ALGUNS ANOS ATRÁS, passei uma semana pedalando nos Alpes franceses e italianos com um grupo de turismo de luxo cujo argumento de venda era a dose de estímulo elétrico cerebral pré e pós-passeio.
Os protocolos foram baseados no que a equipe de ciclismo Bahrain Merida estava tentando na época, ou seja, forçar neurônios para melhorar o desempenho e a recuperação. Eu queria saber se a tecnologia funcionava, mas também estava lutando com uma questão mais nebulosa: terminar o percurso de cada dia alguns minutos mais cedo realmente tornaria minha viagem melhor?
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Se eu fosse um dos pilotos do Bahrain Merida no Tour de France daquele verão, a resposta seria óbvia. Vencer corridas é muito mais divertido do que o oposto. Mas qualquer vantagem competitiva dura pouco.
“Uma vez que uma tecnologia eficiente é adotada em um esporte, ela se torna tirânica”, disse-me Thomas Murray, um filósofo que estuda a ética do esporte, após a viagem. “Você precisa usá-la.” Qual seria, então, o objetivo da estimulação elétrica do cérebro se todos os outros também a tivessem? Você estaria exatamente onde começou – até que o próximo impulsionador de desempenho surgisse e o ciclo recomeçasse.
Isso, em poucas palavras, é o efeito Rainha Vermelha. A ideia teve origem na biologia evolutiva, em um artigo científico de 1973 de Leigh Van Valen sobre competição entre espécies, e seu nome vem de uma cena de Através do Espelho, de Lewis Carroll: “Agora, aqui, veja só, você pode tentar correr o quanto quiser, mas ficará sempre no mesmo lugar”, diz a Rainha Vermelha para Alice.
Se os coelhos ficam mais velozes, as raposas seguem o exemplo; se algumas sequoias crescem até os cem metros de altura, todas as outras também têm de crescer. E, de acordo com um artigo do antropólogo Thomas Hyland Eriksen, publicado no ano passado na revista Frontiers in Sports and Active Living, essa é a lógica que cada vez mais descreve nossa relação com o desempenho.
Thomas H. E. é norueguês, então ele começa com esqui cross-country: a mudança dos esquis de madeira para os de fibra de vidro, as melhorias constantes na tecnologia da cera, o salto quântico quando Bill Koch popularizou a técnica de skate-ski nos anos 1980, e assim por diante.
A esteira corre num nível social também: as equipes tentam gastar mais do que seus rivais da liga, perseguindo um conjunto finito de talentos; os esportes ficam mais rápidos e barulhentos à medida que competem por nossa atenção; nações esbanjam a mais recente tecnologia aplicada em seus atletas olímpicos em busca de uma vantagem que nunca dura. Por exemplo, a rampa de saltos de esqui de Vikersund, na Noruega de Thomas, foi repetidamente atualizada ao longo das décadas para manter o direito de se gabar
sobre sua principal rival, Planica, na Eslovênia.
Os dois países continuam gastando mais recursos na construção de rampas maiores para produzir saltos mais longos, mesmo que isso não resulte necessariamente numa melhor competição – e, observa o norueguês, “mesmo que isso signifique que o estado esloveno possa ter que abrir mão de alguns serviços para seus idosos ou estudantes”.
“Se os coelhos ficam mais velozes, as raposas seguem o exemplo; se algumas sequoias crescem até os 100 metros de altura, todas as outras também têm de crescer.”
Você pode dizer que Thomas H. E. é um pouco cético sobre a lógica olímpica de “mais rápido, mais alto, mais forte”. Eu também sou – para minha surpresa. Comecei a escrever sobre ciência do esporte há mais de 15 anos, procurando avidamente por novas tecnologias, métodos de treinamento, suplementos e equipamentos para me tornar mais rápido.
Com o passar dos anos, fui perdendo o entusiasmo a cada suposto novo avanço – afinal, novas ondas geralmente surgem antes da realidade –, mas permaneci fundamentalmente comprometido com a meta importantíssima de autoaperfeiçoamento incremental. No entanto algo mudou nos últimos anos. Acho que foram os calçados.
