Corredor costuma ser um bicho teimoso. Os experientes são os mais durões: acham bobagem investir tempo em qualquer coisa que não seja treino específico para a corrida e batem no peito orgulhosos de nunca terem precisado se submeter ao tédio dos exercícios das salas de musculação. Os especialistas atualizados na literatura recente, entretanto, garantem que nenhum tipo de atleta de corrida pode dispensar um trabalho de fortalecimento muscular eficiente e bem executado, independentemente dos objetivos esportivos, hábitos ou fases da vida.
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“A força é a capacidade física mais primordial que nós temos. Sem ela, não levantamos da cadeira. Correr é importante, mas não é suficiente”, alerta Renato Dutra, um dos maiores peritos no assunto, corredor há 30 anos e treinador faz 20.
Quando pensamos em fortalecimento para corrida, geralmente a imagem que vem à cabeça é de músculos fartos. O senso comum nos engana também nesse ponto, já que um corredor forte não é necessariamente aquele com o maior bíceps ou a panturrilha mais definida e, sim, o que foi além e dedicou atenção aos chamados “tecidos moles” ou “conectivos”, compostos pelos ossos, cartilagens e tendões, tão exigidos durante a corrida e primordiais para uma adaptação bem-sucedida ou para que sejamos capazes de correr pela vida afora. Por isso os treinos de força precisam ser voltados para as características que a corrida apresenta.
Enquanto os programas de musculação da maioria das academias perseguem um público mais interessado em resultados estéticos e apostam principalmente na hipertrofia muscular – ou seja, ganho de massa corpórea, mais imediato e visível –, o que a corrida pede é um treino específico, que contemple aspectos neurotransmissores, responsáveis por melhorar a eficiência mecânica, preservando articulações, tendões, ossos e músculos. Não precisa estacionar nos aparelhos de musculação – embora eles ainda sejam a alternativa mais comprovadamente segura, prática e eficiente. Vale optar por outros estilos de treino, e há até quem diga que bom mesmo é misturar diferentes tipos. Mas se você quer começar a correr, voltar à corrida, melhorar suas marcas ou simplesmente se manter na atividade até o fim da vida, é preciso abrir a cabeça e investir em algum método de fortalecimento. A gente te ajuda nessa missão!
INICIANTES
Principal objetivo: Preparar o corpo para receber a carga aplicada na corrida.
Cuidado: Pegue leve! A adaptação precisa de tempo e persistência, não de carga extra e exageros.
Quem está começando a correr precisa pensar em si mesmo como uma casa em processo de construção. A prioridade nesse primeiro momento é construir uma base forte, a fundação saudável para tudo o que virá depois. “Por isso é que não pode ficar aumentando muito a carga de treino na corrida ou na musculação com pressa de ganhar força, porque ossos, tendões e cartilagens recebem muito menos aporte sanguíneo e portanto têm uma velocidade de adaptação mais lenta em relação aos músculos”, explica Renato Dutra. A orientação é repetir os mesmos treinos ao longo de algumas semanas para dar tempo de esses tecidos conectivos criarem condições de responder às novas cargas. Segundo Nelson Evêncio, especialista em treinamento esportivo e presidente da ATC (Associação dos Treinadores de Corrida de São Paulo), essa não é a hora de pensar em performance, mas, sim, de adaptar o corpo à nova realidade. “Normalmente fazemos uso de cargas leves, trabalhando poucos grupamentos musculares”, diz o expert.
Até pouco tempo atrás, era comum que os treinos de força fossem pensados a partir das extremidades, ou seja, braços e pernas. Hoje os treinos são montados em termos de movimento, concebidos a partir da exigência motora do corredor. Por causa disso, a região do core (conjunto de músculos do tronco) vem ganhando muita importância: um tronco forte faz muita diferença na prevenção de lesões e no ganho de performance.
Os especialistas recomendam que iniciantes da corrida caprichem no fortalecimento dos músculos da região ao redor do abdômen e parede abdominal, assim como da parte posterior: costas, paravertebrais, região lombar e do quadril profundo, abaixo do glúteo máximo, que é o músculo mais saliente do bumbum. Ali existe uma série de outros músculos, como glúteo médio, mínimo e piriforme, que dá muita estabilidade durante as passadas do corredor.
Nessa fase inicial, prefira exercícios pouco complexos, como o agachamento, que sejam base para outros mais elaborados, como afundos e avanços. É a hora certa para encarar as salas de academia e seus aparelhos cada vez mais eficientes. “Por ser bidimensional – trabalhando em apenas dois eixos –, a musculação é uma boa pedida para os iniciantes, simplificando essa primeira fase, proporcionando mais segurança e apresentando resultado”, aconselha Renato Dutra.
