Caminhar faz bem e está voltando à moda

Por Gloria Liu, da Outside USA

caminhar faz bem
Imagem: Gloria Liu

Até muito recentemente, a ideia de sair para uma caminhada por diversão nem passava pela minha cabeça. Mesmo sabendo que caminhar faz bem, eu preferia qualquer outra forma de exercício que fizesse minha frequência cardíaca bombar e a adrenalina correr pelas veias.

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Meu conceito de curtição eram trilhas radicais de mountain bike ou descidas de esqui em neve fresca. Eu simplesmente não via muito propósito em andar se não fosse preciso. Isso não deixaria meu corpo trincado. Não é emocionante. Eu via o ato de caminhar como algo bom para a digestão ou uma atividade carinhosa para eu fazer com meus pais, que estão envelhecendo. Andar muito fazia meu pé inchar e minha lombar doer. Andar era um tédio. Mas, como muitos de nós nesta pandemia, comecei a fazer muitas coisas contraditórias. Parei de beber. Comecei a assar pão. Plantei flores e as mantive vivas, sei lá como. E comecei a fazer longas caminhadas.

Eu poderia culpar os pães, o jardim, as abstenções e restrições causadas pela covid-19. Mas a semente para meu envolvimento com a caminhada foi plantada bem antes da pandemia. Em julho de 2019, meu noivo, Andrew, foi atropelado por um carro quando pedalava em uma estrada. Ele sobreviveu milagrosamente – passou por dez cirurgias em 17 dias para juntar seus pedaços como um super-herói de titânio. Porém todas as cirurgias não conseguiram corrigir a pior das lesões que ele sofreu: sua medula espinhal havia sido afetada e a perna esquerda ficara paralisada. Depois de três meses no hospital – ou, como gostamos de dizer, de estadia prolongada no spa –, ele voltou para casa em outubro.

Andrew foi um ciclista competitivo por metade de sua vida. Ele participava de provas de velódromo e estrada como um amador de elite, competindo contra campeões nacionais e futuros atletas olímpicos em provas profissionais, enquanto ainda mantinha um trabalho em tempo integral.

Agora, aos 34, ele só esperava voltar a andar. Usando uma órtese rígida que abraça a perna inteira e se apoiando em muletas, Andrew se aventurou pela primeira vez nas ruas de Boulder, no Colorado (EUA), alguns dias depois de voltar para casa. Eu fui atrás dele, minha mão segurando um cinturão que amarramos em volta de sua cintura, para que eu pudesse evitar uma queda caso ele perdesse o equilíbrio. No começo, andar dez minutos no quarteirão o deixava exausto. Mas ele reconstruiu sua força, e nossas caminhadas ficaram mais longas. O cinto, que ele odiava, foi dispensado em novembro. Em fevereiro de 2020, Andrew já conseguia destravar a articulação de joelho da sua órtese e estabilizar a perna sozinho. Quando a covid-19 chegou ao Colorado, na metade de março, estávamos fazendo caminhadas de 90 minutos.

No fim de semana de 14 de março – quando as estações de esqui, cervejarias e outros vestígios de normalidade passaram a fechar ao nosso redor em uma velocidade alarmante –, começamos a perceber algo novo nas caminhadas. De repente, as ruas estavam cheias de pessoas que se encontravam simplesmente… andando. Casais passeavam. Famílias com crianças pequenas saíam em bando pelas calçadas. Nosso vizinho recluso e idoso caminhava com vigor para cima e para baixo na rua.

Comecei a andar sozinha também. Não porque caminhar faz bem, mas porque era a única coisa que eu conseguia fazer. Nas duas primeiras semanas de quarentena, não tinha energia para muito mais que isso. Eu acordava tão cansada que achava que estava com coronavírus. Mas eu não estava doente, estava só triste (a ciência diz que, quando estamos estressados, ficamos menos ativos, e a fadiga mental pode se manifestar como cansaço físico). Chegar ao fim da jornada de trabalho todo dia parecia mais exaustivo que nunca.