Acompanhar a maratona e o atletismo ultimamente tem sido uma experiência bizarra, e não estou falando da pandemia. Para homens e mulheres, nove das dez maratonas mais rápidas da história foram realizadas desde a introdução do Nike Vaporfly em 2016 – o primeiro de uma nova geração de tênis com placas de fibra de carbono incorporadas, que demonstraram reduzir a energia necessária para manter um determinado ritmo. Na pista, os calçados também melhoraram e os tempos caíram. Dez garotos do ensino médio correram a milha sub-quatro entre 1964 e 2017; cinco fizeram isso só este ano. É emocionante ver tantos recordes caírem – até que não seja mais. “É como uma enorme taça de sorvete”, disse Geoff Burns, pesquisador de biomecânica da Universidade de Michigan, a um jornalista irlandês.
“Agora é uma delícia, mas aposto que vai nos fazer sentir bem mal no futuro.” O que mais me surpreendeu, no entanto, foi o quão popular o Vaporfly e seus concorrentes se tornaram entre os corredores recreacionais. Os calçados de sola grossa foram difundidos em grandes corridas de estrada – e não apenas no pelotão da frente.
Assim como a estimulação cerebral para ciclistas, gastar US$ 250 na esperança de diminuir alguns minutos do seu tempo de maratona pode fazer sentido para aspirantes a profissionais, mas parece menos atraente para o resto de nós – a menos que você esteja se comparando a referências externas. Se você está buscando uma qualificação para a Maratona de Boston, dois minutos podem fazer a diferença entre agonia e êxtase. Mas se todos estão buscando a mesma vantagem, o efeito Rainha Vermelha entra em ação. Os tempos de qualificação de Boston ficaram cinco minutos mais rápidos em 2020.
Assistir a tudo isso no mínimo me forçou a refletir sobre o que estou tentando obter de meu treinamento e corrida. Eu nunca comprei um par de tênis embutidos com carbono, mas recebi um par de Vaporfly em 2017. Eles ficaram mofando no meu armário por alguns anos, porque, como um velho corredor solitário, imaginei que a melhor forma de competição era contra o meu eu anterior. Usar uma ajuda externa para ficar mais rápido não parecia diferente do que usar um atalho na pista. Então notei que todos os meus parceiros de treino estavam usando modelos de última geração, mesmo para os treinos. Percebi também que, apesar dos meus esforços para evitar os efeitos do tempo, eu estava ficando mais lento. Agora eu tiro esse par carbonado de calçados do armário sempre que corro.
Existe alguma fuga da Rainha Vermelha? “Bem, a resposta mais rápida é não, acho que não”, o Thomas H. E. me disse quando enviei um e-mail para pedir seu conselho. “O desejo de se destacar e o impulso competitivo que alimenta as atividades esportivas no fim sempre prevalecerão, com algumas exceções notáveis.” Assim como as sequoias não podem concordar em parar de crescer quando atingem 30 metros, os candidatos às eliminatórias da Maratona de Boston provavelmente não chegarão a um acordo global para se abster das tecnologias avançadas dos calçados.
Se os coelhos ficam mais velozes, as raposas seguem o exemplo; Thomas H. E. consegue enxergar a importância de os criadores de regras esportivas definirem os parâmetros da inovação. Mas ele não acredita que eles consigam desligar a esteira, e provavelmente não gostaríamos que fizessem isso. O que eles podem fazer é evitar que ela corra muito rápido. Pense na Nascar em vez da Fórmula 1 – ou considere o exemplo da vela olímpica, na qual os competidores da classe Laser recebem barcos idênticos quando chegam à regata.
Para a maioria de nós, a batalha com a Rainha Vermelha é pessoal. Em algumas pistas, correr 2% mais rápido dará uma sensação real de realização, uma sensação de que você é melhor do que era antes. Em outras, você se sentirá no mesmo lugar em que começou, mesmo que os números do relógio tenham mudado.
A linha divisória provavelmente é diferente para todos, mas aqui está minha sugestão: se vem em uma garrafa, requer baterias ou é protegido por um portfólio de patentes, trate-o com cautela – e se você se abster, prepare-se para um poderoso FOMO (Fear of Missing Out) [ou Ansiedade de Ficar de Fora, em tradução literal]. “Ao contrário das árvores que buscam a luz do sol”, conclui Thomas H. E., “nós, humanos, temos uma escolha, e aqui reside nosso privilégio e nossa condenação.”
Matéria originalmente publicada na revista Go Outside edição 176