Outra boa alternativa é o pilates, que fortalece profundamente a região central do corpo, tão importante para a estabilidade. Luciano Baccelli é ex-atleta da seleção brasileira de atletismo, treinador físico e fisioterapeuta. Há sete anos adotou o pilates como método para treinar outros atletas. “O pilates dá conta de força, resistência, equilíbrio, alongamento e percepção corporal, permitindo uma gama de exercícios que se adaptam à necessidade de cada pessoa”, defende. Em corredores iniciantes, Luciano costuma prestar atenção à coordenação geral e dos movimentos próprios da corrida, além de dar ênfase ao alongamento e força de todo o corpo.
CORREDORES DE 5 A 10 KM
Principal objetivo: Ganho de potência muscular, com estímulos rápidos e explosivos.
Cuidado: Com exercícios que fadigam sua musculatura acrescentando muito pouco à sua corrida.
Nessa fase, o corredor precisa já ter superado o período de adaptação, tanto na corrida como no fortalecimento. Com a musculatura e as articulações preparadas para um estímulo mais exigente, vale acrescentar carga, velocidade e potência aos seus treinos, principalmente se o objetivo for ser bem-sucedido em uma prova de até 10 km. Para melhorar a mecânica do corredor e deixar a corrida mais econômica, inteligente e rápida, os especialistas têm apostado em trabalhos com força máxima e potência muscular, que são treinos de intensidade mais alta e que pedem uma supervisão mais apurada.
Enquanto os exercícios de força máxima são executados com carga extrema, poucas repetições e intervalos longos, os de potência muscular são feitos com cargas moderadas e movimentos mais rápidos e explosivos. “Quem está se preparando para uma prova de até 10 km deve priorizar os treinos de potência muscular, não os de força máxima, porque essas competições possuem características que dependem um pouco mais de mecanismos anaeróbicos”, explica Renato Dutra, que também pede atenção à escolha dos aparelhos e tipos de exercício que fogem das necessidades específicas do corredor. Na opinião dele, a cadeira extensora, por exemplo, é um dos maiores equívocos para quem quer ganhar força na corrida. “A pessoa ali não está encostando o pé no chão, está só fortalecendo o músculo de forma isolada, sem nenhum movimento, o que não interessa a quem corre”, alerta.
O mesmo vale, segundo o especialista, para as cadeiras adutoras e abdutoras: prefira fazer esse mesmo trabalho em pé, com uma polia, chutando uma perna de cada vez para fora e depois para dentro, alternadamente. Dessa forma, você estará recrutando a força de todo o corpo em uma “cadeia cinética fechada”, que é uma cadeia de movimentos com característica mais dinâmica e voltada para a resistência e para o trabalho de proprioceptores, bem mais ajustados à corrida.
O treinamento funcional também pode contribuir para quem busca potência graças ao uso de exercícios pliométricos (com saltos). Renato Carvalho é técnico de treinamento funcional e ressalta a vantagem desse trabalho “multiplanar” (realizado sobre mais de um plano), multiarticular e flexível. Enquanto a musculação isola, o funcional permite maior amplitude de movimentos. “A musculação é sensacional quando se pensa em ganho de massa muscular, massa óssea e fator estético. Trabalhos recentes já apontam para uma musculação funcional, na qual cada atleta trabalha exercícios específicos para a sua modalidade.”
CORREDORES DE 21KM A 42KM
Principal objetivo: Ganho de resistência muscular e proteção das articulações.
Cuidado: Com o desgaste e a falta de tempo entre os treinos para recuperar sua musculatura.
Longas distâncias são sinônimo de desgaste físico e mental. Ou, se preferir olhar a parte cheia do copo, esses corredores se tornam mais resistentes física e psicologicamente. Isso se forem naturalmente bem dotados para essas missões ou se trabalharem duro na preparação do corpo e da mente. Para qualquer um dos dois grupos, o melhor é estar forte para encarar quilômetros e mais quilômetros de movimentos repetidos, impacto, desconforto. Assim como na corrida, a periodização do trabalho de força ganha ainda mais destaque no caso daqueles que têm provas longas como objetivo. O ideal é ter feito um primeiro trabalho de base, depois avançar na técnica, passar para a velocidade e terminar no polimento. O foco principal dessa turma, no entanto, deve ser a resistência muscular e força das musculaturas periarticulares, que protegem tornozelos, quadris e joelhos.