Depois de fechar meu laptop à noite, não conseguia pensar em forçar meu corpo. Então, em vez disso, eu cruzava a rua, entrava em uma trilha ali do lado e saía andando nas últimas luzes do dia. Inspirava profundamente o ar úmido, com cheiro de árvores. Olhava as vistas panorâmicas das montanhas no horizonte. Uma noite, depois de uma nevasca de primavera, encarei durante minutos um galho de árvore com folhas envernizadas por gelo fino. Enquanto eu caminhava, passava a dois metros de distância por outras bolhas de pessoas fazendo variações da mesma coisa: caminhando e conversando com fones de ouvido, passeando com o cachorro, andando com um amigo a um braço de distância. Parecia que Andrew e eu estávamos à frente de uma nova tendência. Caminhar estava de volta à rotina das pessoas – e com força total.

Caminhar faz bem para os sentidos

NO SEGUNDO fim de semana de isolamento, veio outra nevasca. Naquela tarde de
domingo, saí para um trekking entre os flocos que caíam. Caminhei com meus fones, ouvindo o episódio final de um podcast (outro hábito que adotei nestes tempos). Conforme a história apresentava suas reviravoltas, eu absorvia o visual de um vale coberto de neve abaixo de mim. Fui escorregando e deslizando de volta ao carro. Sentia o ar frio agulhar minhas coxas por cima da calça legging, aspirava o perfume da terra molhada embaixo da neve. Foi uma enxurrada deliciosa de sentidos. Sentia-me consciente de tudo ao meu redor e, ao mesmo tempo, arrebatada pelas cenas que se revelavam diante dos meus olhos.

Apesar de estar curtindo muito meu novo hábito, eu me sentia em conflito em relação a ele. Quando chegava em casa, vinha-me um pensamento persistente sobre como eu poderia ter usado aquele tempo de forma mais eficiente. Não teria sido melhor ter passado 90 minutos fazendo um treino intervalado no elíptico ou algum “exercício de verdade”? Segundo o Instagram, as outras pessoas estavam ficando em forma durante a quarentena, fazendo barras na porta do quarto e treinos complexos em bolas de equilíbrio. Enquanto isso, eu passeava pela floresta ouvindo podcasts. Eu amava minhas caminhadas com Andrew – era a única atividade outdoor que ainda podíamos compartilhar. Mas, quando eu não estava com ele… bem, eu era uma mulher de 36 anos, com um corpo habilidoso e treinado. Não deveria estar fazendo alguma coisa mais intensa?

O fato de eu me sentir confusa sobre isso também era frustrante. Por que eu não podia simplesmente caminhar pelo prazer que isso me dava? Eu sentia ciúme do meu amigo Mike, que estava meditando todo dia, fazendo posts sobre gratidão no Facebook e caminhando todas as manhãs sem se preocupar com o que eu imaginava ser sua provável perda de condicionamento e os efeitos sobre sua fama de atleta radical (eu estava errada; quando finalmente pedalamos juntos alguns meses depois, percebi que aquelas caminhadas diárias tinham deixado ele superforte). Mike amava fazer mountain bike, escalar, descer corredeiras e era fera no esqui fora de pista. Ainda assim, ele me disse serenamente: “Fiz uma caminhada longa no sábado de manhã. Foi demais!”.

Andrew doma trilha em Sedona (EUA). Imagem: Gloria Liu

Depois de conversar com Mike, ocorreu-me que talvez a caminhada tivesse um problema de branding, ou construção de imagem. Considerada durante tanto tempo uma forma leve e lenta de atividade física para pessoas mais velhas ou para sedentários que querem emagrecer um pouco e ser mais ativos, ela havia perdido seu apelo para os mais jovens e para quem curte formas mais emocionantes e eficientes de queimar calorias e bombar as endorfinas. Talvez tudo isso viesse de um mal entendido primordial dos motivos pelos quais andamos. Uma coisa estava clara para mim: as caminhadas eram uma forma de terapia. Pareciam relaxar meus pensamentos, oferecendo o tipo de clareza que eu geralmente encontrava em longas viagens de carro, e ativar ideias inspiradoras que eu anotava no meu celular na beira da trilha.

Benefícios mentais da caminhada

A HISTÓRIA da caminhada como uma forma de libertar a mente atravessa culturas e séculos. Praticantes de kinhin, a prática zen budista de meditação em movimento, andam de forma lenta, prestando atenção em cada passo e cada respiração. Grandes pensadores como Nietzsche, Kant e Thoreau e até a filósofa Simone de Beauvoir tinham fama de caminhar para pensar. “Não consigo manter minha saúde e meu estado de espírito”, escreveu Thoreau, “a não ser que eu passe ao menos quatro horas por dia passeando pelos bosques, sobre as montanhas e campos, totalmente livre de todos os engajamentos mundanos.”

