O turismo em excesso pode colocar a Patagônia em risco?

Por Sofia Missiato Barbuio*

O trekking é um dos grandes atrativos da Patagônia. Foto: Jan Jerman / Shutterstock.

Com mais de 300 mil visitantes anuais, e o parque batendo recordes de visitação, profissionais da montanha expõem os bastidores de um trabalho marcado por riscos, desvalorização e resistência

Entre 2018 e 2019, o Parque Nacional Torres del Paine registrou um crescimento estável no número de visitantes, com um aumento de 5,25%. No entanto, a chegada da pandemia provocou uma queda abrupta: em 2020, o fluxo de turistas despencou 53,15%, com novas reduções nos anos seguintes, 2021 e 2022. A retomada começou de forma significativa em 2023, com um crescimento expressivo de quase 200% em relação a 2022. Já em 2024, o cenário é ainda mais impressionante: o parque não apenas recuperou os níveis pré-pandemia como ultrapassou o recorde histórico de 2019, registrando um crescimento de 38,23% em comparação ao ano anterior. Todos esses dados foram retirados do site oficial da CONAF.

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Julieta Fernández Canepa, que começou sua trajetória como guia em 2002, inicialmente em El Chaltén e depois em Torres del Paine, conta que o perfil dos visitantes independentes — aqueles que fazem os circuitos sozinhos, sem empresas ou guias — pouco mudou ao longo dos anos. “Esse público geralmente já tem uma bagagem sólida em trekking, carrega sua própria barraca, está acostumado com o esforço físico e os desafios do terreno. A diferença mais visível talvez seja no poder aquisitivo, já que tudo está mais caro”, explica.

Visual de Torres del Paine. Foto: Ana Li Rufino.

Por outro lado, o público que contrata pacotes com empresas especializadas passou por transformações mais notáveis. “Muita gente chega hoje sem nenhuma experiência prévia. Vêm porque as agências vendem a ideia de que não é preciso preparo, e que o guia dará conta de tudo. Só que nem sempre é assim. Quando aparece alguém sem preparo físico, com problemas de joelho ou tornozelo que nem sabia que tinha, e que descobre isso ali, em campo, tudo se complica”, diz. Segundo Julieta, há um aumento de turistas que enxergam o trekking como um item a riscar de uma lista de desejos, e não como uma prática que exige preparo, respeito pela montanha e pelo corpo. “Às vezes, cuidar do grupo parece mais com tomar conta de um bando de crianças — tem pessoas que não sabem onde pisar, não sabem usar bastão de caminhada, amarrar os calçados ou lidar com bolhas nos pés.”

A crescente presença de visitantes movidos mais pela moda do que pela conexão com a natureza tem tornado o trabalho dos guias mais desafiador. “Quando tudo dá certo — clima bom, trilhas secas —, até dá para contornar. Mas quando chove, neva ou faz muito frio por vários dias seguidos, o emocional dessas pessoas desaba. E aí, manter o grupo unido e seguro se torna uma tarefa muito difícil”, conclui Julieta.

Essa mudança no perfil dos aventureiros também é sentida por Felipe Bravo, que trabalha como guia profissional desde 2001, embora sua trajetória no turismo tenha começado ainda mais cedo, aos 16 anos, ajudando guias em operações familiares de pesca e glamping na Patagônia. “Cresci nesse meio. Meus pais tinham uma estância que funcionava como lodge de pesca e depois evoluiu para um serviço mais sofisticado. Mas naquela época, vendíamos aventura real, não esse luxo disfarçado que se vende hoje.”

Felipe observa que houve uma transformação gradual e inevitável no setor, puxada tanto pela competição quanto pelo tipo de turista que tem condições financeiras para acessar esses destinos. “Hoje, quem sustenta o mercado não é o verdadeiro montanhista, mas o ‘wannabe’ — aquele que quer viver, ou pelo menos contar que viveu, uma experiência extrema na Patagônia. É essa pessoa que gasta dinheiro e dita as tendências.”

Segundo ele, isso impacta diretamente no tipo de serviço oferecido. “As operadoras perceberam que esse público está mais disposto a pagar por conforto e segurança do que por autenticidade. Por isso, adaptaram a experiência para parecer selvagem, mas com todas as comodidades possíveis.” Felipe lamenta que essa mudança, embora compreensível do ponto de vista econômico, tenha diluído a essência cultural da região. “Hoje, o Paine virou uma vitrine para turistas. Antes era um território para expedicionários.”

Ele dá como exemplo a famosa trilha até a base das Torres, que muitos ainda anunciam como uma caminhada de oito horas. “Mas a realidade é outra. Para a maioria das pessoas, são dez horas — e muitas delas sequer imaginam o que isso significa. Estão ali pela selfie, para provar que também são ‘dessas pessoas’. E nesse processo, acabamos perdendo algo fundamental: a riqueza simbólica e cultural que sempre fez da Patagônia um lugar especial no turismo de natureza.”

