Nerds da aventura: as mentes por trás dos nossos equipos favoritos

Por Verônica Mambrini

Não basta ser bom no escritório e no chão de fábrica: para criar um bom produto outdoor, é preciso estar imerso na prática dos esportes de natureza. Foto: Divulgação.

EXISTEM ALGUNS trabalhos dos sonhos, e eu posso listar aqui os que mais me fariam feliz: degustador de gelato italiano, zelador de ilha paradisíaca, resenhista de gadgets eletrônicos, sommelier de cervejas, repórter da Go Outside (check!)… Mas se você gosta de esportes e atividades ao ar livre, certamente a criação, desenvolvimento e teste de produtos outdoor no seu habitat natural pode superar todos os fetiches profissionais.

+ Como cuidar da sua barraca de acampamento
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Tivemos a oportunidade de conversar com três gear geeks da Decathlon que moram aos pés dos Alpes. O trabalho deles? Pensar sobre como melhorar a sua vida na montanha. O escritório impressiona: a Mountain Store em Passy, na França, a pouco mais de meia hora de trem de Chamonix, é gigante. No térreo, fica a loja, e no mezanino, os laboratórios. Esse QG, que hoje abriga principalmente o desenvolvimento dos produtos da marca Quechua, nasceu em 1997 em um apartamento de 55 metros quadrados convertidos em escritório, com cerca de dez funcionários da Decathlon que se mudaram de Lille para Haute-Savoie.

De lá para cá, ali foram criados diversos produtos que se tornaram clássicos, como a barraca 2 Seconds. Um dos maiores hits da marca, ela foi inspirada no mecanismo de pop-up de barracas de brinquedo, a pedido de usuários, que queriam um modelo mais fácil para armá-las. Em 2007, a Quechua já havia se tornado uma das cinco maiores fabricantes de equipamento outdoor do mundo. Atualmente mais de 300 pessoas trabalham na Mountain Store, que se dedica ao desenvolvimento tecnológico e às novas tendências em trekking, hiking e camping. Por ano são registradas, em média, sete patentes. Para acompanhar cada mudança, muitos produtos são concebidos hoje mirando novas tendências outdoor que só crescem, como o fast hiking e o trail running.

Testes são feitos em lugares como os Alpes. Foto: Divulgação.

Pisante dos sonhos

Equipamentos outdoor são fundamentais para vivermos os melhores momentos do nosso dia, quando fazemos o que mais gostamos. E uma das principais tarefas de Sébastien Genez, 33 anos, designer de calçados da Quechua, é antecipar o que você sonha para esses momentos.

Não basta ser bom no escritório e no chão de fábrica: para criar um bom produto outdoor, é preciso estar imerso na prática dos esportes de natureza. “Meu trabalho é pesquisar as necessidades e desejos das pessoas”, conta. Ou seja, sacar o que as pessoas querem, mas não apenas agora e, sim, o que vão querer daqui a dois anos. Apesar disso, ele também não pode se antecipar às tendências e fazer apostas muito futuristas. “O desafio é achar a medida exata.”, sugere.

Para isso, é preciso compor um mix de habilidades como gostar de pessoas, fazer um trabalho pesado de pesquisa e ter uma visão do todo. O ponto de partida são as especificações do calçado trazidas pelo gerente de produtos e pelo engenheiro de produção. Aí, Sébastien começa a desenhar. Não sem antes ver imagens. Muitas imagens. Calhamaços de referências vindas das suas pesquisas ou de agências e escritórios de tendências.

Sébastien me mostra um par de botas: “Percebe como lembram um pouco um tênis urbano?”. Concordo, e ele explica: “Este modelo foi pensado para dar conta de trilhas e ter um look urbano que funcione bem também no dia a dia, como um tênis”. É a escolha perfeita para, por exemplo, ser o calçado inseparável de quem vai fazer um mochilão pela Patagônia e quer tanto curtir um rolê pelos bares e restaurantes de Ushuaia quanto palmilhar as centenas de quilômetros de trilhas de El Chaltén. “Ele segue as especificações técnicas pensadas pelos engenheiros: tem um super grip e é à prova d’água, para atravessar terrenos úmidos ou com neve. Mas o design inspira mais liberdade, com uma faixa lateral branca que o deixa com jeitão de tênis. Da prancheta à prateleira, são cerca de dois anos.

