Chegamos a tempo de jantar ao ar livre e ver o por do sol, que é espetacular. Os raios penetram através das montanhas dando uma tonalidade dourada ao capim baixo salpicado de lírios azuis que cresce nas ladeiras à nossa frente. Estamos ao lado de La Mongie, famosa estação de esqui dos Pirineus e último núcleo urbano antes das últimas curvas e pequenas retas íngremes que percorrem os três quilômetros finais até ao Col du Tourmalet.

Nossa van está estacionada numa estradinha de cascalho que fica na saída da estação e dá acesso a duas das várias linhas de teleférico que vão às pistas de esqui durante o inverno. Estamos aqui – eu, meu marido Juan e nossos dois filhos, Leo e Filipa, de sete e três anos – porque amanhã a sétima e penúltima etapa do Tour de France Femmes 2023 termina nesta subida mítica (uma etapa de 90 quilômetros que começa em Lannemezan e atravessa, além do Col du Tourmalet, o Col d’Aspin). Se olho para as montanhas que me rodeiam pela esquerda e em direção ao Pic du Midi estou aparentemente sozinha, mas sei que o grande estacionamento da estação está repleto de outras vans, motorhomes e carros de gente que, como nós, está aqui especialmente para vê-las.

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O sábado amanhece cristalino. De longe, do lugar onde passamos a noite, percebo que já desde as primeiras horas do dia, assim como acontecia nas etapas de montanha do Tour de France masculino, que eu tinha acompanhado anos atrás, há um vai e vem constante de ciclistas na estrada. Esta é apenas a segunda edição da versão feminina da prova com formato em etapas parecido com o da competição dos homens (até o ano passado, e apenas desde 2014, a empresa do Tour de France organizou para as mulheres a La Course by Le Tour de France, de um dia), e embora ainda faltem várias horas para a passagem das competidoras por aqui, a quantidade de espectadores impressiona.

Assim como acontece nas etapas do Tour que incluem em seu percurso esta montanha, a linha de teleférico que leva ao topo está em funcionamento para pedestres. Lá de cima, daquela fileira de assentos suspensa no ar, o entorno atrai o olhar como um imã mas sem razão aparente minha mirada aterrissa e encontra várias pequenas tocas e de repente uma marmota correndo para se refugiar dentro de uma delas.

Estamos no alto do Col du Tourmalet, onde o restaurante de mesmo nome está abarrotado: há bicicletas estacionadas ao longo do muro, música alta e clima de festa. Grades com o logotipo do Tour des Femmes e a estrutura do pódio desta etapa escondem a famosa estátua do Gigante do Tourmalet. Agora, a festa abarca um espectro de corpos muito mais variado que o daquele gigante musculoso. E isso é o que mais chama minha atenção. Aqui, no topo desta montanha, uma das mais icônicas da história do ciclismo e mais conhecidas por sua dificuldade, não prevalecem aqueles tipos sisudos, esbeltos e definidos, exibindo conjuntos de lycra, que eu tinha visto quando pedalava pelos Alpes algumas etapas antes da competição masculina que acompanhei em anos anteriores. As verdadeiras gigantes do Tourmalet de hoje ainda estavam por vir.

Durante a descida até La Mongie, que fizemos caminhando pela estrada, vi nas bicicletas a mesma variedade que tinha visto nos corpos, roupas, sexos e idades do público que assistia. Eu, que sempre tinha sido relutante quanto às versões elétricas, estava deslumbrada. Vi nelas, hoje em particular, uma maravilhosa ferramenta de união. Tinha senhores enxutos de road bike com a esposa de e-bike acompanhando ao lado. Mãe empurrando filho. Garota gordinha com namorado magricela. Um monte de grupetos de mulheres com pinta de pedalarem muito, animando umas às outras (um deles formado por várias amigas espanholas que me contaram que estavam viajando juntas e pedalando pelas montanhas da região). Três mulheres cicloviajantes com equipamento superleve e de ponta, e um com alforjes enormes e uma bicicleta clássica que parecia ter saído de alguma foto do clube Rough Stuff Fellowship. E até um monociclo. O ambiente ciclístico é o mais eclético e democrático que já vi. É uma celebração em que cabemos todos, que acolhe e que respeita as diferenças.

Paramos para um lanche e para animar o enorme pelotão de anônimos que continuava subindo. O Juan, que vê a vida com olhos mais estatísticos que eu, propõe um jogo. Ele e o Leo contam os ciclistas homens que passam, eu e a Filipa as mulheres. O time que chega primeiro a dez ganha um ponto. E não é que a disputa foi acirrada?! Celebrei como uma vitória. O Leo não entendia porque um empate para mim era uma vitória. Expliquei para ele e também celebrei a pergunta.

Há pequenos grupos de gente falando idiomas diferentes (hoje meus sentidos parecem estar especialmente atentos à diversidade) e pintando o nome de algumas das ciclistas que em breve passariam por ali em letras garrafais. DEMI. KASIA. VOSS. ANNEMIEK. Entre os que caminham, como nós, caps com o slogan “Watch des Femmes” marcam tendência.

No começo da tarde, o vento aperta trazendo nuvens que primeiro se instalam nas montanhas mais altas. A neblina continua entrando, fica espessa e nos envolve rapidamente. Quando a caravana publicitária que antecede a prova desfila, uma hora e meia mais ou menos antes do horário previsto para a passagem das ciclistas, estamos com nossos anoraks, enrolados na manta de piquenique e não enxergamos mais de dois metros à nossa frente. A temperatura despenca, passamos dos quase 30oC daquela manhã para cerca de 10oC.

A paisagem começa a fazer justiça à fama daquela escalada épica, aquela que teria rendido a primeira grande sentença que ficaria para a história do Tour de France. “Assassinos, vocês são uns assassinos”, teria dito Octave Lapize aos organizadores da competição depois de ganhar, em 1910, a primeira etapa que cruzou o Tourmalet.

O clima agora é de tensão e expectativa. Celulares em mãos para acompanhar os movimentos decisivos na subida do Col d’Aspin. Passam carros da organização, da polícia, de algumas equipes. Faz tempo que não se escuta o barulho dos helicópteros, que não poderão sobrevoar este final no colosso pirenaico. Ataca Demi Vollering a cinco quilômetros da chegada! Estamos a três. Lá vem ela! Demi aparece como uma titã entre a neblina, passa do nosso lado com sua inteireza, sua força e, sim, também com sua beleza. Desaparece em poucos segundos, envolvida pela névoa, para ganhar, poucos minutos depois, a etapa mais dura deste Tour de France Femmes e no dia seguinte, confirmar sua vitória na categoria geral da competição. Na sequência Annemiek van Vleuten, sofrendo, seguida a poucos metros por Lotte Kopecky. E assim, meio enfeitiçada pela beleza de tudo que estava vivendo, vi passarem as outras quase 130 ciclistas que terminaram a etapa, primeiro em pequenos grupos e depois em pelotões maiores. Elas que são, para mim, pelo menos no dia de hoje, as verdadeiras gigantes do Tourmalet. Que são a razão de ser de tudo que vi e vivi naquela manhã.

Mais tarde entendi o magnetismo daquela marmota que atraiu meu olhar. Ela queria me contar algo. Era o presságio do início de um novo ciclo. Uma nova era para o esporte feminino ao ar livre. Naquele dia, me senti pequena, mas parte de algo grande. Cheia de inspiração, de energia, de plenitude e de esperança.  

Camila Junqueira é tradutora, colaboradora de longa data da Go Outside, e passa a maior parte do seu tempo livre explorando montanhas e aldeias da Espanha, onde mora, a bordo de uma van.







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