Como este brasileiro atravessou o Nepal em 125 dias de trekking

Por Jade Rezende*

Como este brasileiro atravessou o Nepal em 125 dias de trekking
O montanhista próximo ao campo base do Makalu. Foto: Arquivo pessoal

O médico, montanhista, autor e guia Manoel Morgado tornou-se o primeiro latino-americano a completar a Great Himalaya Trail, um trekking centenário que cruza o Nepal de leste a oeste em 1.425 km pela Cordilheira do Himalaia

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Há 34 anos, Manoel Morgado deixava o Brasil e abria mão de ter uma base para chamar de lar. Ele havia se formado em medicina anos antes, mas decidiu se dedicar ao seu maior fascínio: a montanha. O guia e montanhista nunca mais teve uma casa, embora no Nepal ele tenha encontrado algo mais próximo disso. “É o lugar em que eu me sinto mais à vontade no mundo e também onde eu conheço mais gente e fico a maior parte do ano. Além do país ter uma natureza impressionante, os nepaleses são incríveis, um povo apaixonante. Conviver com eles é um prazer”, diz o gaúcho, agora com 67 anos.

Morgado conta à Go Outside sobre esta paixão pelo Nepal – seu “país de adoção”– já no Brasil, onde brinca que começou seu processo de recuperação dos 8 kg perdidos em 4 meses de trekking em terras nepalesas. Neste período de 125 dias, o guia de montanha adicionou mais um título à sua lista de conquistas: em 30 de julho, ele foi o primeiro latino-americano a completar a Great Himalaya Trail (GHT), um trekking centenário que cruza o Nepal de leste a oeste em 1.425 km pela Cordilheira do Himalaia.

O percurso escolhido pelo guia passa pela fronteira do país com o Tibete e parte de uma altitude de 1.800 metros para atingir 6.135 metros, somando mais de 100.000 metros de altimetria. Os números impressionantes justificam a baixa adesão de montanhistas à jornada: apenas 103 pessoas completaram a rota até hoje. Desta centena, só 51 fizeram a rota próxima ao Tibete como Morgado, conhecida como High Route, a mais desafiadora. Destes 51, apenas 27 fizeram o trecho sem pausas, da mesma forma que o brasileiro. 

As estatísticas chamam atenção e se juntam a outros títulos de Morgado: ele foi o oitavo brasileiro a chegar no topo do Everest, em 2010, e o segundo a completar os Sete Cumes, no ano seguinte. Mas as marcas, segundo ele, não têm tanta importância; são apenas consequências. “A medição no montanhismo é uma coisa bacana, é super valorizado escalar uma montanha pela primeira vez ou fazer uma via que ninguém nunca tentou. Mas eu fiquei sabendo dos números [da GHT] só quando eu acabei o trekking, porque o título nunca foi um incentivo. A motivação foi estritamente pessoal”, afirma.

O desejo de completar a jornada tinha relação com um incômodo do médico, que comanda a Morgado Expedições. Há 31 anos ele passa pelo menos três meses por ano no Nepal e percebe que o único interesse dos brasileiros por lá é o Everest. “Eles vão, contam que foi a viagem mais importante da vida deles e nunca mais voltam. Eu já mandei 75 grupos ao Campo Base, mas é quase impossível eu montar e guiar expedições em outras regiões do país”, conta. Além de querer motivar as pessoas a voltarem para o Nepal depois de chegarem na montanha mais alta do mundo, Morgado também tinha o desejo próprio de conhecer outros cantos do país e completar o desafio esportivo de um trekking ininterrupto de 4 meses em alta montanha.  

Atravessando o Nepal

Junto a um sherpa e alguns carregadores, Morgado percorreu a Cordilheira do Himalaia passando por icônicas montanhas como Everest, Makalu, Kanchenjunga e Manaslu. A jornada começou em 31 de março, a caminho do campo base do Kanchenjunga, a terceira montanha mais alta do mundo. É lá o início da GHT, no leste do Nepal, na fronteira com a Índia.

