Não é possível definir o ponto exato em que a cultura da magreza começou, mas é possível visualizar os motivos que a tornou tão forte até os dias de hoje em nossa sociedade. Entre dietas mirabolantes e remédios para emagrecimento, a cultura da magreza ainda é muito forte. Mesmo na era do empoderamento feminino e do amor próprio, o número de pessoas que possuem distúrbio alimentar é alarmante.
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Uma das maiores fontes que ditam o corpo esbelto é a moda, mas quando pensamos em saúde mental e mais especificamente em distúrbios alimentares, esse problema pode acabar atingindo qualquer pessoa, independente do seu estilo de vida e seus interesses.
De acordo com a escritora norte americana Naomi Wolf, em seu livro “O Mito da Beleza”, ela conta que a cultura da magreza é mais um mecanismo desenvolvido para controlar as mulheres e ditar o que elas devem ou não fazer, o que é bonito e o que é aceito ou não, levando essas pessoas a fazerem coisas extremas para atingir a perfeição.
“[…] Os nossos corpos não pertencem a nós, mas à sociedade, que a magreza não é uma questão de estética pessoal e que a fome é uma concessão social exigida pela comunidade. Uma fixação cultural na magreza feminina não é uma obsessão com a beleza feminina mas uma obsessão com a obediência feminina” (WOLF, Naomi).
Mas no mundo dos esportes, apesar de termos uma imagem de boa saúde dos atletas, a pressão pela perfeição é ainda maior e muitas vezes atribuída ao bom desempenho de cada competidor. E é aí que os distúrbios alimentares podem surgir.
O documentário “Light” dirigido pela Carolina Treadway, aborda como a comunidade de escalada foi impactada pelo assunto, que antes era visto como um tabu entre eles. No filme, vários atletas, homens e mulheres, compartilham abertamente sobre como a dedicação ao esporte, unido pela obsessão exagerada por resultados os levaram a ter distúrbios alimentares.
O senso comum entre os atletas durante o documentário é claro: quando perder peso é mais importante do que ficar forte (ou escalar melhor), é porque há um problema.
Estima-se que 156 milhões de pessoas são acometidas pelos distúrbios alimentares, que é um número bem alarmante. Mas, apesar de tantas pessoas sofrerem com esse problema que é consequência de doenças mentais, apenas a anorexia e bulimia são discutidos, ao passo que a vigorexia e ortorexia, por exemplo, são completamente desconhecidos ou até mesmo não vistos como um distúrbio alimentar e/ou de imagem.
O que é distúrbio alimentar?
De acordo com a Psicóloga e especialista em transtornos alimentares e de imagem, Gabriele Menezes da Costa (30), o distúrbio alimentar é uma doença muito complexa e que se ramifica para várias questões de alteração alimentar, “seja para a falta de consumo de alimentos, pelo evitar de alguns ou seja pelo excesso”.
Ela ainda afirma que a alimentação pode impactar a imagem, peso e forma corporal.
“As causas podem ser diversas e nunca trabalhamos com apenas uma hipótese do surgimento do distúrbio. Muitas vezes a causa é a consequência de ambiente social, características biológicas e também construções psicológicas como baixa autoestima, perfeccionismo, depressão ou ansiedade” afirmou.
Distúrbios alimentares e de imagem nos esportes
Em entrevistas a tetracampeã brasileira de surfe, Andrea Lopes, já compartilhou que no início de sua carreira acabou tendo problemas alimentares e que só virou referência na modalidade depois de conseguir superar a doença.
Ela tinha 23 anos e contou em entrevista ao Uol que se pesava toda hora e não comia, e por consequência disso ela acabou tendo alterações no seu organismo, ficando um ano sem menstruar, anêmica e sem libido.
“Quando voltei para o Brasil de novo e falaram perto da minha mãe que acharam que eu estava com Aids, ela reuniu os patrocinadores e falou que eu ia parar de competir. Larguei as competições por um ano e comecei a resgatar o prazer de comer”. Na época, a atleta chegou a pesar 38kg.
No começo do ano a alpinista Hazel Findlay publicou em sua conta do Instagram um desabafo sobre a comunidade da escalada permanecer em silêncio a respeito destes problemas alimentares e como ela se sentia um “besouro ao lado de bichos-pau”.
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“Não falei sobre isso antes porque nunca tive um distúrbio alimentar, mas isso não quer dizer que não tenha sido afetada por esse problema. Por muito tempo eu vi amigos e outros escaladores profissionais lutarem com sua saúde enquanto a comunidade de escalada assistia em silêncio, aparentemente OK sobre isso.
Eu nunca fui motivada a restringir calorias para escalar mais forte, escalar nunca foi isso para mim. Dito isso, me senti muito insegura sobre minha aparência em comparação com outros escaladores e muitas vezes sinto que não me encaixo porque não estou fazendo dieta. Na verdade, me disseram que não pareço um alpinista! Toda a minha vida olhei para outros escaladores e me senti como um grande besouro ao lado de bichos-pau.
Claro que parte disso é por minha conta, preciso trabalhar minha própria autoconfiança. Mas esse processo seria muito mais fácil se a cultura de elite na escalada valorizasse o bem-estar acima do desempenho. Às vezes me sinto desconfortável assistindo filmes de escalada porque muitas vezes o escalador parece doente. Será que vamos olhar para trás, para filmes de escalada e conquistas daqui a 10 anos, e nos perguntar como deixamos isso acontecer?