Caminhar também é inerente a peregrinações religiosas. O ritual do Haj, a jornada
para a Meca que todo muçulmano deve fazer pelo menos uma vez na vida, implica caminhar vários quilômetros por dia. Nos EUA, a peregrinação de Good Friday ao Santuário de Chimayó, no Novo México, reúne cerca de 60 mil pessoas por ano; muitas delas enfrentam o percurso de 45 km em uma só pernada. E, claro, há os caminhantes que atravessam países inteiros pelo desafio, aventura e autoconhecimento que só se pode obter nas mais longas andanças.

Na raiz da questão há o fato inquestionável de que caminhar é uma forma altamente eficiente de lidar com os pensamentos. “Há muitas pesquisas sobre criatividade durante a caminhada”, diz Jennifer Udler, psicóloga em Maryland (EUA) que atende seus pacientes caminhando. “Nossa dopamina, serotonina e todas as substâncias químicas ligadas ao bem-estar são liberadas quando andamos. E isso não afeta apenas nosso humor; afeta também a criatividade e diminui o estresse e o cortisol. Há muita química envolvida”, conta. Um estudo de 2014 feito pela Universidade de Stanford, por exemplo, pediu aos participantes que criassem novos usos para objetos comuns como pneus e botões. Os pesquisadores descobriram que o número de ideias criativas que surgiram aumentou cerca de 60% enquanto os participantes estavam andando (se comparado a quando estavam sentados).

Enquanto é verdade que exercícios de maior intensidade como corrida e bike podem liberar neurotransmissores similares, a caminhada parece mais propensa a trazer insights e até revelações. Uma teoria, explorada em 2017 em um artigo publicado pela revista especializada Brain World, mostra que a natureza complexa do movimento da caminhada ativa várias partes do cérebro ao mesmo tempo. E há também a explicação do senso comum: quando estou correndo em trilha ou pedalando, uma parte do meu cérebro precisa se dedicar a não cair, a ouvir carros ou outras pessoas se aproximando e a fazer força nos momentos mais duros do percurso. A natureza inconsciente da caminhada libera a banda larga da nossa mente.

Quando essa caminhada acontece em áreas verdes como parques ou florestas, recebemos
uma dose dupla de coisas boas. Jennifer chama a atenção para um número cada vez maior de pesquisas que examinam os benefícios mentais de simplesmente estar em contato com a natureza. Um estudo de 2018 descobriu que andar ao ar livre reduz o cortisol mais do que, por exemplo, se exercitar em uma esteira. Por todas essas razões, Jennifer acredita que andar é uma espécie de truque terapêutico. “Tenho que dizer que a caminhada acaba com metade do meu trabalho”, ela ri. “As pessoas começam a naturalmente se sentir bem.” Apesar de as minhas caminhadas durarem no máximo poucas horas, e não dias ou semanas, sinto uma afinidade com os peregrinos e os adeptos das longas travessias. Nossas jornadas variam em escala, mas caminhamos para sermos transformados, para voltarmos para casa diferentes do que saímos.

Caminhar faz bem porque é complexo

A MELHOR razão para andar é o fato de podermos fazer isso. Comecei a me maravilhar com a biomecânica da caminhada bem antes do atropelamento de Andrew, quando estava trabalhando em uma reportagem sobre um mountain biker profissional chamado Paul Basogoitia, que havia sofrido uma lesão na medula espinhal que o deixou paralisado da cintura para baixo. Um ano depois de seu acidente, Paul recuperou o uso de seus quadríceps e posteriores de coxa e conseguiu voltar a pedalar. Mas, como seus glúteos e panturrilhas ainda não funcionavam adequadamente, ele precisava usar uma bengala para se locomover no dia a dia. “Acredite ou não, é bem mais fácil pedalar do que andar”, ele me disse. Eu também sou uma mountain biker e me surpreendi com a ideia de que caminhar, essa atividade plácida que eu exercia sem pensar conscientemente, era de alguma forma mais exigente do que o esporte que eu passava de 10 a 12 horas por semana treinando.

