A família que compartilha o pó de magnésio, títulos e boas histórias

Por Verônica Mambrini*

TUDO COMEÇOU COM UMA caminhada em família: Mieko e Goro estavam fazendo a trilha da Pedra do Baú, na cidade de São Bento do Sapucaí (SP), na Mantiqueira, com as filhas Thais e Ana Luisa. O irmão mais velho, Ricardo, já era adolescente e estava na fase de “fugir” dos programas em família. Além das trilhas, o complexo do Baú é repleto de vias de escalada, e, ao ver aquele monte de gente na parede, Ana Luisa, que tinha 12 anos, pediu aos pais para aprender também. Em vez de dissuadir a criança da ideia, foram todos fazer um curso de escalada, sem nem imaginar que acabariam campeões em suas categorias em
campeonatos desse esporte.

A família Makino não só tomou gosto por escalar em rocha e treinar em academias, como acabou se envolvendo com a escalada esportiva de competição. Aos 30 anos,Thais Makino é a atual campeã brasileira de boulder e faz parte da seleção brasileira de escalada. A irmã, Ana Luisa Shiraiwa, tem 35 anos, já foi campeã brasileira de escalada de difi uldade duas vezes, é 6ª no ranking geral de boulder e segue competindo na categoria pró: na primeira etapa do campeonato dessa modalidade, em abril deste ano, as irmãs dividiram o pódio, com Thais em 2º e Ana Luisa em 4º lugar. O pai, Goro, 63 anos, e a mãe, Mieko, 60 anos, competem nas categorias amador e sênior e também colecionam medalhas.

Pódio do Campeonato Brasileiro de Boulder – Foto: Carol Coelho

Thais faz piada por ter sido a única que não realizou o curso de escalada que ensina os procedimentos técnicos mais complexos de manejo de cordas e equipamentos, necessário para a escalada de paredes de dezenas de metros. “Eu nunca fiz curso, por isso que escolhi o boulder”, brinca. Balela: é pura preferência pela modalidade mesmo. O boulder é uma escalada sem corda, em blocos de pedra de alguns metros de altura, com movimentos mais atléticos e técnicos, em que eventuais quedas são amortecidas por colchões aos pés da rocha. Por exigir força e encaixe preciso dos movimentos do corpo, não deve em nada a outras vertentes do esporte.

Thais no Master de Boulder, no Chile – Foto: Arquivo Pessoal

Mesmo sem ter feito o curso, quem está há tantos anos na escalada acaba aprendendo os procedimentos na prática, com amigos mais experientes. No caso de Thais, em situações um pouco improváveis. “Sabe como eu aprendi a costurar? No aquecimento em um campeonato, aos 10 anos”, dá risada. “Isso jamais seria permitido hoje.” Costurar é ir passando a corda pelas proteções na parede, na via que deve ser escalada em um campeonato, e ter domínio sobre o procedimento é pré-requisito essencial. Mas nos anos 1990 a escalada ainda dava seus primeiros passos no Brasil como esporte organizado – pipocavam campeonatos regionais em vários locais e, sempre que havia oportunidade, Goro inscrevia as meninas, que encaravam aquilo como uma enorme diversão. Diz a lenda que, quando criança, Thais levava o ursinho de pelúcia para se distrair antes de entrar nas vias.

Por conta da precariedade desses campeonatos, Ana Luisa acabou estabelecendo um recorde absolutamente sem querer. Em 1999, a família viajava com frequência ao Rio de Janeiro porque Goro era sócio de um restaurante na cidade, com a irmã que morava lá. Na época, o Rio organizava muitos campeonatos regionais, às vezes com uma certa dose de improviso. As meninas estavam inscritas em um desses campeonatos, que foi cancelado de última hora. Ana Luisa, com 16 anos, recebeu o convite de uma amiguinha das competições, a escaladora Camilla Porto, que na época tinha 14 anos: “Vamos escalar no Pão de Açúcar?”. O pai de Camilla garantiu a Goro e Mieko que as meninas podiam ir sozinhas, já que Camilla tinha repetido a via dezenas de vezes e guiava e dominava os procedimentos com total segurança. Elas fizeram a via Italianos, emendada com a Secundo, e até onde há registro é a dupla mais jovem a ter escalado a via por conta própria. De quebra, uma cordada feminina.

