ENQUANTO DIRIGE do Estado de Washington, nos EUA, em direção à sua casa, em Montana, Maiza Lima responde, por mensagem de voz, às perguntas enviadas pela Go Outside para esta reportagem.
O percurso tem mais de 700 milhas (cerca de 1.000 km), e ela aproveita a estrada para gravar. “Desculpe, meu português é uma droga”, diz a certa altura, depois de emendar algumas palavras em inglês ao longo das frases, que saem com algumas entonações e acentos típicos de um gringo esforçado.
A língua materna ficou enferrujada depois de 17 anos de pouco uso, quase duas décadas dos seus 34 de existência; um período em que a brasileira – apelidada na infância de “lagartixa de curral” – trocou de pele, silenciou sua história e assumiu uma nova condição carregada de sentimentos conflitantes. Ao sair da pequena vila de Alacilândia, em Conceição do Araguaia, no Pará, deixou para trás um destino que era dado como certo – “engravidar aos 15, casar com algum peão local e ir para a roça” – por uma página em branco.
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Levada pela mãe, Geralda, foi parar na fronteira do México, rumo a uma jornada de frio, fome, medo e expectativas, até a cidade de Seattle, nos Estados Unidos, onde as duas passariam os anos seguintes limpando casas, driblando a polícia e, finalmente, encontrando algum conforto e oportunidades para uma vida melhor. As dores e a dificuldade de esconder a condição ilegal até mesmo para amigos hoje dão lugar a um enorme sentimento de gratidão.
Quando chegou à América do Norte, Maiza Lima ainda sonhava com um diploma universitário, algo impensável no contexto familiar de Alacilândia, onde a escola ficava longe, a comida era pouca e a dependência do álcool e do jogo consumia o pai e os poucos recursos.
O dia a dia em Seattle, no entanto, era de muita ralação e não sobrava tempo para estudar. Juntas, Maiza e Geralda limpavam até cinco casas por dia e assim iam conseguindo estabelecer um padrão confortável. Maiza podia escolher um vestido bonito, sair à noite para dançar e curtir o pacote básico do fim da adolescência e início da vida adulta em uma cidade grande. Era só ter cuidado com a polícia.
A graduação veio por outros caminhos, impossíveis de serem imaginados durante a infância amazônica de mergulhos e pesca no rio Araguaia. Foi graças a um convite para fazer caminhadas nos arredores de Seattle que ela enxergou um bom motivo para “sair mais cedo da cama” nos dias de folga.
As montanhas da Cordilheira Cascade a estavam chamando, e ela tinha que ir, seguindo o célebre mantra de John Muir – considerado o pai dos parques nacionais norte-americanos –, responsável indireto pela descoberta da brasileira, que se entregou completamente àquela atmosfera: primeiro caminhando, depois fazendo escalada alpina e, por fim, escalando em rochas.
De 2015 – quando fez sua inscrição em um curso de escalada sem ter muita ideia do que aquilo seria – de lá para cá, não apenas a vida dela, mas a realidade do esporte mudou bastante.
Enquanto Maiza Lima descobria, nos treinos diários em ginásios locais, uma força física que ela não conhecia, mais e mais pessoas também pegavam gosto pela prática. Nos últimos anos, a brasileira diz ter testemunhado um crescimento que trouxe ginásios, empresas especializadas, academias e novas oportunidades de trabalho a um mercado ultra nichado até mesmo por lá, onde a cultura outdoor faz parte da vida de quase qualquer cidadão.
Uma sucessão de aspectos positivos, que foram levando a própria Maiza para a posição que ocupa agora: guia de escalada, modelo de marcas especializadas em vida ao ar livre, atleta patrocinada e feliz companheira de Dallin Wilson, bombeiro das Forças Armadas norte-americanas e apaixonado pelas rochas, como ela. No topo de tudo isso, está uma missão que surgiu naturalmente: trazer representatividade para mulheres e comunidades até há pouco tempo invisíveis na cena da escalada.
“Sair de debaixo do tapete e dizer ‘eu sou ilegal no país, mas também posso fazer coisas que os norte-americanos fazem’ foi muito difícil e desafiador. Além da barreira da língua, há outras. Todo mundo em Seattle trabalha para o Google, a Microsoft, então encher o peito e dizer ‘eu também posso’ foi duro”, avalia a brasileira que hoje estampa as campanhas de gigantes como a REI, Eddie Bauer e Black Diamond e ajuda a diversificar a imagem que se tem de um típico praticante de escalada: homem, branco, magro e alto.
Ao emprestar seu sorriso e sua personalidade expansiva para esses catálogos e anúncios, Maiza encoraja muita gente a dar as caras e encontrar um grupo, enquanto as marcas acessam novos consumidores e estabelecem padrões mais democráticos e inclusivos no esporte. “Eu acredito que represento todas essas coisas”, diz.
