Por muito tempo, o ácido lático foi considerado o vilão do exercício físico e o causador daquela clássica queimação nos músculos, mas novas pesquisas mostram que ele não atrapalha a função muscular — e pode até fazer bem.
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Como todo grande vilão, o ácido lático foi mal compreendido. Há mais de dois séculos, ele vem sendo acusado de causar a dor que sentimos durante exercícios intensos. “Nada pior do que a queimação do ácido lático”, dizemos, aquela sensação que paralisa os músculos quando eles estão no limite. Mais recentemente, alguns tentaram reabilitar sua imagem, dizendo que, na verdade, ele tenta fornecer energia aos músculos — e não travá-los. Mas nem essa versão capta toda a complexidade da história.
É nesse cenário que entra uma nova revisão publicada no European Journal of Applied Physiology, assinada pelos fisiologistas veteranos Simeon Cairns e Michael Lindinger. O estudo tem 35 páginas e o título é direto: “Lactic Acidosis: Implications for Human Exercise Performance” [“Acidose Lática: Implicações para o Desempenho Físico Humano”]. A principal conclusão? Ainda há muito debate e pesquisa sobre as causas exatas da fadiga muscular durante exercícios intensos. Mas o recente interesse no uso de bicarbonato de sódio como agente tamponante reacendeu a discussão sobre como o ácido lático atua no corpo — e como podemos lidar com ele. Abaixo, os destaques mais recentes.
A história do ácido lático
O primeiro cientista a associar exercício físico ao ácido lático foi Jöns Jacob Berzelius, químico sueco que criou a notação química moderna (como H₂O). Por volta de 1807, ele notou que os músculos de cervos mortos — especialmente os que haviam sido caçados até a exaustão — continham altos níveis de ácido lático, uma substância recém-descoberta no leite azedo. Já os cervos abatidos em matadouros, com os membros imobilizados por talas antes da morte, apresentavam níveis mais baixos da substância. A conclusão: o esforço físico gerava ácido lático.
Um século depois, fisiologistas da Universidade de Cambridge fizeram pernas de sapos se contraírem até a exaustão por meio de estímulos elétricos. Resultado: níveis elevados de ácido lático nos músculos. Quando o experimento era feito sem oxigênio, os níveis aumentavam ainda mais; quando adicionavam oxigênio, caíam. A partir disso, consolidou-se a visão dominante do século XX: os músculos precisam de oxigênio para gerar energia de forma aeróbica; quando falta oxigênio, recorrem à produção anaeróbica, que gera ácido lático como subproduto tóxico — e esse subproduto seria o responsável por paralisar os músculos.
Só que essa narrativa tem dois pequenos erros — e um bem grande. O primeiro: embora o ácido lático possa ser medido nos músculos de animais mortos, ele não existe da mesma forma no corpo humano vivo. No ambiente químico do nosso organismo, o ácido lático se dissocia em dois componentes: lactato e íons de hidrogênio. E isso não é apenas um preciosismo de linguagem — essas duas moléculas se comportam de forma diferente do ácido lático como um todo, e às vezes até com efeitos opostos.
O segundo erro é achar que lactato e íons de hidrogênio aparecem porque os músculos “ficaram sem oxigênio”. Na verdade, o processo aeróbico — que usa oxigênio para transformar alimentos em energia — é eficiente, mas lento. Ótimo para exercícios longos e moderados. Já para um sprint máximo, o corpo precisa recorrer à via anaeróbica, que gera lactato, mesmo que você esteja respirando oxigênio puro de um cilindro.
O erro mais grave, porém, é pensar que o ácido lático é um vilão metabólico. Hoje se sabe que o lactato pode ser reaproveitado como combustível. Inclusive, um dos superpoderes de atletas bem treinados é justamente reutilizar o lactato com mais rapidez. Essa mudança na percepção vem acontecendo há pelo menos duas décadas (embora ainda leve tempo para se consolidar). Mas uma dúvida persiste entre atletas: se não é o lactato que causa a fadiga muscular, então o que é?
O que a nova revisão mostra
A primeira coisa que Cairns e Lindinger deixam claro é que, sim, os níveis de lactato e íons de hidrogênio aumentam durante exercícios intensos. Isso é especialmente evidente em treinos de alta intensidade com duração entre um e vinte minutos. Esforços mais longos são, geralmente, menos intensos e, por isso, usam mais energia aeróbica. Já atividades com menos de um minuto mal produzem lactato.
Hoje é consenso que o lactato, por si só, não interfere na função muscular de forma significativa. O problema é que lactato e íons de hidrogênio são produzidos exatamente na mesma proporção durante o exercício anaeróbico, o que complica a narrativa de que “o ácido lático é do bem”. O lactato pode até ser benéfico, mas os íons de hidrogênio… nem tanto.