Designer há oito anos, ele sempre soube que queria trabalhar com produtos outdoor. “Eu ficava analisando as formas de bicicletas, dos capacetes, das botas de trilha. Queria fazer produtos que as pessoas ficassem felizes de comprar.” Depois de uma passagem pela Rossignol, marca francesa de equipamentos alpinos, ele desembarcou na Quechua e há quatro anos é o responsável pelo design de uma gama de produtos de inverno. Obviamente, é preciso ter intimidade com o esporte para o qual você irá criar. O que não é um problema para Sébastien, que esquia, faz trekking, pedala e escala – basica- mente, o pacote alpino completo. Estar sempre na montanha é um pré-requisito, já que todos os envolvidos na produção testam os próprios equipamentos e conversam com outros usuários para captar feedbacks e impressões.

“Outra parte do meu trabalho é, entre o desenho e o produto final, fazer todos os ajustes de design para que a peça tenha realmente a aparência que deve ter”, o que inclui mudar eventualmente materiais, acabamentos e detalhes. Com direito a desafios extras: no trabalho que resultou em boa parte da linha Quechua atual, Sébastien conseguiu reduzir em 30% o impacto ambiental, priorizando matérias-primas recicladas e escolhas específicas no tingimento e tipo de material usado. Entre os lançamentos que mais empolgam Sébastien, está a próxima raquete de neve da marca. Com os olhos azuis brilhando, ele mostra o desenho: o modelo tem curvas ousadas e é totalmente diferente do padrão do mercado. Cerca de 40 saídas a campo foram necessárias para testar a novidade. Todo mundo que viu ficou intrigado. Foi um supertrabalho em equipe, que uniu gerente de produto, designer e engenheiro. No lugar do plástico rígido, ela é feita em EVA, o que a torna mais responsiva.

“Por ser um produto de inovação, fizemos muitos, mas muitos testes mesmo”, conta. Para o design, o desafio era que ela transmitisse confiança já no visual. Segundo Sébastien, um guia que testou o modelo chegou a esquecer que estava usando as raquetes, até tentar entrar no carro com elas. Missão cumprida.

A engenheira Elise Georget com amigos e na montanha. Foto: Divulgação.

Testados e à prova de tudo

Se o chefe de Elise Georget telefonar e ela não atender porque está na montanha, provavelmente ele vai achar ótimo. A engenheira de campo de 34 anos cuida da linha de fast hiking da Quechua, com produtos ultraleves, pensados para trilhas de um dia. A ideia é cobrir grandes distâncias em menos tempo, com menos esforço. De modo geral são itens mais minimalistas, que pesam menos…. expedições: mochilas com menos bolsos e compartimentos, por exemplo.

Nascida no norte da França, Elise se diverte bastante nos Alpes. Ela passa cerca de dez horas por semana em atividades outdoor, entre hiking, trail running, alpinismo e esqui de montanha. E como é que um produto criado nos Alpes pode ter o mesmo desempenho na Serra do Mar, onde o clima e as condições de terreno são completamente diferentes?

“Muitos dos testes são feitos na França, mas antes da pandemia nós viajávamos bastante para testar. Temos centros de testes na África do Sul, nas Ilhas Canárias, no sul da França, lugares com climas mais variados, que permitem avaliar outras condições. As viagens são uma das melhores partes do trabalho”, reconhece Elise, que ainda tem a sorte de seguir tendo Chamonix – o quintal da casa dela – como um dos seus lugares preferidos no mundo.

Engenheira de testes na marca de corrida Kalenji, Elise integrou o time dez anos atrás, pouco depois de se formar na universidade. “Quando chegou o momento de procurar um emprego, ficou óbvio para mim que eu queria trabalhar com esportes”, conta. Não misturar lazer e trabalho fica ainda mais difícil para ela, que tem o marido ocupando um cargo na Simond, a marca de escalada da Decathlon. “Praticamente todo o nosso tempo livre é vivido ao ar livre. E estamos na mesma sintonia, trocando ideias sobre produtos, o desempenho deles, como podemos melhorá-los. Nós dois gostamos do conceito de fast trekking e de produtos ultraleves e somos capazes de ficar horas falando disso”, diverte-se. Em casa, há até um quartinho exclusivo para os muitos equipamentos dos dois.

Como engenheira, o trabalho de Elise é decidir, em conjunto com o designer, os tecidos e as matérias-primas que serão usados no protótipo, pensando nos aspectos técnicos e de performance dos materiais. “Preciso buscar bons fornecedores, capazes de me garantirem que os materiais vão se comportar como a gente precisa. Testamos tudo em laboratório para ter dados precisos sobre aspectos como resistência e respirabilidade. Mas é importante fazer testes in loco, porque às vezes o produto tem um desempenho no laboratório, mas seu uso, em condições reais, pode ser diferente”, explica.