A facilidade de lidar com as pessoas, a simpatia e, claro, o talento nas paredes renderam o convite para integrar o time da She Moves Mountains (Ela Move Montanhas, na tradução literal), uma organização voltada para atender mulheres e minorias de gênero interessadas em escalar. A missão é proporcionar retiros, programas e cursos exclusivos para que aspirantes, iniciantes e experts aproveitem a escalada com mais liberdade, menos pressão e muita representatividade. “É um lugar onde elas podem ter o espaço delas para escalar da maneira que quiserem; sorrindo, chorando ou compartilhando frustrações que não expressam quando estão em um ambiente masculino”, explica Maiza, uma das 12 guias da organização.
Das alunas às mentoras, todo mundo ali tem a chance de se desenvolver em um contexto mais acolhedor e empático. “Elas vêm buscar um espaço mais seguro para evoluir. Muitos profissionais levam iniciantes para escalar mas acabam sendo arrogantes e invalidando a experiência, afastando essas pessoas do esporte ao invés de fazê-las se apaixonarem. Queremos dar esse suporte e mostrar que a escalada é linda e que cada um pode fazer do seu jeito, sem precisar seguir regras que comprovem sua importância ou sua força”, explica.
A própria Maiza foi acolhida dessa forma, durante um camp de escalada em que conheceu a fundadora do She Moves Mountains, Lizzy VanPatten. Foi ela que viu na brasileira o potencial para ser uma mentora e ensinar outras mulheres. Maiza Lima está tirando todas as certificações em tempo recorde e não para de guiar e abrir novas vias. A primeira que abriu, ela batizou de The American Dream (O Sonho Americano), para homenagear o país que a permitiu encontrar suas potências.
“Para a maior parte de nós, imigrantes, é um país de oportunidades. Aqui, fazendo qualquer coisa, dá para crescer. Limpando casas, cuidando de crianças. Tudo é realmente possível se você trabalhar duro”, acredita a moça, que deixou a rotina de faxinas em Seattle quando se mudou para Great Falls, em Montana, com o marido. Na cidade de menos de 100 mil habitantes, ela era a única mulher escaladora e começou a explorar as paredes mais próximas, abrindo vias – e novas possibilidades para a sua comunidade.
Tendo rompido tantas bolhas e barreiras, Maiza sabe que autoconfiança é uma meta. Vê a dificuldade em suas alunas, lutando contra a insegurança, o medo e a vergonha, seja do próprio corpo, seja de uma performance aquém das expectativas, uma cobrança que às vezes vem no combo de quem começa em um esporte e quer se dedicar a ele.
Ela mesma precisa se lembrar constantemente de não se comparar com outras pessoas enquanto persegue sua evolução como atleta. Cravar o seu primeiro 5.13b (uma via equivalente ao grau 9b brasileiro) ou estar na capa da maior revista de escalada dos Estados Unidos, a Climbing, em 2020, ainda não são comprovações suficientes para que ela se considere uma escaladora do gabarito que pretende alcançar.
“Comecei a escalar tarde, aos 26 anos, e não sou nenhuma profissional. Ao menos 50% dos escaladores conseguem fazer o que eu faço; não estou em um nível acima da maioria das pessoas que escala no dia a dia. Para mim é difícil aceitar que eu tenha crescido tanto na escalada, ganhado visibilidade e patrocínios, com um desempenho que ainda considero básico”, pondera.
“Mas para lutar contra a síndrome de impostora tento me lembrar constantemente de que somos todos indivíduos únicos, incomparáveis, que cada um de nós tem um motivo para crescer, uma história, uma personalidade, coisas que vão além da performance. Inspirar outras mulheres a buscar o esporte e crescer tem sido meu maior estímulo”, completa.
“Difícil é encontrar tempo para treinar”, admite. Só nos últimos cinco meses, ela dirigiu 733 horas, de acordo com o marcador do seu carro, para guiar outras mulheres, tirar suas licenças e visitar a mãe em Seattle. Mas agora ela pode até cruzar outras fronteiras e escalar paredes em países como Grécia e México – onde só havia estado para imigrar.
Geralda teve sua documentação regularizada mais cedo e já visitou a família no Brasil muitas vezes, mas Maiza Lima precisou se restringir ao território dos Estados Unidos até 2019, quando legalizou sua situação no país e passou a falar mais abertamente da sua condição de imigrante.
“Tinha muito medo de ser julgada e só hoje me sinto perdoada, de certa forma.” Em maio deste ano, quando ela trocava mensagens com a Go Outside, fez a entrevista para ter a cidadania e passou. No mês de junho será, oficialmente, cidadã norte-americana. O destino não estava escrito de largada, foi sendo, nas suas palavras, traduzido.
“Uma vez uma das clientes me falou que eu parecia uma bailarina escalando na rocha. Pensei: ‘Hum… quando criança, eu queria ser atriz, modelo ou dançarina’. Hoje faço não filmes ou novelas, mas vídeos. Sou modelo, não de passarelas e revistas de moda, mas de marcas outdoor. E posso me considerar uma bailarina de parede. Não foi do jeito que eu imaginei, mas foi melhor.”
Para acompanhar a rotina da escaladora, siga o perfil @maizalimarock no Instagram.
Trecho da reportagem Subindo na Via, publicada na Go Outside 174.