Renato Dutra prefere ganhar essa resistência com trabalho de força máxima. “A força máxima se dá com um programa de 3 a 4 séries, pouquíssimas repetições (não mais de 4) e cargas o mais pesadas possível, bem próximas da capacidade máxima do praticante. O descanso entre séries tem que ser longo, o que agrega uma característica neural, do sistema nervoso central, de estimular a melhoria da coordenação e da eficiência mecânica. É um treino em que se faz muita força naquele momento, mas que gera muito pouca microlesão: meia hora depois do treino, a pessoa está como se nem elasticitivesse treinado, o que não acontecia no fim dos ultrapassados treinos de resistência em academias, com séries de 2 e 3 minutos”, compara o treinador.
Outro método que trabalha muito bem o uso da força máxima e exercícios de alta intensidade é o crossfit, modalidade que nos últimos anos ganhou o coração de muitos adeptos fervorosos. Os motivos para tanta paixão são compreensíveis: os treinos são ultradinâmicos, não se repetem nunca e são feitos em grupo, o que é sempre um estímulo a mais. Renato Koji foi treinador de corrida e tem várias meias maratonas e maratonas no currículo. Hoje lidera a equipe de treinadores do Hangar 193 Crossfit, em São Paulo. “Durante meu trabalho com corrida, vi diversas vezes pessoas capazes de correr 42 km, mas incapazes de pular a altura de uma calçada, sem flexibilidade para transpor um muro baixo ou fazer um agachamento sem cair no chão, gente com dores lombares e com técnica de corrida pouco eficiente por falta de força e flexibilidade”, relata. O desconforto físico é parte do treino de crossfit, o que pode ser convertido em força mental. “Isso com certeza é transferido para uma prova longa. A mente tem que ter força para superar esses desafios.”
CORREDORES DE TRILHA
Principal objetivo: Ganho de propriocepção, resistência e força muscular.
Cuidado: Não confunda exercícios em bases instáveis com malabarismos circenses.
Em comum, a corrida de trilha (ou corrida de montanha) e a corrida no asfalto têm apenas a primeira palavra. Tratam-se de duas modalidades completamente diferentes, o que significa que as exigências também não são iguais. Para começar, as provas em trilhas já partem de distâncias geralmente maiores. O tempo que se passa correndo (ou andando, o que é mais do que comum nesse tipo de percurso que contempla longas subidas em terrenos rústicos) costuma ser maior. O piso é imprevisível. O ambiente se impõe, seja para recompensar uma escalada extenuante com um visual de tirar (ainda mais) o fôlego, seja para jogar areia nos seus planos. Tudo isso pede outros modelos de força.
“Nesse caso, o funcional vai muito bem porque esse corredor tem muito mais surpresas ao longo do percurso (pedra, buraco, raiz, saltos) e precisa estar preparado para situações imprevisíveis”, indica Renato Dutra, geralmente mais partidário da musculação. A justificativa dele e dos profissionais do treinamento funcional reside na imprevisibilidade: a corrida é uma modalidade “cíclica” e “fechada”, ou seja, caracterizada por movimentos repetitivos e mais ou menos previsíveis. Na montanha, ela se mantém cíclica, mas é “aberta”, como em um jogo de futebol, em que as combinações são infinitas. O trabalho de fortalecimento funcional é indicado graças à sua capacidade de simular exigências semelhantes às que um atleta encontra nas trilhas de corrida.
Renato Carvalho lembra de outra característica do treinamento funcional – fundamental para o corredor de trilhas – que é o equilíbrio entre mobilidade e estabilidade. “Mobilidade para os tornozelos, estabilidade para os joelhos. Mobilidade para os quadris, estabilidade para a lombar. Às vezes uma dor na lombar tem como causa não a lombar em si, mas uma falta de mobilidade dos quadris. No funcional, o processo articular é priorizado.”
Exercícios com cargas unilaterais e sobre bases instáveis, séries que combinam múltiplas habilidades – como as que somam o equilíbrio sobre um balance disc com lançamento de bola à parede – fazem parte da rotina de atletas que buscam o fortalecimento integrado do corpo, para deixá-lo sempre “alerta”, de acordo com a exigência das provas rústicas de corrida. Vale a pena fazer uma boa parte desses treinos com os pés descalços, para desenvolver estímulos táteis e aguçar ainda mais a propriocepção. Olhos fechados ajudam: quando se diminui a fonte visual de informação, nossa propriocepção tende a cair, e treinar sem esse recurso acaba aguçando essa capacidade.
Renato Koji também acredita no poder do crossfit para trabalhar múltiplas capacidades físicas e faz uma lista: “Flexibilidade, precisão, coordenação, potência, agilidade, equilíbrio para transpor obstáculos durante a corrida, resistência cardiorrespiratória e muscular para suportar as longas distâncias e sustentar o peso do próprio corpo. Isso sem falar no trabalho de prevenção de lesões”, afirma o especialista.
*Parte da reportagem “Força Sob Medida” publicada na edição nº 150 da revista Go Outside, abril de 2018.