A experiente guia Julieta Fernández Canepa lidera um grupo em Torres del Paine. Foto: Arquivo Pessoal.

Diferenças do circuito W e O

Falando em escolhas, muitos viajantes se perguntam sobre as diferenças entre os dois principais percursos em Torres del Paine: o circuito W e o circuito O — também conhecido como o “circuito grande”. Julieta explica que o W é o clássico, mais popular e comumente realizado em quatro ou cinco dias. Já a trilha O é uma experiência mais extensa e exigente, que adiciona cerca de quatro dias à W, totalizando uma jornada de sete a nove dias.

No circuito O, o esforço físico é maior: são mais noites em acampamentos, mais peso carregado e mais tempo longe de zonas de conforto. Mas a recompensa vem nos cenários únicos e mais remotos, especialmente a travessia do passo John Gardner, o ponto mais alto da trilha, com cerca de 1.240 metros de altitude. Esse trecho exige bastante preparo, tanto pela inclinação quanto pelas condições climáticas instáveis que frequentemente atingem essa parte do parque, exposta ao clima vindo diretamente dos Andes.

Julieta também alerta para os famosos (e temidos) pontes suspensas, que cruzam cânions profundos. Para quem sofre de vertigem, pode ser um obstáculo sério. E destaca que o circuito grande não apenas “inclui” a W — ele expande o horizonte do visitante para territórios de alta montanha, com paisagens rochosas, neve e vistas impressionantes do glaciar Grey vistas de cima, como se o caminhante estivesse voando com um drone.

A autora do texto durante sua travessia na Patagônia. Foto: Ana Li Rufino.

Desafios da profissão de guia de turismo: Valorização, riscos e precariedade

Ainda dentro do universo dos guias, Julieta destaca uma distinção essencial entre dois tipos de profissionais: os guias de trekking, que atuam em rotas mais exigentes como o circuito W, e os guias de passeios convencionais, que operam fora desses percursos — em trajetos curtos, geralmente de uma hora, que se iniciam em hotéis e mirantes, como o Grey, Las Torres ou o Río Serrano. Essa diferença é determinante para compreender a variação tanto na remuneração quanto na estabilidade no trabalho.

Enquanto os guias de trekking enfrentam mais exigências técnicas e têm que passar, obrigatoriamente, por pelo menos dois anos de experiência como assistente antes de poderem atuar de forma autônoma, os guias que trabalham fora dos circuitos principais não contam com essa regulação. Por isso mesmo, acabam sendo mais afetados por rotatividade e remuneração inferior. Muitos aceitam valores bem abaixo do que seria necessário para manter uma vida digna na região — algo em torno de 45 mil a 50 mil pesos chilenos por dia (R$ 270 a R$ 300) — enquanto os profissionais mais experientes defendem que o mínimo deveria ser entre 95 mil e 100 mil (R$ 570 a R$ 600).

Esse desequilíbrio afeta diretamente a competição no setor. Como explica Julieta, quando novos guias aceitam trabalhar por menos, mesmo os mais capacitados se veem pressionados. Ela mesma estabelece com firmeza o valor da sua diária, considerando não apenas a experiência acumulada, mas também a complexidade do trajeto, o grau de exigência física e o fato de, em muitos casos, precisar organizar toda a logística da expedição: alimentação, porteadores, equipamentos e mais. Quando a atividade exige maior responsabilidade, a tarifa acompanha esse peso.

Apesar das dificuldades enfrentadas pelos que estão começando, Julieta traz uma visão mais positiva sobre a permanência de guias experientes na região. Muitos, como ela, atuam há mais de 10 ou 15 anos em Torres del Paine, e continuam firmes. Para esses, o reconhecimento e o respeito vêm com o tempo — e com ele também a possibilidade de impor melhores condições de trabalho.

Por outro lado, outros setores do parque, como os trabalhadores dos hotéis, campings e refúgios, não desfrutam do mesmo prestígio. Esses profissionais, como ela observa, enfrentam uma rotatividade ainda maior, muitas vezes não completando sequer uma temporada. Isso reforça a ideia de que, dentro do ecossistema do turismo, há uma hierarquia de valorização — e os guias experientes, embora enfrentem seus próprios desafios, estão entre os poucos que conseguem algum grau de estabilidade e respeito, quando conseguem resistir ao tempo.

*Sofia Missiato Barbuio é jornalista formada pela PUC-SP, com passagens pelo Estadão, Terra e Mídia Ninja. Já percorreu o Circuito W na Patagônia chilena e é escaladora. Atuou como colaboradora da revista mexicana La Sílaba e assina roteiros e direções de curtas-metragens. Gosta de contar histórias que cruzam pessoas, territórios e formas de resistência. Acompanhe suas aventuras em @___sofibee.