Prepare seu coração: a conexão entre saúde cardíaca e os esportes de endurance

Por Alex Hutchinson

coração
Quanto melhor o condicionamento físico, mais tempo você deverá viver, e não há nenhuma evidência de que o padrão se inverte quando esse condicionamento for excepcional. Foto: Shutterstock.

HÁ CERCA DE UMA DÉCADA, uma série de estudos indicava que uma quantidade moderada de exercícios poderia fazer mais mal do que bem ao coração. As manchetes dos jornais eram quase alegres – “Um Tênis de Corrida no Túmulo”. As evidências, por outro lado, eram fracas.

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O debate praticamente desapareceu das manchetes, mas as questões não foram completamente descartadas. Alguns cavaleiros do apocalipse alardeavam sobre os perigos de, digamos, treinar para uma maratona ou mesmo correr mais do que algumas vezes por semana, o que se mostrou absurdo. Há também muitos ultramaratonistas, triatletas de Ironman e viciados em ciclismo acumulando treinos demais, e, para essas pessoas, as evidências sobre o possível risco são mais esparsas e ambíguas.

O bom de todo debate é que ele sempre estimula uma série de estudos, cujos resultados começaram a pipocar aqui e ali nos últimos anos. Uma nova resenha no European Heart Journal, liderada por Gemma Parry-Williams e Sanjay Sharma, da St. George’s, Universidade de Londres, resume as evidências atuais sobre “o envelhecimento do coração do atleta de endurance”. Embora ainda haja muitas perguntas sem respostas, também vimos alguns avanços de 2016 para cá.

CÁLCIO NAS ARTÉRIAS

A evidência mais sólida para alterações cardíacas potencialmente negativas associadas ao treinamento de resistência de longo prazo está relacionada à elevação do escore de cálcio coronariano (CAC). O acúmulo gradual de placas ricas em cálcio causa o estreitamento e o enrijecimento das artérias coronárias, que fornecem sangue aos músculos do coração. Essas placas também podem se romper, bloqueando a artéria completamente e causando um ataque cardíaco. O CAC mede quanto cálcio se acumulou nas artérias, então qualquer coisa que faça esse número aumentar soa como uma notícia ruim.

A novidade é como interpretamos essas pontuações nos corredores. Quando o grupo de Sanjay estudou 152 atletas masters de endurance com idade média de 54 anos, 11% deles tiveram uma pontuação CAC maior que 300 (que é considerada muito alta), enquanto nenhuma das 92 pessoas de mesma idade no grupo de controle mostraram pontuação tão alta. Isso é preocupante, e outros estudos chegaram a conclusões semelhantes. No entanto nem todas as placas são iguais. Algumas são lisas, duras e calcificadas, sendo consideradas estáveis e com menor probabilidade de ruptura. Outras são uma mistura mais suave de colesterol, gorduras, cálcio e outras substâncias. Essas placas mistas são mais perigosas e têm probabilidade de se romper. Os atletas, ao que parece, tinham 72% de placas calcificadas estáveis, enquanto os controles tinham apenas 31%.

Não está claro por que a atividade física parece produzir mais placas em uma pequena minoria de atletas de endurance nem o motivo para elas parecerem ser mais estáveis. Existem várias teorias envolvendo estresse mecânico nas artérias, pressão alta durante o exercício, inflamação, níveis hormonais e assim por diante. Mas há um paralelo interessante que surgiu em pesquisas recentes: as estatinas, um tipo de medicamento amplamente prescrito para pessoas com colesterol alto, também parecem aumentar os níveis de cálcio arterial e produzir placas mais densas e estáveis, o que pode ser um das razões pelas quais são tão eficazes na redução do risco de ataques cardíacos. Isso não significa necessariamente que as artérias calcificadas não sejam motivo de preocupação, mas sugere que as pontuações CAC (que não conseguem diferenciar o cálcio em placas estáveis e instáveis) não têm o mesmo significado para atletas de endurance e não atletas.

FIBRILAÇÃO ATRIAL

Outro problema que parece mais comum em atletas de endurance é a fibrilação atrial (FA), batimentos cardíacos irregulares origina- dos nos átrios, as câmaras superiores do seu coração. É relativamente comum, afetando 2,7 milhões de norte-americanos, e é muito menos grave do que outras arritmias, como fibrilação ventricular. No entanto a FA está associada a um risco elevado de acidentes vasculares, insuficiência cardíaca e outros problemas – pelo menos em não atletas.

