães de Anna, os cães do trenó de trás seguem os meus e assim a conexão dos grupos se estabelece. Sob nós, 30 centímetros de gelo nos separam das águas ainda líquidas. Para todos os lados, neve e gelo, com montanhas ao longe. A cada 15 metros, um poste de madeira marca o caminho. Sem curvas ou desnível, tudo o que temos a fazer é frear quando preciso. Conforme a velocidade se estabiliza, arrisco colocar os pés nos apoios, mas logo Pirko e Arno alcançam o trenó da frente. Entendo que não dá para liberar a velocidade máxima. Entendo também que é preciso estar o tempo todo conectada com minha equipe e com o que me rodeia. Andar naquele espaço aberto não é difícil, mas exige foco constante.
Alterno incredulidade com a fome de absorver tudo, em cada mínimo detalhe, para nunca mais esquecer. Me atento aos sons e movimentos. O barulho do trenó deslizando pelo gelo abafa os passos dos cachorros. É um som meio seco de raspadinha, shhhhhhhhh… O gelo não é totalmente plano, mas ondulado, como um mar calmo que preserva sua natureza. A frente do trenó abaixa e levanta, às vezes se chocando com mais força contra o chão. O balanço me lembra os barcos de alumínio, aqueles que chamamos de voadeiras. Engraçado eu pensar naquele momento em comparações praianas para explicar um lugar tão oposto. Talvez naturezas opostas se sobreponham de formas que a gente não perceba.
Às vezes eu “bugo”. O que é aquele lugar? Como eu havia ido parar ali? Aí eu rio, falo comigo mesma e com os cachorros, agradeço o caminho que me trouxe até aquele momento na vida. Foram três horas e cerca de 40 quilômetros de dogsled naquele dia, vividos em cada um de seus segundos. E nenhum momento de frio, apesar dos -15oC do termômetro e do vento na cara que, de ameaça, se transformou em benção.
CHEGAMOS AO LOCAL ONDE PASSARÍAMOS A NOITE, uma área com neve relativamente plana na beira do lago Väkkärä. Tombamos os trenós para que não deslizassem e os amarramos em árvores. Alimentamos nossos cães e então Daniel nos reúne para mostrar como montar as barracas e nos manter aquecidos durante a noite.
Chovia, mas não ventava. Protegida pelas roupas impermeáveis, agradeci estarmos sob água e não sob forte ventania. A barraca era grande, cheia de reforços para condições extremas, e demandou um certo esforço para que firmássemos todas as fixações na neve fofa. Teria sido treta com vento. Depois, seguindo as orientações de Daniel, jogamos neve em todo o entorno da tenda, enterrando as junções com o solo. Dentro dela, colocamos os isolantes térmicos duplos e, em cima, os sacos de dormir de pluma.
Acampamento montado, deu para conhecer melhor todos os integrantes da expedição. Havíamos passado o dia em fila indiana e finalmente nos sentávamos em roda, podendo nos ver e conversar. Éramos quatro homens e dez mulheres. Da América do Sul, havia apenas eu e Martin Del Rio, que vinha sempre atrás de mim na linha dos trenós e foi testemunha de todas as minhas lutas e alegrias. Nathalie, uma jornalista belga de 65 anos, era a mais velha e a menos experiente em esportes outdoor. Estava insegura no começo do dia e radiante por ter vencido a primeira etapa. Fiquei feliz por ela. Realmente, com orientação, incentivo e coragem podemos realizar coisas impensáveis.
Na hora de dormir, me enfio no sleeping bag somente com a primeira camada de roupa. “O saco de dormir é uma cápsula que retém calor”, havia dito Daniel. “O que aquece esse casulo é o calor do nosso próprio corpo. Entrar no saco de dormir com muitas roupas impede a liberação do calor necessário para aquecer o casulo”. Ele também nos orientou a dormir com ao menos duas ventilações da barraca abertas, para que o ar circulasse. “Se dormirmos com tudo fechado, o calor vai condensar. E umidade é nossa maior inimiga, mais do que o frio.” Daniel sabe tudo: passo a noite bem quentinha, ainda que incomodada pelos calombos embaixo de mim. Devia ter caprichado no nivelamento da neve embaixo da barraca, para ficar mais plana.
Na manhã seguinte, desmontamos acampamento e refazemos o processo de derreter neve para o café da manhã. Também enchemos nossas garrafas térmicas, pois o almoço seria liofilizado e no meio do nada. Melhor ter a água quente já pronta.
