As geleiras da Terra estão derretendo cada vez mais rápido como consequência das mudanças climáticas causadas pelo homem. Agora, uma nova pesquisa publicada pela revista científica Nature Geoscience revelou outra tendência preocupante: grande parte das geleiras espalhadas pelo globo possuem bem menos gelo do se estimava.
Conduzido por Romain Millan, pesquisador do Instituto de Geociências Ambientais de Grenoble, na França, o estudo feito com base em imagens obtidas por satélites da Agência Espacial Europeia e da NASA concluiu que as geleiras do mundo contêm 11% menos gelo em comparação com as estimativas anteriores.
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O trabalho levou em conta mais de 800 mil pares de fotografias, coletados entre 2017 e 2018, e mediu a profundidade e a velocidade de derretimento de mais de 250 mil geleiras de montanha, o equivalente a 98% das geleiras do mundo. Além disso, revelou que as geleiras têm o potencial de contribuir com cerca de 25,7 centímetros para o aumento do nível do mar – número aproximadamente 20% menor do que as estimativas anteriores.
À primeira vista, um aumento do nível do mar abaixo do esperado anteriormente até poderia soar como uma rara boa notícia, mas essa ideia é enfaticamente refutada por Millan e seus colegas de pesquisa. “A mensagem principal é que descobrimos que há menos gelo nas geleiras e isso significa más notícias em termos de recursos de água doce para pessoas em todo o mundo”, afirma o cientista.
A pesquisa disparou um novo alerta sobre a disponibilidade de água doce em regiões das Cordilheira dos Andes, por exemplo, que contêm 27% menos gelo glacial do que o calculado anteriormente. E isso é uma tendência que possui implicações globais, já que assim como nos Andes o escoamento glacial é responsável por fornecer água doce para comunidades e ecossistemas em vários lugares do mundo.
A pesquisa, que também teve a coordenação da Faculdade de Dartmouth, nos EUA, pode ser considerada uma importante ferramenta para entender como estão as condições das grandes geleiras espalhadas pelo globo e de outras que nunca haviam sido mapeadas antes em regiões do Cáucaso, Nova Zelândia e ilhas da costa da Antártica.
“Desde 2013 houve uma revolução nas imagens de satélite”, explica Millan sobre a abrangência do estudo. “Por exemplo, com o satélite Sentinel-2 você pode tirar uma foto da mesma geleira a cada cinco dias, o que muda completamente a maneira como vemos as geleiras. Isso realmente nos permite fazer um mapeamento sistemático da velocidade de derretimento do gelo de todas as geleiras”, destaca o pesquisador. “Mapeamos a velocidade do gelo com uma resolução de 50 metros, o que nos permitiu observar detalhes finos nas geleiras que não eram possíveis no passado”, acrescenta.
Apesar da conclusão de que as geleiras do mundo contêm 11% menos gelo em comparação aos resultados anteriores, esses déficits de gelo não estão distribuídos uniformemente pelo planeta. Algumas regiões possuem muito mais reservas de gelo do que o estimado anteriormente. As geleiras do Himalaia, por exemplo, possuem 37% mais gelo do que o sugerido nos estudos anteriores.
No entanto, comunidades no norte da Ásia – que a equipe estima que podem ter 35% menos gelo do que o estimado anteriormente – bem como aquelas localizadas em partes da Cordilheira dos Andes, podem estar muito mais vulneráveis ao esgotamento da água doce no futuro do que o previsto.
“A descoberta de menos gelo é importante e terá implicações para milhões de pessoas em todo o mundo que precisam de água doce não apenas para beber, mas para irrigação de plantações e energia hidrelétrica, entre outras aplicações”, diz Mathieu Morlighem, coautor do estudo e professor de Ciências da Terra no Dartmouth College.
Enxugando o gelo
O iminente derretimento das geleiras já vem trazendo consequências graves para os alpinistas, sherpas e populações que vivem próximos às montanhas, que ficam ainda mais expostos às avalanches e outros perigos na altitude.
“Não há dúvidas de que os efeitos das mudanças climáticas impactam a prática do alpinismo. Com o processo acelerado do derretimento das geleiras, há um número maior de quedas de seracs e também um aumento na quantidade de gretas nos glaciares que precisamos cruzar. As rochas que se mantinham fixas pelo gelo acabam se desprendendo com mais frequência”, afirma o experiente alpinista brasileiro Moeses Fiamoncini.
“As mudanças climáticas tornam o nosso campo, que já é perigoso, em um campo ainda mais desafiador”, acrescenta o montanhista paranaense, que já escalou montanhas como o Everest, K2 e Nanga Parbat, esses dois últimos sem o auxílio de oxigênio. “De todas as montanhas que já escalei, o K2 foi onde eu vi a maior quantidade de rochas caindo. Enquanto descia do cume, na região chamada black pirâmide, uma rocha gigante quase me pegou. Foi um grande susto. Mas você poderia pensar: ‘é claro! É a segunda montanha mais alta do mundo e sua geografia a torna íngreme, então isso é normal.’ Sim, esse pensamento tem sentido, porém, os alpinistas mais velhos, os sherpas e outros guias locais nos contam que não era assim, e não há muito tempo”, diz.
Para Millan e sua equipe de cientistas, seria necessário pesquisas de campo para uma resposta mais conclusiva de quanta água ainda está realmente retida nessas geleiras. “Nossas estimativas são mais próximas, mas ainda incertas, principalmente em regiões onde muitas pessoas dependem de geleiras”, disse Millan. “Coletar e compartilhar medições é complicado, porque as geleiras estão espalhadas por tantos países com diferentes prioridades de pesquisa”, finaliza o cientista.
Já para quem vive na montanha, as consequências já estão sendo sentidas na pele. “Na montanha Lobuche East, nas proximidades do Everest, por exemplo, é inacreditável o tanto que o glaciar encolheu em apenas 15 anos. O mesmo acontece em outros locais e nós alpinistas, que sempre estamos nessas zonas, vemos as marcas com nossos próprios olhos. Embora a história do planeta Terra nos conte que passamos por períodos cíclicos de glaciação e aquecimento global, acredito que nós estamos acelerando o processo de aquecimento e agora teremos que lidar com as consequências”, finaliza Fiamoncini.