Quando aumenta a concentração de íons de hidrogênio numa solução, o que aumenta é a acidez — exatamente o que a escala de pH mede. Durante um exercício intenso, o pH nas fibras musculares de contração rápida (as mais sensíveis ao acúmulo desses íons) pode cair de 7,0 para 6,0. Parece pouco, mas representa um aumento de dez vezes na acidez — o suficiente para atrapalhar seriamente a contração muscular.
Mas a hipótese de que os íons de hidrogênio causam a fadiga muscular também tem falhas. Nos primeiros 15 segundos de um exercício intenso, por exemplo, esses íons diminuem enquanto o corpo usa uma fonte rápida de energia chamada fosfocreatina. Ainda assim, já nesse início, os músculos começam a perder força — mesmo com níveis baixos de acidez.
Outro detalhe curioso: quando você para o exercício ou descansa entre repetições, os níveis de lactato e íons de hidrogênio continuam subindo por alguns minutos. Por isso, o pico de lactato geralmente aparece depois do esforço. Mas, nesse momento, você está se recuperando — ficando mais forte, não mais fraco. Isso sugere que os íons de hidrogênio podem até contribuir para a fadiga muscular, mas não são os únicos culpados.
Uma possibilidade é que eles interfiram com outras moléculas envolvidas na contração muscular. Entre os principais suspeitos estão o potássio e o fosfato, que também aumentam durante o exercício e já foram associados à fadiga em alguns estudos. O problema é que os resultados são contraditórios — os efeitos mudam conforme o nível de acidez, a temperatura do músculo e o protocolo de teste. Isso indica, como era de se esperar, que não há um único vilão. O que atrapalha o desempenho é o “coquetel” de substâncias acumuladas nos músculos durante o exercício intenso.
E a sensação de queimação?
Grande parte da pesquisa descrita por Cairns e Lindinger se concentra nas propriedades do músculo: com que velocidade ele perde força? Por quê? Como corredor de média distância, já me vi cambaleando nos metros finais de uma prova com a sensação de que minhas pernas simplesmente pararam de funcionar. É uma sensação horrível na hora, mas reconfortante depois — sinal de que você deu tudo.
Mais comum, porém, é atingir um limite mais sutil: uma queimação intensa e dormência crescente nas pernas, que fazem você aliviar o ritmo. Essa sensação, que muitos chamavam de “ir ao limite do ácido lático”, é relevante por si só. Em entrevistas com atletas que começaram a usar bicarbonato de sódio, é comum ouvir que conseguem manter o esforço por mais tempo antes de sentir essa queimação — e isso ajuda a melhorar o desempenho.
Uma teoria sobre essa sensação é que o cérebro está sendo privado de oxigênio. Se o esforço for grande o suficiente, não é só o músculo que fica ácido — o sangue todo também. E, por causa de um fenômeno chamado “efeito Bohr”, o aumento da acidez dificulta que os glóbulos vermelhos entreguem oxigênio aos tecidos, incluindo o cérebro. Em um estudo, remadores em esforço máximo tiveram uma queda na saturação de oxigênio de 97,5% para 89,0% — uma diferença considerável, capaz de desacelerar o ritmo e até causar aquela sensação de despersonalização no fim das provas.
Além disso, temos sensores nos nervos que informam o cérebro sobre o estado metabólico dos músculos. Os chamados aferentes do grupo III/IV monitoram os níveis de lactato, íons de hidrogênio e outras substâncias em tempo real. Quando esses nervos são bloqueados com injeções de fentanil na espinha, o exercício “parece” fácil demais. O resultado? O atleta perde a noção de ritmo, força demais no começo e acaba quebrando.
Um dos achados mais reveladores sobre a queimação nos músculos veio de um estudo de 2013. Nele, cientistas injetaram diversas substâncias nos polegares de voluntários, tentando reproduzir aquela sensação familiar. Lactato sozinho? Nada. Íons de hidrogênio? Também não. ATP (molécula de energia)? Nada. Nem em pares funcionava. Mas, quando injetaram os três juntos, nos níveis que ocorrem durante um exercício moderado, os voluntários sentiram fadiga nos polegares — mesmo sem mover os dedos. E com doses mais altas, a fadiga virou dor.
É essa distinção que tento manter em mente nas fases mais difíceis dos treinos e no final das provas. A queimação nos músculos é real, e está ligada ao lactato, à acidez e aos níveis de energia muscular. Mas é só uma sensação. O lactato e o ATP estão ali para me ajudar. Já os íons de hidrogênio — junto com outras substâncias acumuladas — vão acabar me parando. Mas até lá, dá pra continuar forçando.