Na sociedade conservadora do Sri Lanka, país banhado pelo Oceano Índico, a prática do surf era estritamente proibida para mulheres locais. O papel delas era servir o lar e apenas os homens ou estrangeiras do gênero feminino podiam surfar nas ondas sagradas da Baía de Arugam, pico considerado o melhor de ondas no país.
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Mas Shamali Sanjaya, que costumava sentar-se na praia de uma pequena vila de pescadores ao longo da costa leste do Sri Lanka, tinha o sonho de se juntar ao seu pai, irmão e quem mais estivesse no outside com pranchas de surf. “Eu ansiava por isso em meu coração”, revela ela em entrevista ao The Guardian.
Agora, com 34 anos, grávida do seu terceiro bebê, Sanjaya é peça chave da silenciosa revolução que se alastra não só pela sua vila, mas por todo o país, e incentiva mulheres locais a se tornarem surfistas. Em 2018, ela ajudou a criar o primeiro clube de surf feminino do Sri Lanka em Arugam Bay e em 2020 competiu na histórica primeira categoria feminina em uma competição nacional de surf no Sri Lanka. Hoje, com quatro meses de gravidez, ela ainda surfa várias vezes na semana e está empolgada para competir de novo depois que a criança nascer.
A sua história com o surf começou em 2011 quando sua vizinha californiana, Tiffany Carothers, bateu na sua porta a chamando para aprender a surfar. Desde então Sanjaya nunca mais conseguiu parar de ir atrás das ondas.
“Quando eu surfo, é uma sensação de muita felicidade para mim”, disse ela. “Estou preenchida com essa energia, me sinto tão forte. A vida é cheia de dores de cabeça e problemas, mas quando entro na água, esqueço isso tudo”.
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A partir de então, ela passou a enfrentar uma forte repressão do senso comum local e principalmente do seu irmão surfista. “Meu irmão me disse que não é da nossa cultura as mulheres surfarem, que eu deveria ficar em casa cozinhando e limpando”, disse Sanjaya.
Mais mulheres locais do Sri Lanka no surf
Mas ao contrário do que o irmão queria, Sanjaya e Tiffany bateram de porta em porta e começaram a organizar encontros secretos de surf, em horários estratégicos, para envolver outras mulheres no surf. Até que em 2015, a californiana fez um evento para ensinar mais garotas locais a surfar e foi em buscar de conversar também com as famílias.
Inicialmente, muitos pais estavam receosos com duas questões: A primeira pelo estereótipo de que surfar representa festa, drogas e álcool e a segunda porque ali muitos ainda concordam com valores ultrapassados da beleza da pele clara. Isto é, o fato das meninas ficarem mais expostas ao sol e, consequentemente, ficarem bronzeadas também era um dos problemas. “Dissemos a eles que nunca faríamos nada que desrespeitasse nossa cultura”, disse Sanjaya. “Não usamos biquínis, não bebemos, trata-se apenas de pegar ondas”.
O primeiro encontro foi um sucesso e a partir de então elas decidiram se reunir uma vez na semana. Mas a desaprovação se alastrou e chegou ao conselho de turismo do Sri Lanka. “Eles me acusaram de tentar mudar a cultura, que as meninas no Sri Lanka não surfam e se eu quisesse ajudar suas famílias eu deveria dar a elas máquinas de costura”, disse Tiffany. “Eles ameaçaram expulsar minha família do país se me vissem dando aulas de surf para meninas”, completa.
A polícia também passou a ficar em cima das integrantes dos encontros e perguntavam a elas se a californiana estava oferecendo drogas e álcool. Por conta disso, mais de metade das meninas pararam de frequentar o clube.
A resistência
Mas a outra metade seguiu forte e começaram se encontrar secretamente nas praias, além de organizarem surf trips clandestinas para outras partes da ilha. Finalmente em 2017, elas conseguiram criar a Federação de Surf do Sri Lanka, a partir de um caminho que em agosto de 2018 deu origem ao Arugam Bay Girls Surf Club.
Hoje, a entidade tem cerca de doze membros principais, com idades entre 13 e 43 anos. Embora tenha se quebrado inúmeros tabus, muitas das mulheres ainda enfrentam preconceito por parte das famílias e comunidades.
“As pessoas estão sempre questionando meu marido, perguntando por que eu não fico em casa simplesmente cuidando do meu filho”, disse ao The Guardian, Mona Nadya Pulanthiram, de 35 anos e mãe de dois filhos. “A essas pessoas eu digo: eu já sou uma ótima mãe e o surf não vai mudar isso. Quando estou no oceano, não penso em nada além de pegar a onda perfeita”.
Mona tem uma relação com o mar de muita superação. Ela perdeu sua mãe no tsunami de 2004 que devastou o Sri Lanka, mas depois de dar à luz ao segundo filho, suas amigas a convenceram a tentar surfar, e Mona ficou surpresa ao ver seu trauma desaparecer gradualmente.
E assim, pouco a pouco, as mulheres ganham a liberdade para evoluir nos lineups do país asiático e mostrar que podem ser o que quiser. Hoje, a pioneira do surf feminino local Sanjaya, comemora o seu triunfo. Além de conseguir a aprovação do seu irmão, ela desfruta com ele das ondas em Main Point, em condições de surf que podem chegar até a dois metros de altura.
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Texto com informações do The Guardian.