Segundo algumas estimativas, atletas de resistência de meia-idade têm cinco vezes mais probabilidade de desenvolver FA do que não atletas. A evidência não é perfeita: uma teoria alternativa é que os atletas são simplesmente mais propensos a notar seus batimentos cardíacos e perceber qualquer ritmo irregular, o que os levaria a ser diagnosticados com mais frequência. Os atletas também têm menos tendência a manifestar outros fatores de risco, como pressão alta, que se combinam com a FA para aumentar a probabilidade de se obter resultados sérios, como acidentes vasculares.

A questão mais interessante é: por que os atletas seriam mais suscetíveis à FA? De novo: há uma série de mecanismos diferentes propostos, incluindo mudanças no pulso elétrico dos batimentos cardíacos e alongamento, inflamação ou cicatrização dos músculos do coração. Existem também algumas possibilidades mais benignas: uma é simplesmente a de que corações maiores (resultado comum do treinamento de resistência) têm átrios maiores, então há uma área maior de tecido para que uma ligeira irregularidade seja capaz de desencadear uma FA. Ancorado nessa mesma lógica, temos um outro dado: pessoas altas são mais propensas a ter FA, e animais grandes, como elefantes e cavalos, sofrem mais desse mal do que os menores.

Artérias calcificadas não têm o mesmo significado para atletas de endurance e não atletas. Foto: Shutterstock.
CICATRIZ NO CORAÇÃO

A ideia de que exercícios de resistência prolongada causam fibrose, ou cicatrizes, no coração talvez seja o indício mais preocupante. A evidência aqui é bastante complicada, como explica a publicação. Quando passamos pela ressonância magnética cardíaca, podemos encontrar vários tipos de cicatrizes.

Um deles são pequenos pontos focais de marcas nos “pontos de articulação”, onde duas câmaras do coração se conectam. Segundo algumas estimativas, 40% dos atletas masters do sexo masculino e 30% das atletas masters do sexo feminino apresentam esse tipo de cicatriz. Acredita-se que seja o resultado de anos de bombeamento de alta pressão de grandes volumes de sangue, mas os estudos não encontraram nenhuma evidência de que isso leve a problemas de saúde. Você também pode encontrar áreas mais difusas de tecido cicatricial no músculo cardíaco, que podem ser o resultado de uma escassez temporária de oxigênio ou os efeitos colaterais de um surto leve de miocardite, inflamação do músculo do coração. Não está totalmente claro se os atletas de resistência apresentam mais esse tipo de cicatriz, em parte porque é difícil descobrir com qual grupo de controle compará-los. Pessoas sedentárias tendem a ter vários outros fatores de risco cardíaco, como colesterol e pressão arterial altos, o que distorce a comparação em uma direção. Mas, se você selecionar apenas pessoas sedentárias sem esses fatores de risco, terá um grupo saudável fora do comum, o que inclina a comparação na outra direção.

No grupo de 152 atletas masters de Sanjay, 11% tinham manchas difusas de tecido cicatricial. Destes, dois terços apresentaram um padrão consistente de miocardite, o que provavelmente não tem nada a ver com exercícios. O outro terço tinha um padrão consistente de falta temporária de oxigênio – ou, em outras palavras, um miniataque cardíaco subclínico. Apenas metade deles apresentava sinais de bloqueio relevante na artéria coronária e, em cada caso, o bloqueio era inferior a 50%, tornando improvável que tenha causado o tal miniataque cardíaco. Observe que, nesse ponto, estamos falando de três dos 152 atletas.

O grupo de controle de Sanjay era saudável: não atletas sedentários selecionados para ter os mesmos fatores de risco cardíaco que os atletas. Um estudo semelhante publicado no ano passado por pesquisadores da Universidade de Toronto comparou atletas de resistência que treinavam em média 7,6 horas por semana com um grupo de controle composto por pessoas ativas, que atendiam às diretrizes de saúde pública ao se exercitarem até três horas por semana. Nesse caso, os dois grupos apresentaram padrões equivalentes de cicatrizes, sugerindo que é simplesmente o desgaste que se acumula com a idade e a atividade.

MORTE

Enquanto escrevo isto, não consigo deixar de fazer um raciocínio: “Claro, há mais cálcio nas artérias – mas isso é bom, não é ruim! E a fibrilação atrial é só um pequeno incômodo para atletas saudáveis. E todos temos cicatrizes! É normal! Mesmo!”. Esse é o problema com os resultados aproximados: deixam espaço para barganha e não nos dizem o que realmente queremos saber, que, neste caso, é verificar se fazer muitos exercícios de resistência encurtará ou prolongará nossa vida.

