Para a minha primeira viagem de bike, escolhi a região do lago Titicaca, na divisa entre Bolívia e Peru

Texto e fotos por Igor Botelho

O lago Titicaca, sagrado para os incas, fica a 3.800 metros de altitude. Sua volta completa totaliza 560 quilômetros de muita cultura e inspiração, num local que foi berço de uma das civilizações mais respeitadas na humanidade. Por tudo isso o escolhi como destino de minha primeira viagem de bike, em que rodei mais de 700 km, dando a volta no lago e conhecendo cidadezinhas próximas, cheias de ruínas históricas de civilizações pré-incas.

Minha aventura em cima da magrela – que eu batizei de Adelante (“Adiante”), já que passaríamos somente por países de língua espanhola – começou ainda na Bolívia, em Tiwanacu, berço da civilização Inca e primeira cidade de minha volta ao Titicaca. Os tiwanacus se estabeleceram no Altiplano Andino em aproximadamente 1500 anos a.C. e criaram todo o sistema de irrigação, de plantio em curvas de nível, de construções piramidais e de estudos astronômicos regidos pelo deus Sol, que orientava sobre melhores épocas para plantio e, no meu caso, melhores horas para pedalar. Os Incas ficaram famosos por sua inteligência, mas poucos sabem da dominação que exerceram sobre os Tiwanacu, Pucara e Taraco, povos que sofreram invasões incaicas e foram dizimados por volta de 400 anos d.C.

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Após visitar as ruínas e museus em Tiwanacu, comecei a pedalar sentido fronteira entre Bolívia e Peru. Meu primeiro dia de pedal teve longos 92 km. Passei por Desagaudero, por funerais em Sillustani, pela simpática cidade de Pomata, por paisagens incríveis e pessoas humildes que não hesitavam em me desejar uma bom dia. Ah, e llamas, muitas llamas.

Até chegar em Puno, estava tudo na santa paz. Foi lá que uns 20 garotos começaram a me perseguir de bike, com as piores intenções. Mas Lance Armstrong “baixou em mim” e, mesmo com os caras tentando me parar, aumentei as marchas e pedalei acima de 45km/h, carregando 40kg no alforje, até uma estação policial. Dormi em Puno para, no dia seguinte, visitar as excêntricas ilhas Uros.

Para entender o que são as ilhas, imagine uma planta chamada Totora. Agora imagine bandos de Incas chegando para dominar povos que viviam na beira do lago há 1500 anos. Visualize esses povos pegando as totoras, que flutuam na água, e construindo balsas para escapar da morte, em direção ao meio do lago. Foi assim que nasceram e evoluíram as 48 ilhas flutuantes que hoje se espalham no noroeste do lago – cidades inteiras construídas com solo de totoras, casas de totoras, embarcações e cordas de totora, flutuando sobre o Titicaca num piso vegetal.

RODANDO: Catedral de Copacabana

No xadrez

Até então eu só havia pedalado em asfalto. Pouco depois de passar por Pucara (outra civilização que deu origem aos Incas), Taraco e Huancane, começaram as infinitas, frias, perigosas e pedregosas subidas em terra. Em alguns momentos era desesperador pedalar por 15 km em uma subida, carregando aquele peso todo na bike.

Em uma das noites, tive que recorrer ao delegado do vilarejo de Viquechico para pedir abrigo. Me disseram que na cidadezinha, rota da cocaína entre La Paz e Cuzco, era perigoso acampar. Tranquei a Adelante na solitária, deitei-me num beliche numa das celas, bem de frente a um arsenal de rifles, balas e pistolas. Foi uma noite de medo, principalmente depois que os dois únicos oficiais do distrito saíram para trocar balas com não sei quem. Mas correu tudo bem e no dia seguinte tomamos um típico café-da-manhã peruano: macarrão, frango, arroz, batatas, ervilhas e repolho, acompanhado de Coca-Cola – às 6h30 da manhã! Fora isso, os andinos costumam comer um delicioso cereal chamado Quinua, que é usado em sucos, sopas, saladas e outras invenções. Eu adorei e comia o tempo todo.

Continuei meu roteiro, passando por montanhas altíssimas e frias, pedalando somente de dia para evitar assaltos. Com a espiritualidade equilibrada com tantas energias que emanavam do lago, me sentia cada dia mais forte e bem disposto. Em meu último trecho de bike, pedalei 60 km em asfalto até o estreito de Tiquina, onde atravessei de balsa até a estrada que me levaria a meu destino final, Copacabana. Foi minha noite mais difícil. Meu pneu furou e, para meu sofrimento, nos últimos 38 km finais havia uma subida de 29km. Tive que montar acampamento a 4.300m de altitude, com frio e chuva, às 22 horas. Minha garrafa de água estava vazia e as últimas comidinhas que eu levava serviram de presente a dois garotinhos em estado de desgate maior que o meu.

Sobrevivi à noite escrevendo em meu diário e vendo fotos da minha digital, tremendo de frio. Na manhã seguinte, catorze dias depois de começar a volta ao lago, cheguei em Copacabana, uma cidadezinha na beira do azul e gigantesco Titicaca, onde há uma catedral visitada por bolivianos do país todo, um local de estudos astronômicos da antiguidade e, o maior atrativo, o ponto de partida dos barcos que levam às ilhas do Sol e da Lua.

