Novo recorde brasileiro resgata a essência da Canoa Polinésia

Por Bruno Romano*

canoa polinésia
DE VOLTA ÀS ORIGENS: Remadores da expedição Anamauê avançam em sintonia durante travessia autossuficiente entre Niterói (RJ) e Santos (SP) - Foto: Mahalo Produções

ENTRE GUARATIBA e Ilha Grande, litoral sul do Rio de Janeiro, só se ouve o som das pás entrando e saindo da água. Em total sintonia, seis remadores embalam a mesma canoa polinésia pelo mar aberto. No meio da imensidão azul, sem comunicação externa, eis que a tão sonhada expedição de amigos se encontra finalmente onde queria. Entre a euforia do momento e a apreensão de completar um trecho exposto e arriscado, a natureza decide dar uma força. O vento e o swell se alinham e empurram o grupo rumo à praia do Aventureiro, na parte de fora da Ilha Grande. Ótimo sinal. E objetivo cumprido. Não havia lugar melhor para celebrar mais uma dura etapa da missão.

Esse era apenas o fim da terceira perna da expedição Anamauê Va’a, organizada por líderes de clubes de canoagem paulistas e fluminenses, que culminou, no começo de janeiro, na quebra do recorde de distância em remadas de canoa polinésia no litoral brasileiro. Foram 430 km em estilo autossuficiente, ligando Niterói (RJ) a Santos (SP), em uma jornada de 11 dias. Estabelecer a nova marca, aliás, sequer foi o impulso inicial da viagem. A ideia era resgatar e celebrar as origens da cultura do esporte e, de quebra, fortalecer laços de amizade.

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“Valorizamos isso, e o resto foi consequência”, diz Lucas Miom, 29, responsável pelo clube paulista Ubatuba Hoe. Alguns meses antes, ele se interessou por uma canoa de outro clube, uma do Icarahy Canoa, de Niterói, fundado pelo local Douglas Moura, 37. Quando entraram em contato, o mesmo pensamento pintou na cabeça de ambos: “Por que não levar a canoa remando?”

A intenção era ótima, só que o negócio não vingou. Entretanto o plano de viajar ganhou força. Bastou conectar outro apaixonado pela brincadeira, José Paulo, o “Zé”, do Canoa Caiçara, de Santos, para a travessia ser desenhada de vez. Quatro meses intensos de planejamento depois – unindo o conhecimento de cada um e de mais três parceiros de remada –, a Anamauê, enfim, deslizava no mar de Niterói pouco depois das 4h30 da madrugada de uma segunda-feira, 27 de dezembro de 2017.

Expedição Anamauê Va’a foi organizada por líderes de clubes de canoagem paulistas e fluminenses – Foto: Dandara Filmes

“O motivo principal nunca foi bater o recorde”, confirma Zé Paulo. “Tudo acabou fluindo naturalmente, focando na responsabilidade de uma travessia como essa, na diversão e, claro, com a intenção de completar algo inédito”, conta. Ainda que o trajeto já tenha sido feito de caiaque oceânico – com destaque para uma travessia solo e pioneira da carioca Simone Duarte na década de 1990 – e explorado em partes ou percursos semelhantes por outros remadores, a marca não deixa de ser inspiradora para uma modalidade que vem crescendo no país.

Na prática, isso quer dizer remar uma média de quase 50 km por dia, entre seis e sete horas de mar aberto (algumas jornadas diárias exigiram 12 horas de esforço). Nos trechos maiores, a estratégia incluía sessões fortes de 45 minutos de remada, com paradas de 15 a 20 minutos para comer e se hidratar, sem deixar a embarcação. Após revezar posições, a trupe encontrou uma formação mais “encaixada”, apostando nela durante a maior parte da viagem. Junto de Douglas (banco 1, na dianteira), Lucas (banco 3) e Zé Paulo (banco 6, no papel de leme), o time estava completo com Caio Guerra (2), professor e remador do Canoa Caiçara, Ubajara Iakowsky (4), instrutor de Va’a do Ubatuba Hoe, e Francisco Viniegra (5), arquiteto e integrante do clube Praia Vermelha Va’a, de Niterói.

“Só deu certo porque soubemos unir nossos conhecimentos complementares”, diz Zé. “O que, aliás, é justamente viver a essência dessa cultura, ligada ao respeito e ao trabalho em equipe”, comenta o santista, que soma na bagagem 13 anos de canoagem e algumas expedições solo, além de tocar aulas no Caiçara desde 2012.

“Fora a experiência coletiva, a dinâmica da viagem exigiu ‘baixar a guarda’ e ceder um pouco”, relata Douglas. Como todos são líderes em seus clubes, choques de opiniões acabam sendo comuns. “Aprendemos a ouvir e a ajustar tudo a favor do coletivo”, comenta Douglas, antes de arrematar: “Tenho certeza de que cada um de nós acabou a jornada melhor do que começou”.

