Não é fácil sobreviver a uma quarentena em casal. Daí o espanto das pessoas quando sabem que eu e meu marido, Pat, completamos uma expedição de seis meses, juntos, sem usar nenhum veículo motorizado, de Washington até o mar de Chukchi, no Alasca. Mais do que a distância percorrida ou a maneira que escolhemos desbravá-la, o que mais espanta a todos é como nosso casamento conseguiu sair intacto ao final da jornada.
Durante nossa expedição, eu e Pat viajamos 6500 km caminhando, remando, esquiando. Foram 176 dias em que passamos todo o tempo juntos, com raras exceções como idas rápidas a um correio ou para se abastecer em algum lugar. Isso significa centenas de horas em uma barraca de menos de 3 metros quadrados, sem banheiro e sem privacidade.
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Não foi a primeira vez que encaramos aventuras juntos. Nossas experiências como casal têm sido baseadas em escaladas em rocha e viagens pela natureza. Já cruzamos trilhas, glaciares e até construímos um abrigo de madeira às margens de um fiorde no Alasca. Mesmo assim, todo relacionamento tem seus limites — e nossa expedição pelo Canadá e Alasca foi um belo teste para muitos deles.
Nós remamos sob tempestades de primavera que chegaram a parar a operação de balsas. Topamos com um monte de ursos, incluindo um que queria almoçar a gente. Cruzamos nuvens de mosquitos tão espessas que mal conseguíamos respirar. Ficamos deitados, famintos, dentro de nossa barraca, debaixo de um temporal, pensando se aquela situação nada glamourosa seria nosso fim. No entanto a pergunta mais comum que me perguntam não tem nada a ver com esses perrengues outdoor.
Em vez disso, o que as pessoas querem saber é: Como vocês conseguiram enfrentar uma viagem dessas e continuar casados?
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Nosso desejo de desbravar o mundo não mudou nada, mas as circunstâncias, sim. Agora temos dois filhos pequenos, Huxley, de 5 anos, e Dawson, de 3, e precisamos nos desdobrar para administrar nossos lados aventureiros, profissionais e familiares. Sou pesquisadora em biologia selvagem; Pat projeta e constrói casas. Dividimos nosso tempo entre nossa cabana à beira-mar, onde só se chega de barco, e nossa aconchegante casa no centro de Anchorage, no Alasca.
Em nossa quarentena em casal, os dias variam entre tarefas bem mundanas (como deixar as crianças na escola e depois seguir para o trabalho) e outras pouco ortodoxas (tipo acordar perto do mar, na companhia de baleias).
Há muitas semelhanças entre viajar em casal até o fim do mundo e aguentar o confinamento de uma pandemia juntos em casa.
Eis aqui algumas lições que aprendemos ao longo dos anos para você enfrentar essa quarentena em casal.
Lições para sobreviver a quarentena em casal
Para sobreviver a quarentena em casal: Encare a fera
Em um vale bem isolado no norte do Alasca, fomos perseguidos por um urso predador. Quando eu pisei em uma clareira no mato e ouvi um barulho estranho atrás de mim, virei-me e dei de cara com um urso de pelo cor de canela olhando para mim. Suas intenções sinistras logo ficaram evidentes. Nos 30 minutos seguintes, Pat e eu tivemos de lutar por nossas vidas. O urso ficou nos cercando, ignorando spray de pimenta, gritos e até bastões de caminhada voadores. Enfim conseguimos cortar caminho até um rio, e entendemos pela Primera vez o sentimento de se sentir caçado.
O encontro com o urso foi aterrorizante, porém a pior parte veio depois, quando a adrenalina baixou e tivemos de ficar juntos na barraca. Enquanto eu narrava, em tom de voz alterada, todas as maneiras em que um urso poderia nos exterminar, Pat optou por manter a calma. Ele me lembrou que ataques mortais de ursos são raros, e que, apesar do urso valentão com o qual nunca mais toparíamos de novo, as circunstâncias sempre estiveram a nosso favor.
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Quando nada do que ele falou adiantou muito para me acalmar, Pat insistiu para que confrontássemos diretamente nossos medos. Com os ombros grudados uns nos outros, espiamos o visor da nossa GoPro, que ficara durante todo o episódio presa no peito dele. Depois de ver a cena várias vezes, o nó na minha garganta começou a se dissipar. Nós havíamos feito tudo certo. O medo era real, mas nossa resposta àquela situação, também.
Administrar nossas emoções conjuntamente é algo necessário em qualquer crise, em especial quando um vírus invisível nos espreita e parece querer nos pegar com suas agarras mortais.
A partir de então, Pat e eu passamos a focar no que podemos de fato controlar — como escolher ficar em casa, ajudar nossa comunidade fazendo máscaras, dividir mantimentos com quem precisa e comprar em pequenas lojas locais. E, principalmente, cuidar um do outro. Nós podemos estar sobrecarregados de problemas, mas não estamos totalmente vulneráveis e sem nenhum poder de escolha.
Fique na sua
Quando estamos limitados por metros quadrados, temos de ser criativos para conviver. Quando Pat e eu fazemos trilhas, esquiamos ou remamos por algumas das paisagens mais remotas da Terra, temos espaço de sobra. Mas no momento em que entramos na barraca, vira um mar de meias, cotovelos e saquinhos Ziplock. Por isso aprendemos a tirar e colocar roupas cada um por vez, por exemplo. Em uma barraca pequena, não há como desenhar uma divisória no chão para cada um ter seu lugar. Nossa única opção foi aprender a expandir a noção de espação para além do mundo físico. Manter o silêncio por alguns minutos pode fazer milagres quando a gente se sente sufocado sem espaço.