Assim que nos aproximamos dos cachorros, começa o escarcéu de latidos, ganidos e uivos. Passo um tempo conversando e acarinhando cada um dos meus cães, coloco seus arneses, prendo-os na corda, prometo que será um dia lindo e que nos divertiremos muito. Eles estão animados, e eu também.
DIA LINDO, SIM, MAS DIFERENTE. As condições da neve depois da chuva da noite anterior fizeram com que Daniel mudasse nosso percurso – teríamos que trocar o estradão do gelo liso por um singletrack nas montanhas.
Sou mais da trilha do que do asfalto, então, quando entramos nos caminhos estreitos da floresta de pinheiros, gosto da mudança de paisagem e de termos que ser mais ativos. Nas subidas, passamos a ajudar os cães ficando com um pé sobre o apoio enquanto “pedalamos” a neve com o outro pé. Nas descidas, temos que frear mais.
Aí vieram as curvas. Imagina comigo: minha primeira dupla de cães está 10 metros à minha frente. Eles fazem a curva na trilha, mas a corda puxa o trenó numa diagonal, e me vejo cortando várias quinas. Só que nos dois lados da trilha há pelo menos meio metro de neve, então o trenó entra inclinado, quase tombando. Uso todo meu peso para contrabalançar – às vezes dá certo, às vezes não. Quando o trenó tomba, piso na neve para levantá-lo e minha perna afunda até o joelho. Tenho que me desenterrar e endireitar o trenó ao mesmo tempo em que salto para o freio duro, ou os cachorros, alucinados para alcançar o trenó da frente, me arrastam. Sinto o suor da tensão e penso que preciso me acalmar para que minha primeira camada de roupa não fique úmida.
Sigo assim, em modo salve-se quem puder, entre quase e por pouco, capotando e desvirando. Na minha frente, Anna não tinha nenhuma dificuldade. Atrás de mim, Martin ria e às vezes capotava também. Começo a tentar estratégias diferentes. Seria o trenó como uma mountain bike e eu deveria usar a barra para tentar direcionar, como um guidão? Não, impossível. Muito pesado. Além disso, as “rodas” da bike estavam lá na frente. Seria o trenó uma canoa, em que movemos a traseira para direcionar a frente? Também não parecia funcionar.
Na parada para o almoço, rimos de todos os perrengues. Pergunto para Anna como, afinal, se dirige um trenó de 10 metros em uma trilha estreita com curvas fechadas. “Não é fácil mesmo”, ela responde. “Esse percurso que vocês estão fazendo não é para iniciantes, mas não tínhamos outra opção. Vocês estão se saindo bem”, diz. Aí ela deu a explicação que mudou tudo: “Quando vir uma curva para a direita se aproximar, coloque o peso no apoio da esquerda e diminua a velocidade com o freio macio. Isso vai fazer o bico do trenó tender para a direita. Aí, quando seu corpo estiver quase na curva, é preciso fazer um movimento rápido jogando o peso e o quadril para a esquerda. Talvez você precise fazer isso mais de uma vez”. Ou seja, começa como bike e termina como canoa. E só funciona se fizermos cada um desses movimentos no momento certo.
A segunda metade do dia traz as mesmas curvas, subidas e descidas, mas menos quedas. Ainda assim, sinto que estou sobrevivendo com força bruta, e não técnica – algo que meus ombros doloridos confirmariam no dia seguinte.
Depois de seis horas e cerca de 60 quilômetros, chegamos no lodge onde dormiríamos, dessa vez em cabanas e não em barracas. Solto e alimento meus cães sem a ajuda de Anna, organizo meus equipamentos, me preparo para comer. Penso na turma que fez a expedição completa, de 300 quilômetros acampando todas as noites, e imagino como eles também devem ter encontrado aos poucos o seu fluxo, sua rotina.
NAQUELA NOITE, temos a companhia de Martin Axelhed, CEO da Fjällraven há 19 de seus 48 anos. Entre vinhos, queijos e carne de rena, conversamos sobre a vida no Norte do planeta, a história da expedição Polar e os desafios de se liderar uma marca que busca o mínimo impacto ambiental em um mercado voltado para o lucro. Investidores e acionistas costumam ter outras prioridades, consumidores muitas vezes não podem pagar o preço mais alto de um produto feito para durar para sempre. Usar matérias-primas de primeira qualidade, oferecer serviços de reparo, incentivar os clientes a não comprar, excluir de toda a linha de produção itens que tenham produtos químicos prejudiciais à saúde e à natureza – tudo isso é uma escolha correta e cara, que a marca reafirma a cada coleção.