Atravessar o território nepalês de leste a oeste é, segundo o montanhista, se deparar com uma enorme variedade de paisagens e culturas. O médico passou por regiões muito turísticas, como o acampamento base do Everest, e outras remotas, onde não encontrou ninguém por cinco dias ou ficou incomunicável, como no Dolpo. Morgado dormiu em lodges, acomodações precárias e barracas. “Fomos de regiões muito férteis e ricas, como o leste do Nepal, até regiões muito mais secas e pobres, no oeste. E neste caminho cruzamos pelo menos sete etnias, cada uma com suas peculiaridades”, diz o guia. 

Manoel Morgado na Great Himalaya Trail, trekking no Nepal
Morgado junto a um grupo de meninas que caminhavam duas horas para chegar na escola, na região do Manaslu. Foto: Arquivo pessoal

Presenciar a pobreza extrema do Nepal, lado do país que Morgado até então não conhecia de perto, foi um dos grandes abalos emocionais com que ele precisou lidar. “No último mês, passei por vilarejos [no oeste] que eu não pude parar para comer ou dormir porque a higiene era extremamente precária. Isso coincidiu com o trecho mais difícil em questão de altimetria e distâncias. Essa junção foi emocionalmente muito dura”, lembra.

Além disso, tirando os primeiros 40 dias em que esteve com a esposa Vanessa, o médico estava fazendo o trekking apenas com um sherpa e alguns carregadores, pessoas com quem ele não tinha proximidade e não conseguiu ter uma grande troca – muito diferente das expedições em grupo que ele costuma fazer no Nepal. “Eu não gosto de estar sozinho, eu gosto de estar com gente e compartilhar. Lá, eu caminhava até as 14h/15h, entrava na barraca e lá ficava até o outro dia. Não ter a possibilidade de dividir isso com outras pessoas foi difícil”, relembra.

Mudanças climáticas

Entre o Makalu e o Everest, Morgado enfrentou a parte mais técnica do percurso, um passo de seis dias com trechos a mais de 6.000 metros de altitude. O trajeto foi ainda mais complicado por causa do clima deste ano. “Chegamos a caminhar com neve até a metade da coxa. Tivemos que dormir a 6.100 metros, o que é mais alto que o campo base do Everest, sem fazer aclimatação, e eu e Vanessa passamos muito mal. O plano era descer no mesmo dia e dormir no lado mais baixo, mas não foi possível devido à neve”, conta. 

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A temporada do Everest de 2023 foi uma das que mais matou montanhistas na história. Até o início de junho, 12 alpinistas foram declarados mortos e cinco estavam desaparecidos. O número é o quarto mais alto na história da montanha (ficando atrás apenas de 1996, 2014, e 2015, com 15, 16 e 13 mortes, respectivamente). Se as cinco pessoas desaparecidas vierem a ser declaradas mortas, o ano de 2023 será o mais mortal da história do Everest. Yuba Raj Khatiwada, diretor do departamento de turismo do Nepal, afirmou ao jornal britânico The Guardian que a causa principal das mortes são as mudanças climáticas. “As condições desta temporada não foram favoráveis, tiveram muitas variáveis. As mudanças climáticas estão tendo um grande impacto nas montanhas”, disse.

Diário da GHT

Por 4 meses, Morgado registrou o seu dia a dia na Great Himalaya Trail. A ideia era compartilhar todo o histórico do trekking com um grupo de 45 pessoas que contribuíram para um financiamento coletivo que ajudou a viabilizar a viagem. “O que foi proposto para essas pessoas era que 20% do dinheiro arrecadado iria para um projeto social. Também como troca, sempre que eu tinha internet, eles recebiam um boletim contando sobre tudo o que estava acontecendo no trekking”, diz o montanhista. O total arrecadado foi de USD 5.000 e Morgado deve direcionar USD 1.000 para a renovação do sistema de captação de água do vilarejo de um dos sherpas que trabalha com ele.

 

*Matéria originalmente publicada na edição 180 da Go Outside.







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