Acho que uma das razões pelas quais o problema persiste é porque não há ninguém a quem apontar o dedo. Os melhores escaladores que não estão bem são vítimas, mas também alimentam o problema porque são nossos modelos.
Não tenho todas as respostas, mas a primeira coisa que você pode fazer é assistir ao filme de Caroline. É uma pausa necessária no silêncio!”
Em junho de 2017, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que permitia a produção e comercialização (com prescrição médica) de remédios inibidores de apetite. Em 2011 esses medicamentos foram proibidos pela Anvisa, mas essa restrição acabou sendo derrubada pela lei aprovada na câmara e sancionada pela Presidência.
Os medicamentos anorexígenos costumam atuar diretamente no sistema nervoso central, impedindo a compulsão alimentar. Mas o que está por trás de cada comprimido pode acabar sendo uma bomba para o organismo de uma pessoa, principalmente quando usado de forma incorreta.
Diversos filmes e séries relatam como o abuso de remédios para emagrecimento podem gerar uma dependência nas pessoas. O filme “Réquiem para um Sonho” (2000) dirigido por Darren Aronofsky e a nova temporada da novela “Verdades Secretas II” escrita por Walcyr Carrasco e dirigida por Amora Mautner, apresentam de forma clara como o uso desses medicamentos podem afetar não somente o psicológico de alguém, como também a saúde física.
Agitação, depressão, dores de cabeça, esquizofrenia, síndrome do pânico, insônia são apenas alguns dos efeitos colaterais desses remédios.
As dietas para emagrecimento também não ficam atrás quando falamos de saúde alimentar e também mental. Pessoas que possuem distúrbios alimentares, usam a dieta como fonte para atingir o seu objetivo, mas a obsessão por restringir a alimentação ou até mesmo por comer apenas coisas saudáveis, sem a ajuda de um profissional da saúde, pode acabar gerando outros problemas.
“A gente sabe que dietas foram feitas para não funcionar e nem para durar. Fazer com que elas se mantenham, muitas vezes, pode acompanhar um transtorno alimentar, uma contagem de calorias, uma restrição de alimentos, um jejum de horas que pode ser prejudicial”, conta Gabriele.
No mundo dos esportes, muitos atletas sofrem a pressão para serem perfeitos, magros e manter o corpo não apenas “esteticamente bonito” para as competições, mas isso acaba sendo atribuído também ao bom desempenho dos atletas durante as competições. No documentário de Caroline, há relatos de alpinistas que acabaram optando por perder peso para ficarem “mais leves” e conseguirem ter melhor desempenho na escalada.
Mas é claro que ter um corpo magro não é garantia de bom desempenho, da mesma forma que ter um corpo gordo não pode ser visto como incapaz de realizar tarefas e praticar esportes, por exemplo.
A medicina também contribuído para que a cultura da magreza ainda continue sendo propagada, como o índice de massa corporal (IMC), que foi criado em 1832, para definir o que é ou não saudável.
“O IMC é uma medida bastante arcaica e que usada para medir população pode até ser útil, mas para analisar e principalmente catalogar pessoas de maneira individual pode ser algo bem complicado, na minha visão”, conta Gabriele.
“Mesmo com o empoderamento feminino e o amor próprio existindo e sendo cada vez mais falado, a gordofobia continuará existindo pois ela é estrutural. Nossa sociedade é gordofóbica, o mundo é pensado para pessoas magras, e marginalizam pessoas que estejam fora do padrão. Como o IMC é uma medida muito rasa, incluir toda e qualquer pessoa enquadrada nele pode ser mais prejudicial do que ajudar, de fato”.
Em contra partida do que já sabemos sobre o assunto, atualmente ser uma pessoa mais saudável, fazendo exercícios diários e se alimentar bem, tem se tornado cada vez mais comum entre a população. Mas ainda assim, essa obsessão pelo corpo e por consumir coisas sempre saudáveis, pode acabar revertendo em um problema sério de imagem.
Nesses casos, é importante entender até que ponto cuidar do corpo e da saúde tem sido uma prática saudável, não somente para o corpo em si, mas para a mente também. É essencial ficar atento aos “efeitos colaterais” que essa rotina saudável pode resultar. Se há uma preocupação excessiva com calorias, medidas e com o corpo, a psicóloga Gabriele faz um alerta.
“A ortorexia e a vigorexia ainda não são reconhecidos como transtornos, mas têm tido destaque e atenção nos últimos anos e é um debate atual sobre a preocupação com a “limpeza” alimentar e o cuidado excessivo com o corpo, as medidas e as calorias”, aponta.
“Esses conceitos estão relacionados pois um transtorno pode ser acompanhado de uma distorção de imagem e da ausência do prazer por se alimentar, já que se foca apenas nos nutrientes da comida e não no comer consciente”.
Apesar da jornada de autocuidado, saúde mental e saúde física não ser tão simples, ainda há meios para que ela se torne menos árdua e perigosa. As recomendações da especialista Gabriele é que a pessoa procure profissionais que sejam especialistas no tema como psiquiatras, nutricionistas, gastroenterologistas e psicólogos.
“É necessário uma equipe multidisciplinar para olhar para essa pessoa e poder a ver além de seu distúrbio, como uma pessoa que merece atenção, importância, cuidado e reconexão com o que ela é.”