Vestindo sandálias e sem apoio nenhum, Marcelo Grossi vence 650 km em 18 dias por trilhas e ruas de MG

Por Verônica Mambrini*

Marcelo Grossi correu para matar uma depressão, antes que ela o matasse, há cerca de seis anos. Quando criança, o funcionário público de 40 anos , fugia em disparada das broncas da mãe. Sendo um dos moleques mais velhos da rua, cresceu e passou a correr para fugir de um inimigo mais potente, invisível e de longos braços tentaculares: a melancolia paralisante.

Quase de pés no chão, Marcelo Grossi chegou a correr mais de 60 km por dia – Foto: Chistophe Scianni

Ao perceber que a corrida era a única atividade que lhe dava algum ânimo, Marcelo passou a rodar todos os dias. Às vezes também à noite, abraçando um volume de treinos que muitas vezes extrapolava 20 km diários. Assim ele se viciou nessa válvula de escape paralela e complementar ao tratamento com medicamentos antidepressivos. Curou-se e decidiu que queria desafios mais ambiciosos. Teve a ideia de correr 650 km de Belo Horizonte a Passa Quatro, em Minas Gerias, passando por trechos da Estrada Real. Tudo com o mínimo de apoio e de estrutura possíveis.

Marcelo decidiu se lançar na jornada em Abril deste ano do seu próprio jeito: sem tênis de corrida, calçando apenas huaraches, sandálias inspiradas no grupo étnico tarahumara, no México (cuja tradição de corridas de longa distância ganhou fama por causa do livro Nascido para Correr, do jornalista Christopher McDougall). Além das sandálias, apenas uma mochila de corrida com 7 kg, incluindo água e algumas mudas de roupa. Sem acompanhantes, curtindo o desafio sozinho.

“Eu e Deus era a minha resposta sempre que alguém me perguntava com quem eu estava”, conta. Os 650 km foram percorridos em 18 dias – às vezes por estradas de chão batido, passagens por riachos, trechos de autoestradas e unidades de conservação, como o Parque Estadual da Serra do Rola-Moça, nas proximidades da capital mineira.

Ao acordar, visualizava o dia que teria pela frente. A quilometragem era decidida em função do próximo pouso. “Sou muito ruim de planejamento”, confessa. Na retaguarda, tanto a mãe de Marcelo como um grupo de amigos de corrida tentavam dar uma força com reservas de pousadas, porém nem sempre com sucesso. Ao chegar a São Sebastião da Vitória, distrito de São João del-Rei, por exemplo, deu com a cara na porta. “Era uma segunda-feira à tarde, e a pousada estava fechada. Tive que achar um ônibus de volta para São João. No dia seguinte, tomei café da manhã na pousada e só consegui pegar o ônibus das 10h para São Sebastião para retomar a corrida de onde havia parado”, conta o andarilho, ou, como ele prefere, “andarilho forasteiro”.

A alcunha vem da canção “Wayfaring Stranger”, de Johnny Cash. Marcelo gosta de música e de poesia. Prestando atenção na letra, viu-se nela e fez sua própria versão. Embora tenha usado a corrida como um marco para lançar sua candidatura a um cargo público na cidade de destino, Passa Quatro, ele pouco pensou nisso durante o desafio. “Na minha jornada Minas adentro, não disse a ninguém que era pré-candidato. Apenas disseminei a mensagem do minimalismo huarachero. Dizia que corria de huaraches porque era mais estiloso. Além disso, um par de tênis não seria suficiente”, diz.

O corredor mineiro em um trecho urbano do percurso de 650 km – Foto: Davi Guedes

Cético com as estruturas complexas de provas e com equipamentos caros, ele brinca que é adepto do “Método da Cor rida Sincera”. O termo, segundo o atleta, pode ser explicado como uma “contraposição a outros métodos desenvolvidos por profissionais, cujo objetivo é viver da corrida – e não viver para a corrida”. Sua proposta é bem simples: corra e seja feliz. “Fiz esse desafio porque também é um jeito barato de passar as férias, e eu estava com pouco dinheiro”, fala.

Após finalizar tantos quilômetros, Marcelo conta que foi mais divertido do que sofrido. Ainda que com os esperados perrengues de uma corrida autônoma, sem apoio e com planejamento menos que exemplar. “Quando cheguei a Caquende, um povoado a cerca de 45 km de São João del-Rei, achei que iria pegar a balsa que faz a travessia para Camargos, mas ela foi interditada pela Marinha do Brasil em 20 de outubro do ano passado, e eu não sabia”, conta o corredor.

Acabou conseguindo uma carona para o outro lado da represa e chegou à pousada onde deveria haver uma reserva em seu nome. Achou só uma placa de “Pousada aberta 24h”, mas demorou um bom tempo até aparecer o responsável por abrir a porta e receber o hóspede. “Jantei bolo, que era o que tinha para o café do dia seguinte.”

A rotina

Marcelo nasceu em Belo Horizonte, mas mora e trabalha em Brasília. Em 2011, teve uma casa em Passa Quatro, uma pequena cidade de 15.000 habitantes no sul de Minas. Localizada aos pés da Serra Fina, ele tentou engatar um comércio na cidade para ficar perto da corrida de montanha. Em 2016, passou outra temporada lá. E, conquistado pelas montanhas da Mantiqueira, sempre pensa em voltar. Por isso o início em Belo Horizonte, com chegada em Passa Quatro.

A rotina de corrida era bem simples: tomar café cedo, sair para correr e só parar no fim do dia. “Rodava o dia inteiro, sem fazer paradas grandes. Bebia apenas Gatorade, Coca e, de vez em quando, água. Só comia depois de chegar.” De noite, lavava a roupa onde se hospedava para usar no dia seguinte e logo ia dormir. Na mochila, duas blusas de mangas compridas, duas de mangas curtas, duas bermudas, uma calça e quatro meias. Bagagem gigante para quem corre com apoio, mas minimalista para quem vai autônomo.

Marcelo passou por parques estaduais, zonas de mineração e eucaliptais – Foto: Arquivo Pessoal

Apesar de a rodagem atual ser capaz de impressionar até profissionais, o volume e a intensidade foram crescendo naturalmente na rotina do corredor. Em 2016, Marcelo abandonou as planilhas. Já corria havia cinco anos quando o fim de um casamento, no ano seguinte, o levou à depressão. “No dia 20 de novembro, minha mulher foi embora. Ela sempre disse que eu gostava mais da corrida que dela. Mentira”, diz. Já com o desafio em mente, ouviu de um amigo treinador que ele deveria se preparar com uma base de 1.000 km rodados em cem dias – e ele acabou cumprindo a meta em 90. Teve como resultado duas lesões, uma em cada panturrilha, que cobraram a conta com 30 sessões de fisioterapia.

Recuperado, Marcelo partiu para o desafio. “Foi muito emocionante, mas, nos últimos dias, comecei a ficar melancólico. Tanto pela jornada que chegava ao fim como pelas saudades das minhas filhas e do meu filho.” A chegada, em Passa Quatro, não poderia ter sido melhor: o andarilho visitou amigos e matou a saudade das montanhas. A única marca nos pés era o bronzeado do sol, deixando clara a pele nas tiras da sandália; nem uma bolha ou unha machucada. Poucos dias depois de voltar para o escritório, Marcelo já tratava a inquietação planejando a próxima ultramaratona, seu combustível para viver.

*Reportagem publicada na edição nº152 da Revista Go Outside, em junho de 2018