Ao descer do pequeno avião e tocar o solo, a primeira coisa que fiz foi me agachar e colocar um pedaço daquilo na boca. O cubo salgado beliscou minha língua e desenganou supostas desconfianças. Ao meu redor, estava mesmo mais de 11 mil quilômetros quadrados de puro sal e a comprovação de que aquele oceano branco não era de gelo. A imensidão do Salar de Uyuni, no sudoeste da Bolívia, foge às compreensões de um viajante comum e não se assemelha, a principio, a nenhuma maravilha natural da Terra. A sensação de solidão expressa pelo maior deserto de sal do mundo chega a ser dramática.
Quase como uma miragem, o lugar poderia reproduzir uma pintura do realismo pós-moderno, porém com registros históricos de 80 milhões de anos de idade. Acredita-se que a formação do deserto tenha origem a partir de um braço do Pacífico: a água do oceano teria sido aprisionada durante o processo de formação da cordilheira dos Andes, transformando-se num imenso lago. Mas o contraste das temperaturas locais (calor escaldante de dia e até -20ºC à noite, no inverno) e as raras chuvas não permitiram que o lago se perpetuasse e no lugar surgiu o Uyuni, para alegria dos amantes da natureza. Antigamente, acreditava-se que só poderia haver tanto acúmulo de sal em lugares de clima quente. Mas o Uyuni é contraste desta teoria.
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Escondido a 3.650 metros de altitude, o deserto está inserido numa depressão do altiplano andino. Por isso, basta se afastar das suas bordas cerca de 20 quilômetros para perder as referências visuais do lugar. O tamanho do lugar equivale à metade da área do Sergipe. Estima-se que neste espaço existam 10 bilhões de toneladas de sal, dispostas em 11 camadas, de dois a 20 metros de espessura cada uma. Na porção central o sal chega a atingir 120 metros de profundidade. É sal que não acaba mais. E o engraçado é que por causa da grande concentração de lítio no solo, as bússolas, muitas vezes, são ineficazes.
A cada passo pelo sal o chão se quebra produzindo pequenos estalos. A sensação é de que estamos provocando pequenas rachaduras num iceberg prestes a se romper. No período de estiagem – de maio a novembro – a paisagem parece uma gigante colmeia. O solo seco tem o formato de lajotas hexagonais, produzindo um infinito mosaico. Uma possível explicação seria de que esta geometria macroscópica é o reflexo da organização microscópicos dos átomos de sal, que quando cristalizado também tem uma forma geométrica.
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Já no verão, o Uyuni apresenta outra feição. A água da chuva em contato com o sal forma uma fina camada líquida, de até 25 centímetros, que parece um espelho refletindo o céu e as nuvens. Quem visita a região nessa época sabe da singularidade do efeito visual produzido e da dificuldade de distinguir terra e céu. É uma sensação parecida com o flutuar entre as nuvens, garantem os forasteiros. Também este é o período mais perigoso para atravessar o lugar de carro por causa dos chamados baixios, que são buracos capazes de engolir um automóvel inteiro.
Chegando em Salar de Uyuni
Como o Uyuni é o maior campo de pouso do mundo, eu e um grupo de documentaristas mexicanos fretamos um monomotor na cidade boliviana de Cochabamba para irmos até lá. De cima, o contraste que víamos das cores das paisagens que rodeiam o deserto branco é literalmente estonteante. O piloto havia preparado uma garrafa de chá de coca para que não sofrêssemos com a altitude elevada. Do alto, seguimos o percurso dos caminhões carregados de sal, que iam pela estrada rumo à pequena cidade de Uyuni, a 30 quilômetros do deserto – o vilarejo é a porta de entrada boliviana para uma das regiões mais áridas do mundo, pois vizinho ao Salar está o deserto do Atacama, ao norte do Chile. Depois de três horas de vôo, bastava escolhermos um local para aterrissar perto de veículos off-road que já nos aguardavam no chão.
O Salar de Uyuni foi eleito símbolo turístico da Bolívia. Contudo, o povoado de Uyuni perdido no meio do nada tem apenas 10 mil habitantes e só não é quase uma cidade fantasma por conta dos estrangeiros, que circulam em camionetes de agências turísticas. Uma parte dos moradores do vilarejo trabalha no quartel do exército, outra em minas de prata da região e uma parcela cada vez maior com o turismo. Junto com o vizinho Atacama, o Uyuni atrai visitantes do mundo inteiro que desejam conhecer a região mais inóspita da América do Sul. Uma opção inusitada é pernoitar no hotel Playa Blanca, construído totalmente com blocos de sal (paredes e móveis). Foi lá, na única opção de hospedagem no Salar, que ficamos pelo preço de 60 dólares a diária.
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Ao caminhar pelo deserto a claridade é tão forte que ofusca a visão e o visor da câmera fotográfica se perde com tamanha intensidade de branco. Mas clicar essa monocromia não é o único atrativo neste tapete salgado. Há no horizonte alguns vulcões inativos com picos nevados e no chão pequenas ilhas de terra, que guardam o bem mais precioso da fauna e flora local, a água. Os vulcões e essas ilhas d’água são as poucas referências visuais para os motoristas que conduzem turistas pela região. Mesmo os nativos admitem as dificuldades de navegar pelo salífero.
É também nas madrugadas de céu límpido que o Salar de Uyuni esbanja o máximo de estrelas que a visão humana poderia alcançar. Situado a centenas de quilômetros de qualquer fonte significativa de luz artificial, o céu é um verdadeiro paraíso para os entusiastas de astronomia.
Depois de levantarmos voo novamente seguimos para a ilha Del Pescadores, famosa pelos seus cactos gigantescos. Realmente tamanha excentricidade a transforma num dos lugares mais exóticos que um ser humano poderia visitar. Em terra, subi em meio a cactos de até 10 metros de altura até o cume da ilha.
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De volta aos ares, perseguíamos desbravadores que pilotavam suas camionetes por estradas imaginárias. Deve ser incrível dirigir livremente rumo ao nada. De repente, avistei uma das cenas mais instigantes entre os aventureiros que encontrei no deserto: corajosos ciclistas encaravam a travessia de 170 quilômetros de horizonte sem fim. Mais pareciam almas penadas.
No território onde quase nada sobrevive, pássaros batem asas e perseguem pequenos roedores. Enquanto isso trabalhadores amontoam o sal para secagem e purificação. Às margens do Salar de Uyuni há aldeias que abrigam homens e mulheres que tiram seu sustento da exploração artesanal do sal. São pessoas de pele seca e escurecida pela luz solar, que é duplicada pelo reflexo dos cristais de sal. O clima hostil obriga as pessoas que raspam o sal da superfície a protegerem a boca e os lábios com lenços, além de não abrirem mão dos óculos escuros. Mas é um trabalho árduo e pouco rentável: cerca de 20 mil toneladas de sal são extraídas anualmente da região, quase nada se compararmos com o Rio Grande do Norte, que extrai 4 milhões por ano.
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Já de volta no voo à Cochabamba, desfrutei de um poético rasante pela laguna Poopó. A liberdade de seus flamingos rosados em meio às cores do altiplano me causou devaneios hipnóticos. Adormeci e já acordei na metrópole. Lembrei-me então da famosa pintura de Salvador Dali, a Persistência da Memória (diz a lenda que o Uyuni já inspirou o catalão), e pensei: “será que acabara de passar por uma experiência onírica?”. Assim como nas artes, as obras reais geram um efeito de irrealidade, traduzidas no paradoxo “é tão perfeito que não pode ser real”.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2008 e atualizada em fevereiro de 2020)