E se os testes pessoais são um pouco mais livres, há uma porção de etapas formais com protocolos bem rígidos. Geralmente são necessárias ao menos cinco rodadas de testes, às vezes mais. “Fazemos os ajustes do protótipo ao longo de meses. Quando chegamos em um resultado que consideramos ideal, o produto vai para a fábrica, que pode estar situada em diversos lugares do mundo. De lá, retorna uma série de cerca de 12 peças, que são submetidas a novos testes. É importante que sejam produzidas exatamente na mesma fábrica que vai fazer a produção comercial, para que sejam homologadas corretamente”, detalha. Nem tudo é festa: “A parte da homologação é menos divertida, mas muito importante para atender à legislação de cada país onde aquele item será vendido”. Se esses são os ossos do ofício, nada mau.

O laboratório têxtil da Mountain Store. Foto: Divulgação.

Fala que eu te escuto

Trabalhar com público é um pesadelo para muitas pessoas: ouvir clientes, que podem estar satisfeitos ou não, é certamente uma tarefa que exige disponibilidade emocional. Mas para Reka, gerente de barracas da Quechua, é o combustível mais puro para o trabalho. Desde seu primeiro emprego como gerente de uma loja local de produtos outdoor, a húngara de 35 anos se especializou em ouvir pessoas.

Atualmente, ela cuida da linha de barracas da Quechua que acomodam de duas a três pessoas. Parece específico, e é: são barracas para um tipo de público muito particular. Casais ou pequenas famílias que acampam de carro e em campings, uma modalidade que está crescendo agora no Brasil, mas que na Europa é uma realidade antiga e representa uma quantidade enorme de pessoas. Esse público não precisa de barracas ultraleves – já que as levam no porta-malas do carro –, mas elas precisam ser fáceis de montar e desmontar, porque pegar o carro e conhecer uma região ou país acampando, ficando um ou dois dias, até partir para o próximo lugar, é um roteiro de férias extremamente comum por lá.

“Para mim, é muito importante que os produtos tenham um bom custo-benefício. Eu não venho de um país particularmente rico, então as pessoas precisam de um produto pelo qual possam pagar e que seja confiável e durável”, diz. Ela é capaz de passar horas falando de barracas, dos detalhes técnicos, assim como das preferências pessoais: ela é fã da 2 Seconds, barraca hit da marca. Se você sabe de qual barraca estamos falando, vai lembrar que ela é, sim, bem fácil de montar, mas pode levar um bocado para fechar o pacotinho de novo. “Criamos um botão para isso, mas eu prefiro o modelo anterior”, comenta. “Na verdade, depois que você pega o jeito, é fácil desmontar a versão antiga dela,s ão segundos mesmo.”

No fim, quem decide o jogo são os clientes. O papel de Reka é monitorar opiniões, comentários, críticas e elogios dos produtos, que ficam à mostra no sistema dos sites da marca mundo afora. Tudo isso é catalogado e pode levar a alterações nos produtos, o que envolve meses de experiências e testes com o restante do time dela, composto por um designer e um engenheiro de campo. Desses feedbacks nasceu uma das características da linha de barracas com que ela trabalha, a tecnologia Fresh & Black, que traz uma camada de tratamento adicional com o efeito de uma cortina blackout, capaz de deixar o ambiente escuro e diminuir a absorção de calor. “Não é simples: eu luto diariamente para que a comunicação seja a mais clara possível, mas não consigo impedir que algumas pessoas achem que a barraca tem algum tipo de sistema de refrigeração”, balança a cabeça. É, trabalhar com seres humanos é complicado.

Agora, aliás, ela está de olho em uma parcela não humana cada vez mais presente nas viagens: os cachorros. Boa parte das observações é em campo – faz parte do seu trabalho ir para a natureza todo fim de semana. “É muito engraçado quando estou com um protótipo: as pessoas nos acampamentos vêm me perguntar que barraca estou usando”, diverte-se. Daí, ela já emenda o papo. Foi assim que Reka percebeu que um número significativo de pessoas escolhe o modelo em função do conforto do cachorro: se ele vai caber no avanço, se vai ficar bem protegido da chuva, se a caminha dele se encaixa bem.

É ela quem propõe essas alterações. Reka é uma campista convicta – passa pelo menos 30 noites por ano acampando – e pedala, faz trekking e esportes de neve. Quando se vive e trabalha nos alpes com equipamentos esportivos, o difícil é achar alguém que não faça. De modo geral, ela acredita que continua perseguindo o mesmo objetivo desde o começo da carreira: tentar fazer o produto certo chegar às mãos do cliente que precisa dele. A grande comunidade da aventura, em coro, agradece.

Matéria originalmente publicada na Go Outside 170.







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