LAR, SALGADO LAR: Momentos intensos de esforço, aprendizado e convívio da equipe recordista em distância no país – Foto: Mahalo Produções

DENTRO DA CULTURA Va’a – expressão usada pelos polinésios que utilizam embarcações desse tipo como meio de transporte há centenas de anos, antes de transformá-las também em algo competitivo –, cada canoa tem seu próprio “mana”. A usada na expedição Anamauê chegou ao Brasil em 2014, por meio do remador santista e incentivador do esporte Celso Filetti, que se identificou com o projeto e a emprestou para o grupo. Ela é do tipo V6 (em referência ao Va’a e aos seis lugares), construída artesanalmente no Taiti, um dos berços da tradição, de onde vem seu nome: Te Arii Vahine. Em janeiro de 2015, o equipamento foi “batizado” em águas brasileiras, uma prática comum toda vez que uma nova canoa é inaugurada, geralmente com a presença da comunidade local.

Modelos V6 como esse trazem algumas diferenças básicas entre as OC6 (ou outrigger canoe, também para seis pessoas), as canoas típicas do Havaí, bastante encontradas hoje no Brasil. Em termos gerais, o desenho do casco da V6 traz uma linha mais comprida e afinada, o que favorece o embalo e a velocidade, sobretudo em distâncias maiores. Além disso, cada banco conta com uma espécie de cockpit, um detalhe bem-vindo durante a viagem e que ajudou a deixar todos os mantimentos mais bem protegidos e coesos. Por essas e outras, os remadores sentiram a diferença do seu poderoso “mana”. E, como se diz no Va’a, não foram eles que a levaram, mas o contrário. As tradições mais antigas chamam essa energia itinerante de “espírito único”.

Tudo isso sai do campo das ideias e das histórias e faz toda a diferença na realidade, ainda mais quando a tarefa do dia é remar por 60 km ininterruptos. Essa foi a distância da perna entre Paúba, em São Sebastião (SP), e a praia Branca, no Guarujá (SP), durante a penúltima travessia, uma das mais desgastantes. “Cada palavra dentro da canoa possui um significado mais forte: é preciso ter cuidado com o que se diz e o que se faz, criando respeito ao longo do caminho”, ensina Zé. “A canoa é um processo de cura”, acrescenta Douglas. “E a verdade é que esses valores consolidados do Va’a nos ajudaram a chegar ao nosso destino”, diz.

Na busca dessa sinergia, alguns símbolos foram se tornando parte importante da rotina. É o caso do próprio nome escolhido para a expedição: Anamauê, expressão derivada do tupi anauê, usada em saudações com a conotação de irmandade. Um círculo diário formado pelos integrantes também marcava cada começo e fim de remada. Tradicional em vários clubes de Va’a pelo mundo, essa espécie de oração ajuda a tirar um pouco da ansiedade e a lidar com a sensibilidade aguçada pelo tempo de convívio e exposição ao mar aberto, como descrevem os próprios integrantes da equipe.

Foram 430 km em estilo autossuficiente, ligando Niterói (RJ) a Santos (SP), em uma jornada de 11 dias – Foto: Mahalo Produções

“Atritos são normais, mas na hora de ir para o mar não há espaço para orgulho”, explica Lucas, lembrando de um momento- chave da travessia na praia de Martins de Sá, próxima a Paraty (RJ). Sentados em roda, todos colocaram seus sentimentos para fora e se abraçaram depois da “sessão de descarrego”. “Essa capacidade de conversar me marcou muito e precisa ser valorizada”, conta o santista Caio Guerra, remador desde 2014. “Em uma expedição desse tipo, é impossível evoluir só com a razão, tem emoção envolvida, por isso precisamos entrar na água sempre com a energia lá em cima para remar”, reflete Caio.

Há outro discurso comum entre os integrantes. Em vez de valorizar o objetivo alcançado, todos buscaram fortalecer a mensagem de que o Va’a não é feito de aventureiros inconsequentes – eles sabem que a distância percorrida é digna de respeito, porém um feito relativo comparado ao que os povos polinésios (ou até mesmo indígenas e caiçaras dos nossos lados de cá) já fizeram. No fim das contas, a junção de estudo, habilidades e experiências é essencial em empreitadas assim. “Como nosso propósito não era material, foi muito transformador conseguir enxergar realmente tudo isso na nossa frente”, fala Lucas. “Até porque a molecada mais nova, da geração dos 20 anos, com certeza vai superar o recorde daqui a pouco; e esse é exatamente o legado que queremos passar”, conclui Douglas.

Para quem finalizou a expedição no quintal de casa, como Zé e Caio, um sentimento ambíguo tomou conta de suas mentes. “Estávamos muito felizes e um pouco ‘tristes’ ao mesmo tempo, pois tínhamos completado o plano e finalmente celebrávamos com amigos e famílias. Mas a sensação também era a de que poderíamos seguir por mais vários dias”, fala Zé. Quem teve de voltar todo o caminho para começar uma nova temporada em seu clube, ainda mais renovado (caso de Douglas e Francisco), o mais importante não foram as conquistas em si. “Sempre falo para meus alunos que o principal é sorrir: se a canoa foi o melhor momento do dia, então o seu papel está cumprido”, afirma Douglas. Essa parece ser mesmo a mensagem que resume a viagem – a de que o bom remador não é exatamente o mais forte ou o mais resistente, mas, sim, o que rema em conjunto. E que é capaz de sorrir ao longo do percurso.

*Reportagem publicada na edição nº 149 da revista Go Outside, março de 2018.







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