Certa vez vi Pat traçando rotas imaginárias em nosso mapa, e entendi e respeitei que aquele era seu momento de escapismo. Assim como a hora de eu ficar escrevendo meu diário é um sinal para ele me deixar quieta com minhas coisas. Assim vamos respeitando o espaço de cada um. Para mim, isso significa poder ler sem ser interrompida, mesmo que haja 30 coisas para fazer, mesmo durante uma quarentena em casal.
Para sobreviver a quarentena em casal: Aprenda o poder da parceria
A maior briga que já tivemos em nossa viagem foi sobre o quanto de peso cada um carregava. Em uma certa manhã de agosto, nós acordamos com nossa barraca cercada por um bando de caribous. Nos dias anteriores, eu estava tendo dificuldades em carregar minha bagagem pesada durante nosso trekking por trilhas íngremes. Mesmo assim, sustentei meu orgulho, insistindo que eu conseguia carregar minhas coisas. Por isso minha ira quando peguei Pat tirando uma das sacolas de comida da minha mochila e passando para a dele. “Eu só estava tentando ajudar”, ele disse. “Sua mala está muito pesada.”
Pat é um defensor ferrenho da igualdade de gêneros. Ele é o primeiro a chamar a atenção dos nossos filhos quando, por exemplo, se referem aos trabalhadores de obras sempre no masculino. Sempre vibra com meus sucessos, muitas vezes mais que os dele. Mas Pat também é bom em todas as coisas consideradas bem de “macho”: cortar madeira, carregar mochilas de 50 quilos, ler mapas, subir montanhas.
Só que seu simples ato de delicadeza comigo mexeu com minhas próprias inseguranças. Desde o princípio da expedição, eu fiz de tudo para provar que seria um integrante da equipe tão eficiente quanto a outra metade. Mas, sendo uma mulher de 52 quilos, tenho consciência das minhas limitações físicas.
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No dia da briga, mal falamos pelo resto do dia.
À noitinha, enquanto eu aquecia minhas mãos na fogueira, me dei conta da mancada que cometera. Sim, meu marido podia carregar mais peso do que eu, navegar mapas e erguer cabanas, mas não era nada disso que importava naquela viagem.
Apenas alguns dias antes, eu havia ajudado a salvar Pat de um situação perigosa num rio ártico. Fui responsável por grande parte da pesquisa sobre as rotas que pegaríamos. Fui eu que planejei nossa alimentação e resolvi vários pepinos de logística da viagem. Eu precisava entender que parceria se faz com mais do que apenas duas metades.
Hoje, na pandemia, o peso extra que preciso dividir com Pat vem na forma das lições de casa que nossos filhos precisam fazer ou a ida às compras de máscara. Estamos nos virando para administrar expediente de trabalho e ajudar as crianças com a escola à distância. Nem sempre as tarefas precisam ser divididas igualitariamente. Uma parceria aflora não por causa dos afazeres que dividimos de igual para igual, mas porque sabemos usar nossas forças da melhor maneira e, principalmente, ajudar um ao outro a carregar o peso das coisas.
Esqueça o espelho
Não deveríamos precisar de experiências de quase morte para reconhecer em nós mesmos nossas superficialidades. Mas nada como um urso faminto ou uma avalanche para agilizar esse processo. Quando a privacidade é reduzida à metade da área de uma barraca, não há por que manter orgulhos bestas. Pat já me ajudou a remover uma unha podre do dedão do pé, enquanto eu já cuidei das bolhas que ele fez na bunda de tanto ficar sentado remando.
Em uma entrevista para uma rádio alguns meses depois de termos retornado de viagem, o jornalista perguntou a Pat: “O que você sentia quando olhava de lado e via que sua mulher, digamos, não estava com a melhor das aparências”. Pat ficou tão surpreso com a pergunta que balbuciou umas poucas palavras como resposta. Mas na sua cara de espanto eu pude decifrar todas as suas respostas: o amor é tão, mas tão maior que isso.
Daqui a uns anos, nós não vamos olhar para trás e lembrar da nossa cara cheia de espinhas na época da pandemia. Mas, sim, recordar das histórias sem pressa que contamos para nossos filhos na hora de dormir e de como nosso casamento deixou aflorar tantos lados lindos, apesar de tudo.
Para sobreviver a quarentena em casal: Não precisa esfregar na cara quando você está certo
Antes de conhecer Pat, eu amava uma boa discussão. Somente depois é que eu sentia remorso por ter provado que estava certa, às custas dos sentimentos do outro. Quando começamos a namorar, eu ficava espantada pelo desinteresse de Pat em provar que estava certo sobre algum ponto. Diante de algum erro, ele apenas se desculpava e seguia em frente. Na hora em que estava certo, não tentava mostrar isso e deixava que o curso da ação falasse por si. Foi um costume que eu acabei adotando, em parte porque brigar sozinha não é lado muito divertido.
Na nossa viagem, essa habilidade em dissipar tensões se revelou seu lado mais forte — e, por consequência, o lado mais forte do casal como um todo. Não era por falta de oportunidade: todo dia alguém precisava escolher a melhor rota ou decidir a melhor hora para desistir de um plano porque era perigoso demais.
E nós estávamos nisso juntos, e todo e qualquer sucesso era compartilhado. Assim como os fracassos. Quando cometíamos algum erro de cálculo e precisávamos voltar atrás e perder um dia todo, apenas baixávamos a cabeça e não dizíamos nada.
Agora presos em casa, tendo de lidar com prazos de trabalho e bundas de crianças para limpar, é fácil a paciência se esgotar. Algumas vezes acabamos magoando um ao outro, mas eu costumo me lembrar que aceitar as derrotas com leveza e graça é, na verdade, uma vitória.