Os únicos dados de morte que temos até agora são empíricos: pergunte a um grande grupo de pessoas quanto exercício elas fazem e, em seguida, espere para ver quanto tempo levam para morrer. Mas esse tipo de dado é extremamente falho, porque pode haver muitas diferenças entre pessoas que correm 160 km por semana e aquelas que não correm nenhum quilômetro por semana. Talvez os corredores sejam mais longevos, pois pre- param receitas saudáveis que colecionam das revistas de corrida, não porque corram muito.

Eu cavei fundo nesse problema em um artigo de 2016, e não quero repetir tudo aqui, mas deixo um exemplo importante. O maior estudo epidemiológico que alegou encontrar efeitos negativos de correr em excesso (neste caso, isso era mais de 32 km por semana) foi a partir de uma análise de 55.000 pacientes na Cooper Clinic, em Dallas (EUA). Essa descoberta ganhou manchetes em todo o mundo e continua a ser citada como evidência dos perigos de exercícios de resistência em excesso.

O que recebeu muito menos atenção foi outra análise do mesmo grupo de pacientes da Cooper Clinic, pelos mesmos pesquisadores, em 2018. Dessa vez, eles procuraram relações entre o treinamento de força e longevidade – e encontraram basicamente o mesmo padrão. O treinamento de força até duas vezes por semana produziu uma redução modesta no risco de morte (seja de doença cardíaca ou de qualquer outra) durante o período de acompanhamento do estudo. Malhar três vezes por semana eliminou a maior parte do benefício, e malhar quatro vezes ou mais por semana era pior do que não malhar nada.

Aqui estão os dados desse artigo, mostrando o risco relativo de morte em função dos dias de treinamento de força por semana. Conforme escrevi naquela ocasião, não acho que o treinamento de força quatro vezes por semana seja realmente perigoso ao coração. Suspeito que esse padrão seja um artefato espúrio dos ajustes estatísticos que os estudiosos tiveram que fazer para comparar praticantes de musculação saudáveis (geralmente com peso, pressão arterial, colesterol etc. mais baixos) com não praticantes de exercícios. Essa também é a explicação que recebi do autor principal do estudo quando perguntei. Ninguém divulgou comunicados à imprensa sugerindo que puxar muito ferro pode te matar. Jornais e blogs de todo o mundo não repercutiram a mensagem. E, no entanto, é exatamente análogo ao que eles encontraram para a corrida.

Outro ponto digno de nota: se você ignorar os estudos falhos em que se tenta estimar o quanto as pessoas se exercitam com base em um breve questionário e, em vez disso, colocá-las em uma esteira e medir seu VO2 máximo para obter uma avaliação inequívoca da aptidão aeróbica, o resultado é claro. Quanto melhor o condicionamento físico, mais tempo você deverá viver, e não há nenhuma evidência de que o padrão se inverte quando esse condicionamento for excepcional. Os resultados diminuem à medida que melhoramos nossa aptidão física, mas é sempre melhor estar fisicamente um pouco melhor do que um pouco pior.

Ainda temos muito o que aprender sobre o que exatamente está acontecendo com o cálcio nas artérias, arritmias e cicatrizes cardíacas. Mas em termos do que importa – a morte – os dados apresentados na nova publicação me fazem pensar que a gama de resultados possíveis está ficando cada vez mais estreita. É altamente improvável descobrirmos, amanhã, que correr ultramaratonas tira dez anos de sua expectativa de vida (ou, para ser justo, acrescenta dez anos), em comparação a simplesmente cumprir os protocolos convencionais de exercícios. Quaisquer efeitos, se conseguirmos separá-los do ruído, provavelmente serão bastante marginais. Eu me consolo com isso.

As médias gerais não contam a história inteira, é claro. Talvez correr muitas ultramaratonas acrescente alguns meses de expectativa de vida para 99% de nós, mas reduza em uma década para uma fração infeliz de 1% que tenha algum tipo de problema subjacente ou predisposição genética. É por isso que essa pesquisa continua a ser importante, na esperança de que possamos eventualmente descobrir quais podem ser esses alertas vermelhos. Enquanto isso, se você está apostando nas probabilidades, sugiro que continue correndo, nadando e pedalando o quanto quiser.

Matéria originalmente publicada na Go Outside 171.







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