Então veio o atropelamento de Andrew. A primeira vez que vi meu companheiro ficar em pé no hospital, seis semanas após o acidente, foi com a ajuda de um fisioterapeuta que o segurava como uma criança, com os braços em volta de suas costas, até Andrew cair na cama, ofegante com o esforço. Dois meses depois do atropelamento, quando ele começou a dar os primeiros passos na clínica de reabilitação usando órtese e andador, sua perna esquerda se arrastava como um tronco. O esforço de levantá-la e trazê-la à frente a cada passo fazia Andrew grunhir e retorcer o rosto. De repente percebi que eu executava feitos milagrosos inúmeras vezes por dia sem nem me dar conta: indo com sono do meu quarto para o banheiro toda manhã, atravessando o estacionamento do supermercado, descendo a rua para encontrar uma amiga.

Eis o que é preciso para você dar um único passo, segundo a doutora Jessica Rose, diretora do Laboratório de Análise de Movimento no hospital infantil da Universidade de Stanford: quando você dá um passo para frente com uma perna, bem antes de seu pé fazer contato com o chão, seus glúteos, posteriores de coxa e músculos do quadríceps são ativados para estabilizar o quadril e os joelhos. Esses músculos ficam ativos quando seu pé aterrissa e o peso do corpo se transfere para esse membro. Por um momento, essa perna suporta 100% de seu peso; os músculos da panturrilha da perna de apoio são ativados para estabilizar o tornozelo e o joelho, controlando a progressão de seu centro de gravidade por sobre o pé de apoio. Conforme o peso é transferido para o antepé, o calcanhar pode se levantar para que você gere energia para empurrar o chão, começando a chamada fase de balanço da caminhada;

Então você precisa flexionar o quadril e o joelho rapidamente para levantar o pé o
suficiente para que não tropece (a outra perna está agora apoiada no chão, é a nova perna de apoio). Os flexores de quadril e os dorsiflexores do tornozelo são envolvidos no trabalho de balançar sua perna à frente de forma suave. No fim do balanço, o posterior de coxa controla a velocidade da extensão do joelho (os posteriores de coxa de Andrew ainda estão fracos, então sua perna tende a avançar demais nessa parte do movimento; a órtese é o que previne que ele hiperxtenda o joelho). O pé então faz contato com o solo, começando o ciclo de novo.

Não estamos nem entrando na biomecânica da parte superior do corpo, com o balanço do braço oposto, ou na habilidade neurológica e neuromuscular de nos equilibrarmos e na propriocepção, que é a nossa consciência do corpo no espaço que permite que coloquemos o pé no chão sem ter que olhar para ele (Andrew não pode ainda sentir o pé e depende em parte da visão para apoiá-lo, então quando nós caminhamos juntos é minha função chamar a atenção dele para o terreno). Nós geralmente tomamos como certa essa sequência extraordinária de movimentos. Mas, qualquer pessoa que já teve uma lesão leve, como um tornozelo torcido ou algo mais sério, como um rompimento do ligamento cruzado anterior, se torna agudamente consciente do que perde quando um elo dessa cadeia se rompe.

No último Natal, Andrew e eu fomos para Sedona, no Arizona (EUA). Entre as trilhas indicadas para iniciantes, escolhi as que tinham as palavras “para crianças”, “plana” e “suave” nas descrições. Mesmo essas trilhas traziam obstáculos que pareciam imensos para nossa situação atual. Vendo Andrew usar as muletas para se içar por pedras da altura de um degrau e cambalear precariamente sobre pequenos riachos, eu me tornei extremamente consciente de todos os movimentos de flexão, tensão e equilíbrio que acontecem em meu próprio corpo ao me mover por um terreno irregular.

Forçamos tanto os limites de Andrew naquela viagem que os rebites de sua órtese se
soltaram e tivemos que fazer duas visitas a um especialista para consertá-la. Mas nos divertimos e tivemos férias memoráveis, nos embasbacando com catedrais de pedra vermelha se erguendo contra o céu azul e com as plantas verdes brilhantes que se alinhavam na lateral da trilha. Muitas vezes pensei sombriamente na cadeira de rodas que Andrew usou ao sair da clínica de reabilitação. Ela podia ser utilizada somente em caminhos lisos, asfaltados. Nenhuma das trilhas que fizemos ou nenhuma das paisagens espetaculares que vimos seriam acessíveis naquela cadeira. Só conseguimos chegar ali porque pudemos andar.

