Aretha vem do grego “Areté” (‘αρετη). A palavra quer dizer “excelência”, “virtude”, o cumprimento do propósito para o qual o indivíduo é destinado. Nesse sentido, não haveria melhor nome para a montanhista Aretha Duarte: ela está se preparando para se tornar a primeira brasileira negra a escalar o Everest. “Até hoje apenas 25 brasileiros chegaram ao cume da maior montanha da Terra, sendo apenas cinco mulheres – e nenhuma dessas pessoas era negra”, diz a moça. No que depender dessa campineira cheia de “areté”, o desafio será realizado com sucesso.

Aretha Duarte é negra e escolheu praticar um esporte historicamente branco e elitista. Conheceu o montanhismo em 2004, durante a faculdade de educação física, e se apaixonou logo de cara. Aos 36 anos, ela trabalha como guia de atividades outdoor na agência Grade6 desde 2011. É a primeira pessoa de sua família a concluir o ensino superior, um marco importante para uma mulher que nasceu e cresceu na periferia de Campinas, interior de São Paulo. 

Currículo para um projeto do porte do Everest ela tem: Aretha já participou de expedições ao argentino Aconcágua (6.962 metros), a montanha mais alta da América do Sul, ao Pequeno Alpamayo (5.450 metros) e Huayna Potosi (6.088 metros), na Bolívia, à avenida dos vulcões no Equador (com cume mais alto de 5.897 metros), ao russo Elbrus (5.642 metros), a montanha mais alta da Europa, e ao Kilimanjaro (5.895 metros), na Tanzânia, o mais alto da África. Isso sem contar as muitas expedições em trilhas e montanhas Brasil afora. 

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No Nepal, Aretha Duarte já fez o trekking ao campo-base do Everest (5.350 metros). “Até 2019, antes da pandemia, eu ia de uma a duas vezes por ano para alta montanha, mas nunca havia tido vontade de escalar o Everest”, conta. Ela associava o ponto mais alto do mundo com busca de um status celebrado por um certo desdém ao risco de morte. 

Em março de 2019, ela estava olhando o arquivo pessoal de fotos do montanhista Carlos Santalena, sócio da agência de viagens outdoor Grade6, ele mesmo um dos brasileiros ao chegar ao cume do Everest (dentro do projeto 7 Cumes, em que completou a escalada das maiores montanhas de cada continente). No Everest, Santalena foi o brasileiro mais jovem a chegar ao topo, com 24 anos. Uma das fotos chamou a atenção de Aretha, tirada no Vale do Silêncio, um trecho entre o acampamento 1 e o acampamento 2 do Everest. “Foi a primeira vez que considerei escalar a montanha ”, confessa. A oportunidade, por sinal, parecia estar batendo à porta. Ela guiaria um grupo de quatro pessoas até o campo-base do Everest em março de 2020, mas a pandemia levou ao fechamento das fronteiras e o adiamento de muitos planos para todos. 

Venda materiais recicláveis para a expedição

Sem desanimar, Aretha Duarte começou a dar forma ao projeto #ArethaNoEverest, de olho na temporada de 2021. Moradora da periferia de Campinas, desde abril de 2020 ela passou a buscar os recursos para bancar a expedição vendendo materiais recicláveis. Ela recolhe os materiais como coletora, enche o próprio carro e leva até um ferro-velho para vendê-los. “Na minha infância eu fazia isso. Era algo que estava ali, gratuito e disponível. Era dinheiro parado. Uma fonte digna, lícita, de buscar recursos financeiros”, conta. 

Não deixa de ser irônico e reforça a sensação de que há realmente um destino traçado no sonho de Aretha: ultimamente, o Everest tem virado notícia por causa do lixo. Do campo-base até o cume, há toneladas de lixo levado pelos montanhistas, além de cadáveres ocultos pela neve que cai na temporada de inverno. No verão, parte da neve derrete, expondo detritos e corpos. Fazem parte do lixo restos de alimentos que não se decompõem por causa do frio, dejetos humanos, embalagens, barracas, cordas, peças de roupas como luvas que escapam da mão por causa dos fortes ventos e muitos cilindros de oxigênio nos trechos mais altos. Um mutirão de limpeza de 2018 recolheu 11 toneladas de lixo no Everest. Comunidades locais como a do vilarejo de Namche Bazaar têm pedido para que cada turista que parte leve de 3 a 4 kg de lixo embora. 

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Dentro do prazo a que Aretha se propôs, é praticamente impossível que ela consiga levantar a totalidade do dinheiro apenas por meio da coleta de materiais recicláveis. Mas não importa: seu propósito é tão forte que está abrindo outras portas. “Meu conceito de reutilização do lixo vai além do projeto do Everest. É uma busca de mudança de visão, de novas escolhas para a próxima geração”, diz. Ela já começou mais essa empreitada no próprio bairro. “Aqui não existe a cultura de dar outros destinos ao lixo. E esse novo hábito poderia ser revertido em benefícios para a comunidade”, explica. 

Aretha Duarte foi de porta em porta nas 28 casas de sua rua para convencer famílias de que valia a pena separar o lixo para reciclagem. Eles entregavam na casa dela na sexta-feira, e a moça levava tudo para o ferro-velho no sábado. Com o dinheiro revertido, ela comprou mudas de flores para sua rua. 

Sozinha, Aretha já encaminhou para a reciclagem mais de uma tonelada de lixo. Principalmente durante os meses mais rígidos de quarentena, em que o trabalho como guia tem ficado meses em suspenso, o treino de Aretha virou a estafante rotina de recolher, separar e levar o lixo para o ferro-velho, que compra os recicláveis, com o próprio carro. Foram mais de 350 kg de papel e 400 kg de plástico apenas oriundos do descarte de uma fábrica de palmilhas. “Muitos conflitos surgiram quando decidir fazer isso. Existe muita representatividade em uma pessoa negra decidir chegar ao cume da mais alta montanha do mundo. Os recursos que escolhi têm a ver com sustentabilidade, com meu ambiente de vida”, afirma. 

Participe da vaquinha online

Aretha também criou uma vaquinha no Apoia.se para receber doações e está começando a buscar empresas que topem ajudar. Para a expedição ser viável, é necessário arrecadar US$ 70 mil. Também estão sendo vendidas camisetas de material reciclado e algodão orgânico, com o logo feito por um amigo, contendo a silhueta de seu rosto com o cabelo afro e o Everest de fundo. “Pessoas com muita expertise estão começando a me ajudar na divulgação do projeto. Gostaria de encontrar gente alinhada com meu propósito não só esportivo, como social”, diz. 

Aretha Duarte já sente que a luta está valendo a pena. Muita gente a tem procurado para falar como sua trajetória é inspiradora. Afinal, não é todo dia que podemos presenciar a luta de uma mulher negra da periferia para pisar no topo do mundo. Para ela, a semente que está sendo plantada no imaginário de pessoas negras pode demorar a brotar, mas um dia isso vai acontecer. E, então, Aretha terá sido a primeira – de muitos!







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