Visitei a ilha do Sol num dia abençoado com os raios quentes e claros que vinham do céu. A ilha abriga a pedra Titicaca, que deu nome ao lago, e uma mesa de sacrifícios em um mirante lindo. De certo ponto é possível admirar outras três ilhotas que formam um triângulo no lago; submersa bem no centro deste triângulo, Jaques Custeau e sua equipe descobriram uma cidade Inca, com muitas lendas e muito ouro.

SACRIFÍCIOS: Mesas na ilha do Sol

Despeeeeenca

Voltei para La Paz de ônibus, porque chegar de bike na capital boliviana é muito perigoso. Lá contratei uma operadora local para conhecer o maior downhill do mundo, na estrada conhecida como “estrada da morte”. Se você, como eu, gosta de um pouquinho de adrenalina (entenda como PERIGO), não pode perder esse rolê. No total são 64km pra baixo por 3.345 metros de desnível, partindo de um cume a 4.640 metros de altitude, de onde saímos com neve, chuva e muito, muito frio. Foram sete horas de descida realmente perigosa, costeando uns abismos e passando por curvas fechadíssimas.

Optei por alugar uma bike da agência (contratei os serviços da Madness – www.downhill-madness.com), garantindo que eu não teria nenhuma avaria no meu equipamento. O roteiro custa de 30 a 150 dólares, com lanches e transporte até o começo do donwhill inclusos. O que difere de um pacote para o outro é a bike: algumas têm suspensão traseira, outras não. Foi ótimo ir com a operadora, porque conheci uma galera da Nova Zelândia, Austrália, Inglaterra que haviam comprado o mesmo pacote que eu, e passamos o dia todo juntos. A paisagem é deslumbrante e, se feito com responsabilidade, o passeio vai se tornar um dos dias mais inesquecíveis da sua vida, como foi para mim.

A experiência de viajar sozinho também é inesquecível, uma verdadeira pós-graduação de vida. Descobri que viajar sozinho é estar muito bem acompanhado. É procurar e valorizar os apertos de mão, os abraços, as conversas, o ar puro, o sol, a lua, os sorrisos. O valor das coisas sólidas, palpáveis, pode até ser medido, mas o valor das sensações e emoções é muito maior e imensurável. Gastei “sólidos” 450 dólares de passagem e 10 dólares por dia, e fiz a viagem mais louca e bacana da minha vida.

Agradecimentos: Dalton Maziero (arqueólogo brasileiro que mapeou o Titicaca a pé) e Eliana Garcia e Rodrigo Teles, do Clube de Ciclotursismo, que deram todas as dicas sobre o lago.

ESTRADA DA MORTE: Downhill

Quer sair no pedal sozinho?

Faça um check-list de tudo o que você precisa para não ter surpresas desagradáveis pelo caminho. Alguns itens que não podem faltar:

• Uma bike em bom estado, com no mínimo 21 marchas (para aliviar o esforço de pedalar com bagagem) e um câmbio resistente, fácil de regular. Nem sempre o câmbio top de linha é o melhor para este tipo de pedal.

• Os pneus sofrem um desgaste muito grande com o peso e a quilometragem. Saia com pneus novos ou em excelente estado.

• Alforje (bagageiro para bike) impermeável ou com capa contra chuva é indispensável. E nem pense em viajar com peso nas costas ou cintura.

• Leve ferramentas, câmaras reservas, remendos para pneus, bomba de ar, cabos de aço extra para câmbio e freios, pastilhas de freios extra, óleo para lubrificação, gomos extras para correntes – enfim, tudo que você pode precisar durante a viagem. Aprenda mais sobre mecânica e manutenção com o seu mecânico ou em cursos.

• Leve roupas específicas: bermudas ou calças de ciclismo, jaqueta corta-vento, gorro, luvas com aderência e luvas com dedos (para frio, vento e noite), calças corta-vento e blusa segunda pele. Dependendo de seu destino, o vento, frio e chuva podem ser grandes inimigos.

• Barraca, isolante térmico e saco de dormir, para poder passar a noite em qualquer lugar.

• Sacos-estanque, para levar câmeras, objetos que se degradam com água e roupas secas.

• Deixe câmara reserva, ferramentas e alguns alimentos rápidos em bolsas presas no quadro da bike, para evitar perda de tempo em trocas de pneus ou reabastecimento. Bolsa de guidão é uma mão na roda para deixar as coisas importantes sempre à mão.

• Caramanholas presas ao quadro: a hidratação é um fator decisivo entre o sucesso e o fracasso de sua viagem.

• Kit de primeiros socorros com medicamentos para náuseas, febre, desidratação, dores e curativos. Aprenda a estancar sangue e agir de forma correta em situações de emergência.

• Instale um “pezinho” na bike para poder parar a bicicleta em pé durante os descansos.

• Ciclocomputador que registre a distância percorrida e velocidades total e média, para que você sempre esteja com o controle de sua performance, se localize fácil entre trechos/cidades e não force seus limites.

• Lanternas. Para garantir visibilidade se você precisar pedalar à noite (evite isso por questões de segurança), utilize luzes halógenas ou mesmo um head lamp no guidão.

• Mapas, textos, guias e referências. Todas as informações que você conseguir serão valiosas. Converse com pessoas que já conhecem a região.

• Capacete. Nem cogite sair de casa sem ele.

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(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de abril de 2006 e atualizada em maio de 2019)







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