Goro no cume do Dedo de Deus (RJ) – Foto: Arquivo Pessoal

O INTERESSE pelas competições começou ao verem um cartaz no local onde treinavam – a academia 90 Graus, na zona sul de São Paulo – anunciando um campeonato. A primeira competição de Ana Luisa, aos 15 anos, foi em uma balada: o Palicari, em Campinas, bar temático de esportes que tinha uma parede de escalada e sediava eventos. Com o tempo, Goro e Mieko acabaram conhecendo os organizadores de campeonatos e participaram da fundação da Associação Paulista de Escalada Esportiva (APEE), que por anos organizou o esporte no estado.

Mieko na Pedra do Baú – Foto: Arquivo Pessoal

Esse bastão acabou sendo passado para frente. Há quatro anos, Thais participou da fundação da Associação Brasileira de Escalada Esportiva, que permite que o Brasil tenha atletas participando de campeonatos oficiais da entidade máxima do esporte, a International Federation of Sport Climbing (IFSC). É ela que valida o ranking de atletas que irão participar das seletivas das Olimpíadas. “Agora estou afastada da organização para poder competir”, explica Thais. “O esporte está em um momento de profissionalização, e são muitas mudanças acontecendo rapidamente, tanto no grau de exigência com os atletas como na visibilidade da escalada.” Isso quer dizer que a lista de questões burocráticas a ser resolvida é ampla – e isso nunca será tão divertido quanto escalar para um atleta.

Os conselhos dos pais de Thais foram fundamentais para ela ter tranquilidade para encarar a tarefa. “Uma hora eu disse ‘chega!’ para a Thais, porque ela estava se estressando demais. Estar nos bastidores é dor de cabeça mesmo, e sempre vai ter críticas. Passamos pela mesma coisa”, diz Mieko.

É a primeira vez que a seleção brasileira de escalada possui uma equipe tão completa. Em junho, Thais, junto dos escaladores Luana Riscado, Cesar Grosso, Pedro Nicoloso e Jean Ouriques, com suporte do preparador físico da seleção Anderson Gouveia, competiu na Copa do Mundo de Boulder em Vail, no Colorado (EUA). “Nosso papel é estruturar ao máximo o esporte para dar as melhores condições para a próxima geração”, acredita Thais. Em 2020, a escalada estreia como esporte olímpico em Tóquio, no Japão, com as modalidades de boulder, velocidade e dificuldade, e a participação em campeonatos internacionais agora define a possibilidade de o Brasil competir por uma das 20 vagas olímpicas de escalada. “Para ser bem sincera, eu não esperava que tudo fosse acontecer tão rápido. Nem que a escalada se tornaria um esporte olímpico, nem que o Brasil organizaria melhor seu esporte para criar condições para competir”, confessa a atleta.

Diante de seleções nacionais com mais tradição e suporte financeiro, como a norte-americana ou a japonesa, é mesmo um belo desafio. Principalmente ao levar em conta que os atletas brasileiros hoje conciliam o esporte com carreiras normais. Thais, por exemplo, é formada em artes plásticas pela Unicamp e trabalha como freelancer em produção fotográfica para poder conciliar os treinos e, no tempo que sobra, o hobby de aquarelista.

Em paralelo a ajudar na organização de campeonatos ou competirem eles mesmos, Mieko e Goro cuidam da marcenaria da família. Quem diz que em casa de ferreiro o espeto é de pau pode morder a língua: a sala de estar da casa da filha Ana Luisa é tomada por uma linda parede de escalada de timborana, madeira avermelhada e suave, de veios delicados, onde a família faz parte dos treinos.

Ana Luisa e a filha em uma viagem à África do Sul – Foto: Arquivo Pessoal

Ana Luisa, nos últimos cinco anos, dividiu a dedicação às agarras de resina com a chegada de Luisa. A miniescaladora já segue os passos da família: curte boulder, faz questão ela mesma de marcar com adesivos as vias que quer fazer e, quando cansa da brincadeira, acha um cantinho nos colchões para tirar um cochilo enquanto os pais escalam. Aliás, escalar parece ser um pré-requisito para entrar na família. Mieko deu uma de cupido com as duas filhas: foi ela que plantou a ideia de um namoro tanto com o marido de Ana Luisa, Octávio Bernardo, escalador amador e apaixonado pelo esporte, quanto com o namorado de Thais, o route setter (especialista na criação de vias de escalada) Marcelo Balestero. “A Thais é uma caipira e o Marcelo é um caipira. Então eu fui lá e apresentei, porque eles combinavam muito e, se dependesse deles, nunca iam começar a conversar”, diverte-se a sogra. Que a escalada se multiplique, com mais famílias assim.

*Reportagem publicada na edição nº 153 da Revista Go Outside, julho de 2018.







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