Reality shows como Survivor possuem um conceito legal, mas não oferecem muito para os atletas recreativos de resistência fantasiarem. Mas que tal tentar alcançar uma fuga liderada por Jonas Vingegaard depois de pedalar centenas de quilômetros? Isso não é exatamente o que um novo artigo no Journal of Applied Physiology oferece, mas é a equivalência científica mais próxima.
Nele, pesquisadores da Espanha e dos Estados Unidos, liderados por David Barranco-Gil, Xabier Muriel e Pedro Valenzuela, apresentam uma comparação direta dos dados fisiológicos de dois ciclistas que completaram o Tour de France do ano passado.
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Um deles era um ciclista versátil de 27 anos que competiu na prova real por uma das equipes do World Tour. O outro era um amador de 58 anos e 96 quilos, que percorreu todo o percurso do Tour de France uma semana antes como parte de um evento de arrecadação de fundos para a leucemia.
Os resultados não foram próximos. O profissional percorreu 3.405 km com um ganho de elevação de 51 mil metros em 21 etapas, totalizando 87 horas; o amador percorreu a mesma distância em 191 horas, das quais 158 foram realmente pedalando. Mas os dados são interessantes pelo que nos dizem sobre os limites inesperadamente altos de resistência sustentada nos (como os pesquisadores dizem) “mortais”.
Para deixar claro, o amador não apenas levantou do sofá e decidiu fazer o Tour de France numa manhã. Ele começou a treinar para o evento um ano e meio antes e relatou ter pedalado de 10 a 15 horas por semana durante o ano anterior e de 15 a 20 horas por semana nos últimos quatro meses. Em comparação, o profissional estava fazendo de 18 a 22 horas por semana nesses últimos quatro meses, o que não é muito mais —embora o profissional estivesse percorrendo 640 km por semana, o dobro do que o amador estava fazendo.
Com base nos dados do medidor de potência do treinamento, o profissional tinha um VO2 máximo estimado de 80,5 ml/kg/min, enquanto o amador estava em 45,4 ml/kg/min. Suas potências limiares funcionais, uma medida do limite entre produções sustentáveis e insustentáveis, eram de 375 watts e 286 watts, respectivamente.
Essas medidas de aptidão são importantes porque nos permitem fazer uma comparação justa de como os ciclistas estavam se esforçando. O amador era mais lento, mas estava se esforçando tanto em relação à sua aptidão?
Não exatamente — o que não é surpreendente, já que o profissional estava competindo por seu sustento enquanto o amador estava de férias, e também porque o amador passava o dobro de tempo em sua bicicleta a cada dia. Aqui está a distribuição do tempo relativo gasto em sete zonas de intensidade diferentes:
As diferenças não são enormes, mas é claro que o amador passou mais tempo nas três zonas mais baixas, enquanto o profissional passou mais tempo nas quatro zonas superiores.
A peça mais significativa de dados, no entanto, é uma das mais simples. Ao longo do evento que durou três semanas, o peso do profissional permaneceu estável, enquanto o amador perdeu apenas pouco mais de 1 kg.
Isso ocorreu apesar do fato de o profissional estar queimando cerca de 7.098 calorias por dia (com base em seus dados de potência e estimativas do metabolismo basal e do metabolismo não relacionado ao exercício derivadas de seu tamanho corporal), enquanto o amador estava queimando 8.580 calorias por dia. A diferença é principalmente porque o amador era maior: 1,90 de altura e 96 kg em comparação com 1,80m, 67 kg.
Em 2019, escrevi sobre uma pesquisa fascinante sobre o que os cientistas chamaram de “gasto energético humano sustentado máximo” (e o que os jornalistas estavam chamando de “limite final de resistência humana”). A ideia básica era que, a longo prazo, nossa capacidade de sustentar níveis elevados de atividade é fundamentalmente limitada pela nossa capacidade de consumir, digerir e metabolizar calorias suficientes para alimentar essa atividade.
Você pode queimar uma quantidade absurda de calorias em uma corrida de 24 horas (quase 10 mil, segundo uma estimativa), mas não pode fazer isso dia após dia, porque está operando com um déficit, queimando calorias que você armazenou anteriormente como gordura.
Quando Herman Pontzer, John Speakman e outros pesquisadores traçaram o gasto de calorias vs duração, descobriram que a curva se nivelava em uma taxa de queima de calorias de cerca de 2,5 vezes o seu metabolismo basal. Você pode queimar mais por curtos períodos de tempo, mas o relógio está correndo porque você não pode substituir essas calorias. Essa “limitação alimentar” sobre quantas calorias podemos ingerir, os pesquisadores propuseram, é o que define ultimamente nossa máxima resistência sustentada.
Havia alguns dados que não pareciam se encaixar com essa hipótese, principalmente de ciclistas do Tour de France que, segundo relatos, queimavam mais de 3,5 vezes o seu metabolismo basal por semanas seguidas sem perder peso apreciável. Isso ocorre porque a nutrição esportiva moderna, com suas bebidas e géis de fácil digestão, permite que os atletas de resistência ultrapassem os limites normais da digestão? Ou porque os ciclistas de elite são freaks digestivos por natureza? É justo dizer que o limite normal da altura humana é por volta de 2 metros, por exemplo, mas algumas pessoas crescem mais. Talvez os ciclistas do Tour de France sejam os “Shawn Bradleys” da digestão.
Os novos dados, embora limitados por um tamanho de amostra de apenas um em cada grupo, sugerem que os profissionais não são os únicos que podem ultrapassar a suposta limitação alimentar. O profissional queimou cerca de 3,8 vezes o seu metabolismo basal; o amador atingiu 4,3, principalmente porque passou muito mais tempo no selim e menos tempo na cama. E ambos fizeram isso sem perder peso apreciável. Comer e digerir, em outras palavras, é um evento onde os amadores realmente podem competir com os pros.
Matéria originalmente publicada na Outside USA.