Em uma carta aberta divulgada por Martin em janeiro deste ano, ele diz a seus consumidores: “Nossos produtos são feitos para durar décadas. Se prometermos continuar a trabalhar duro para fazer produtos duráveis e de baixo impacto ambiental, você promete fazer esses produtos trabalharem duro também? Usá-los por muitos anos e não os substituir daqui a uma ou duas temporadas? Isso pode demandar um pouco mais de cuidado e talvez alguns reparos com o passar do tempo, mas vai valer a pena.” É um posicionamento parecido com o da marca Patagonia, mas, ao contrário da empresa norte-americana, a Fjällraven só começou a falar sobre ele recentemente e de forma discreta. “Antes de nos gabar de qualquer coisa, eu queria que fôssemos realmente competentes em tudo o que estávamos nos propondo. Agora tenho confiança que estamos prontos”, afirma, suecamente.
É irônico que, mesmo com todo esse foco na funcionalidade e sustentabilidade das peças, a marca tenha ganhado o mundo com um item fashion: as mochilas coloridas Kanken – mais conhecidas como “aquelas mochilas da raposinha”. Não foi algo planejado: as mochilas eram sucesso nas costas dos estudantes escandinavos, mas viraram moda na América depois que os filhos de Madonna e de Mark Zuckerberg foram fotografados com uma nas costas. Na Ásia, a explosão aconteceu graças a uma boy band norte-coreana que passou a usar o produto. Digo a Martin que essa sorte pode ter se transformado também no maior desafio da marca – ser reconhecida por seus equipamentos técnicos e não por um item casual de moda. Ele concorda.
Talvez a fofura da raposinha que enfeita toda a linha de produtos da marca não ajude a reforçar o lado durão da Fjällraven. Mas esse animal foi escolhido como símbolo da empresa por ser uma das espécies mais antigas da península escandinava, com uma capacidade única de sobreviver em terrenos isolados, montanhosos e gelados. Na Suécia, um aventureiro experiente que consiga lidar com a natureza nórdica é chamado de “uma verdadeira raposa do Ártico”. É esse lado da raposa que Martin nos convida a vivenciar.
O CAFÉ DA MANHÃ TEVE GOSTO DE DESPEDIDA. Nos preparamos para a etapa saideira, de 30 quilômetros. Abraço meus dogs, já com saudade. O dia está ensolarado e não muito frio.
Começamos por trilhas na floresta, meu trenó obedecendo desajeitadamente às minhas reboladas. Depois entramos em mais um lago – o mesmo branco, a mesma vastidão, mas agora com nuances que antes me eram invisíveis. De novo me empenho em internalizar tudo o que me envolve. O gelo, o silêncio, o lago, o sol, o trenó, o freio embaixo dos meus pés, o balanço, os passinhos dos cachorros.
Nesse dia podemos acelerar um pouco mais, quase não diminuo a velocidade. Pirko, Aino, Akke, Esko e Hedwig não olham nenhuma vez para trás e eu sei que estavam contentes. Eu também estou – uma felicidade ampla como aquela paisagem. Contemplo o branco infinito como se fosse o mar, com olhos relaxados e amorosos.
Ao longo de três dias, dirigi meu próprio trenó por vastas paisagens congeladas, experimentando um mundo completamente diferente do que conheço. Aprendi habilidades básicas de sobrevivência no frio, viajei por lagos de água sólida e florestas em que pinheiros saíam da neve fofa. Entendi como cuidar dos meus cães e nos tornamos um time de verdade. Temia o frio, que não foi um problema. Subestimava o trenó, que me trouxe desafios divertidos.
Tudo intenso e lindo. Agora aqui, catapultada de volta ao meu cantinho de trabalho, ressurge a sensação de tudo ter sido um sonho. Mas não desperto – ele faz parte de mim, esculpido em minhas memórias, fixado em minhas células.
Nossos cães do Ártico
Eles são alaskan huskies – um cruzamento de huskies siberianos com cães de pernas mais longas e pelos mais curtos, capazes de correr por mais tempo do que seus parentes da Sibéria, sem superaquecer. Tão diversos como os nossos vira-latas, podem ter pelagem cinza, preta, branca, malhada, e portes que vão de um pointer magricelo a um rotweiller saradão. Os olhos variam do azul ao preto, às vezes as duas cores no mesmo cachorro, como David Bowie.