Levou cerca de um mês de lockdown no Colorado para que eu saísse de minha prostração
e começasse a sentir vontade de pedalar de novo, procurando trilhas e subidas duras, reconstruindo meus músculos e pulmões depois de um longo inverno. Minhas caminhadas solo se tornaram mais curtas e esporádicas. Mas eu ainda caminho com Andrew. Nos fins de semana pedalo por algumas horas e então me junto a ele para perambular por estradinhas de terra suaves e sombreadas. Quando estamos caminhando, nossos telefones ficam no bolso e nos concentramos um no outro. É quando temos tempo para conversar sem interrupções, algo tão raro durante os dias de semana, e os assuntos que abordamos são mais profundos: meus temores no trabalho, os sonhos dele para o futuro, nossos conflitos com quem amamos e como resolvê-los.

Uma tarde, depois de mais uma nevasca fora de época que deixou Boulder toda branca, saí para uma corrida em trilhas próximas que estavam começando a secar. Depois de alguns quilômetros, minha corrida desacelerou até virar uma caminhada. Sem o som da minha própria respiração ofegante em meus ouvidos, o mundo ao meu redor se tornou audível. Pássaros cantavam, água gotejava – percebi, com prazer, que estava ouvindo a neve derreter. Meu olhar, não mais fixado no chão, abraçou as árvores gigantescas nos dois lados da trilha, crescendo em linhas perfeitamente paralelas. Depois de um dia em frente do computador, elas pareciam dolorosamente reais. Senti que me tornava real de novo, também habitando de novo meu corpo.

Entendi que caminhar nunca poderia satisfazer minha compulsão por exercício, porque caminhar não é apenas exercício para mim, da mesma forma que flutuar sobre um rock garden com minha mountain bike não é exercício ou dançar de um lado para o outro em uma nuvem de neve powder também não é. Claro, há pessoas que transformam esses esportes em treino – pedalando “socando” por estradas de terra ou subindo montanhas nevadas sem nem parar para olhar ao redor. Eu poderia colocar livros pesados em minha mochila e subir trilhas íngremes para fazer um treino aeróbico dos bons. Mas por que transformar o abençoado ato de se mover em um trabalho tão duro? “Andar não é esporte”, escreve Frédéric Gros em Caminhar, uma Filosofia. “Esporte é algo que envolve técnicas e regras, pontos e competição… colocar um pé na frente do outro é uma brincadeira de criança.”

Como sociedade, tratamos a a a atividade física como um antídoto para nossas vidas sedentárias, nas quais sentamos, navegamos, estressamos. Dosamos o exercício como se fosse remédio: aplicar uma vez por dia. Mas e se caminhar fosse simplesmente uma forma de passar mais tempo de nossas vidas em movimento – mesmo se precisarmos manter outras formas de exercício mais ativos? Nos últimos meses, fiz meus telefonemas para amigos distantes enquanto caminhava, fui andar para descansar entre um esticão e outro de trabalho ou para me preparar para conversas difíceis. Eu não estava apenas me exercitando. A vida estava acontecendo.

Há a ideia de que, conforme as restrições diminuírem, devemos considerar as lições que aprendemos na quarentena e levá-las conosco. Se caminhar é algo que eu só pude curtir quando fui forçada a desacelerar, e se desacelerar é algo que a maioria de nós aprende apenas quando fica mais velho, então eu acolho essa sabedoria adiantada. Não quero continuar correndo pelo que resta de minha juventude. Quero perceber as coisas que nunca vi quando estava com pressa. Quero ter tempo para pensar em que caminho estou seguindo.

Quando eu estava ao telefone com a doutora Jessica, contei a ela que eu gostaria de
dizer neste texto que caminhar é algo inato ao ser humano. Havia alguma evidência biomecânica disso? “É verdade”, ela me respondeu sem hesitar. E me explicou que a habilidade de andar sobre duas pernas permitiu aos primeiros humanos ter suas mãos livres. Isso, por sua vez, nos possibilitou usar e desenvolver ferramentas, o que não só alavancou o desenvolvimento do cérebro como provavelmente contribuiu para a evolução das nossas mãos hábeis e de nossa capacidade de usar a linguagem. Segundo ela, “ser bípede está na raiz do que significa ser humano”.

Naquele dia, saí da trilha, amassando a crosta crocante da neve, sentindo a parte de
cima dos meus tênis se molhar e os músculos do corpo tensionarem e relaxarem, os nervos disparando em milhares de lugares inconscientes. Passei entre as árvores ágil e livre. Era bom me mover dessa forma tão natural. O corpo ganhou um pouco de exercício. A alma ganhou muito mais.







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