Uma vez que o rolê começa, fazem tudo sem parar de correr: dão grandes bocadas de neve para se hidratar, se jogam nas laterais fofas da trilha para se refrescar e, quando precisam fazer cocô, simplesmente diminuem um pouco o ritmo e abrem um pouco as pernas. Como na nossa expressão “c****** e andando”, só que correndo no gelo.
São super adaptados ao frio. Dormem ao relento numa boa e se sentem bem de verdade quando os termômetros baixam dos -15o C. Se estiver mais que -5oC, os guias procuram nem sair com os cachorros, pois eles sofrem com o “calor”.
Comem uma mistura de ração com carne vermelha, pela manhã (pelo menos uma hora antes de começarem a correr) e à noite, na chegada. Somente os cães que têm bom apetite saem em expedições de mais de um dia. É imprescindível que eles reponham as calorias gastas para se recuperarem de um dia para o outro.
Desde pequenos já é possível sacar a personalidade desses ultramaratonistas de quatro patas, e é a combinação de personalidade e porte que determina que papel eles desempenharão na matilha. Se o filhote for mais leve e tiver um olhar focado, atento, ele será colocado com líderes mais velhos para aprender a encabeçar o time. Se for mais forçudo e relaxado, vai aprender com os cães que ficam mais para trás na linha, entregando força bruta.
Os canis têm dezenas de cachorros. Depois de uma expedição, os cães curtem uns dias de descanso e outros saem na próxima jornada. É responsabilidade do musher – aquele que dirige o trenó – estar sempre atento ao seu time canino. Se perceber que algum deles está cansado, mancando ou indisposto, ele vai para dentro do trenó e passa a curtir a viagem como passageiro.
(Não) Fica frio
Nosso grupo foi agraciado com temperaturas até que amenas para o Ártico: cerca de -10oC durante o dia e -20oC durante a noite. Mas as condições podem ser bem extremas nessa parte do mundo. A seguir, um pouco do que aprendemos sobre frio extremo com nossos guias escandinavos.
– Vai dormir na neve? Tenha um saco de dormir e um isolante térmico para baixas temperaturas e se enfie no saco de dormir com o corpo ainda quente, usando apenas a primeira camada de roupa. Se for preciso, coloque outra camada (uma jaqueta de pluma, uma parka grossa) por cima do saco de dormir. Ainda frio? Uma garrafa de água quente dentro do sleeping vai ajudar a esquentar seu casulo.
– É vital se manter seco. Água conduz calor até 30 vezes mais rápido que o ar. É imprescindível administrar o suor para evitar que o corpo fique úmido. Ar, ao contrário, é um péssimo condutor de calor – por isso o uso de plumas em sacos de dormir e jaquetas.
– Em geral, três a quatro camadas de roupas oferecem a proteção necessária até para o Circulo Polar Ártico. A camada base afasta a umidade do corpo (lã é ideal), a camada intermediária transporta a umidade para longe da camada base enquanto fornece isolamento, a camada externa à prova de vento e água mantém o frio fora e o calor das camadas internas dentro (ela deve ter zíperes laterais liberar calor extra). Uma camada de reforço pode ser usada durante o descanso ou quando o corpo gera menos calor.
– A cabeça é uma ótima forma de regular o calor corporal. Um gorro à prova de vento ou com abas de orelha são boas opções.
– Para atividades convencionais de inverno, deve-se levar um par de luvas mais finas e um mais grosso. Para expedições de inverno mais extremas, você precisará de uma luva fina de cinco dedos feita de lã, uma luva intermediária de trabalho de cinco dedos com um forro de lã removível e, finalmente, para longos dias em um trenó puxado por cães, uma grande luva que vai sobre as outras luvas, também com forro de lã.
– Para o dogsled, espere usar um calçado dois ou três números maior que o seu tamanho habitual. Esse espaço extra permitirá que o ar mantenha seus pés bem isolados. A camada externa deve manter a umidade fora; por dentro, uma sola interna grossa de feltro é a principal arma de isolamento.
– Meias são tão importantes quanto seus calçados. Traga vários pares, de lã preferencialmente. Pendure o par úmido para secar em um lugar quente, como dentro de sua jaqueta externa.