TRAIL RUNNERS PROFISSIONAIS CRIAM A VIA VALAIS, UMA NOVA ROTA FANTÁSTICA ENTRE REFÚGIOS DE MONTANHA SUÍÇOS. QUEM CONSEGUIR PERCORRER OS EXIGENTES 240 KM, COM QUASE 13.000 METROS DE GANHO DE ELEVAÇÃO, DISTRIBUÍDOS EM NOVE ETAPAS, TERÁ REALIZADO UMA DAS AVENTURAS MAIS ESPETACULARES DA VIDA
HÁ ALGUNS ANOS, cruzei uma fronteira invisível e entrei na era da meia-idade. A mudança veio devagar e, de uma hora para a outra, lá estava eu, com 48 anos, um forasteiro em um território habitado por pessoas que falavam de problemas de sono, intestinos infiéis e de assistir ao futebol em vez de jogá-lo.
Tive que me adaptar a esses estranhos modos e acabei surpreso com a facilidade com que passei para o outro lado, até não me reconhecer mais. Antes, cada manhã brilhava com possibilidades heroicas. De repente eu me senti imerso em uma banheira de água gelada. Não havia nada de muito errado. Tudo era só… menos. Inclusive eu. E eu estava com medo.
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Muita gente em situação semelhante busca uma razão para ir adiante, mas eu era pobre demais para comprar um Porsche ou lançar minha própria marca de gin. Apenas uma opção me interessou: eu queria voltar a correr de verdade.
“De verdade” não é muito honesto, pois sugere um passado vitorioso. Corri a vida inteira, mas sempre fui mediano, terminando no pelotão intermediário na meia dúzia de maratonas de que participei. E, nos últimos anos, nem isso, pois eu era assombrado por uma doença misteriosa que me causava dores e câimbras nas pernas toda vez que eu tentava correr.
Depois que um fisioterapeuta talentoso identificou que meu problema não era causado por excesso de quilômetros e, sim, por uma postura desajeitada e marcha galopante, voltei a me mover decentemente e decidi estabelecer uma meta ousada para alguém da meia-idade: queria me tornar o corredor que nunca fui, do tipo que desliza pelas montanhas o dia todo, movendo-se rapidamente pelos campos, esguio como um cervo.
Eu queria sentir as coisas com nitidez de novo, do jeito que eu sentia quando era mais jovem. O ardor nos pulmões do tiro morro acima, a paz que inunda as sinapses após um longo e árduo esforço, o aperto no coração quando a luz do outono se inclina sobre a trilha. Eu queria correr como se minha vida dependesse disso. Porque parecia ser assim mesmo.
Mais ou menos nessa época, um conhecido meu casca-grossa, que não aparenta a idade que tem, me disse que estava indo para a Suíça tentar uma nova trilha de vários dias nos Alpes, em uma rota que deveria ser o Grand Tour que o esporte merecia. Ela se chama Via Valais e foi projetada há alguns anos por três amigos que conhecem bem a Suíça – os fotógrafos de natureza Dan e Janine Patitucci, junto com a escritora Kim Strom.
Ligando trilhas, refúgios e hotéis, a rota leva você pelo cantão de Valais, no sudoeste da Suíça, a província que abriga muitas das montanhas mais altas dos Alpes e resorts famosos. Começando em Verbier e terminando em Zermatt, a viagem de nove etapas cobre quase 240 km pelo interior do país. “Ao longo do caminho”, alertou o amigo casca-grossa, “você encara tanto sobe e desce que termina chorando na panela de fondue à noite.” Mesmo corredores experientes levam nove dias para percorrer o trajeto.
Enquanto ouvia, pensei: “Essa corrida é muito tudo. Muito longa. Muito difícil. Muito extenuante”. Treinar para uma corrida como essa levaria meses e prejudicaria a vida normal. Não haveria tempo para rotinas. Seria só correr e correr – dias passados sozinho ou com amigos no alto das montanhas, até que os quilômetros nos deixassem esquálidos.
Foi quando percebi: é perfeito.
SETEMBRO PASSADO, antes do outono, mas já com indícios do seu frescor no ar, abriram-se as portas do teleférico sobre os chalés de US$ 1 milhão de Verbier, desovando quatro corredores inquietos. Tínhamos dormido mal na noite anterior e culpamos o jet lag. A verdade é que estávamos nervosos.
Os números explicam os nervos: à frente, a Via Valais serpenteava através de meia dúzia de vales a caminho do Matterhorn, com um ganho total de elevação de 12.800 metros (tenha em mente que, quando você não está numa subida absurdamente vertical, geralmente está numa descida absurdamente vertical). Qualquer trecho da rota teria entre 20 e 30 km, com 900 a 1.800 metros de ascensão.
Se depois de tudo isso alguém ainda estivesse sobrando, haveria um “pico bônus” que poderíamos escalar em cada etapa (número total de picos bônus que eu peguei: um).
Dei um nó duplo em meus tênis de corrida e examinei o pequeno grupo de novos amigos que também se desafiavam. Greg Hanscom era uma gazela sorridente – a mesma altura e quase a mesma idade que eu, mas 7kg a menos e duas corridas de 160 km a mais no currículo. Ao lado dele estavam Grace Butler e Annavitte Rand, que cresceram juntas nas trilhas rochosas de Vermont. Elas foram atletas universitárias – Grace, corredora de cross-country, Annavitte, esquiadora nórdica –, ambas tinham metade da minha idade e possuíam a habilidade de conversar enquanto corriam pelos terrenos mais rústicos. Riam de piadas internas forjadas na infância; para elas, seria um cruzeiro de nove dias.
A mim, restaram credenciais menos louváveis: o mais velho, mais pesado e mais lesionado, mas eu sabia que tinha feito tudo o que podia para me preparar. Oito meses antes, eu me coloquei sob a tutela de Alison Naney, cofundadora da Cascade-Endurance, com sede em Washington (EUA), e especialista no treinamento de atletas de montanha. “Não tenha pena de mim”, eu disse. E assim ela foi, com cuidado, conhecendo minha história recente de lesões. Os meses seguintes se passaram entre suor e Gelol. Balancei kettle-bells.
Fiz tiros de montanha até sentir gosto de cobre na boca. Corrigi minha marcha desconjuntada, a fonte de todos os meus problemas, até que comecei a me mover com mais respeitabilidade. Continuei correndo e, em junho de 2021, percorria trilhas de horas nas montanhas perto da minha casa nas Cascades. Nunca trabalhei tão duro na minha vida. Muitas noites eu me arrastei para a cama antes das nove horas, destruído.
Fiquei mais forte, mas tudo parecia irreal – como se eu ainda fosse um prédio antigo, com uma nova fachada. A dois dias do início da corrida, durante meu voo transatlântico, tomei vários ibuprofenos para reprimir uma rebelião de última hora das minhas pernas. Fiquei com essa preocupação até o momento em que nos preparávamos para sair.
QUALQUER TRECHO DA ROTA TERIA ENTRE 20 E 30 KM, COM 900 A 1.800 METROS DE ASCENSÃO. SE DEPOIS DE TUDO ISSO ALGUEM AINDA ESTIVESSE SOBRANDO, HAVIA UM “PICO BÔNUS” EM CADA ETAPA.
Como se entendesse a minha histeria, a Via Valais começou plana, em uma trilha que traçava o Bisse du Levron, canal de irrigação construído há mais de 500 anos para transportar água do alto das montanhas para os agricultores dos vales.
O ar da manhã estava azul e fresco, o sol ainda não se apresentava acima dos 3.870 metros do Mont Blanc de Cheilon. Começamos devagar, rindo e conversando enquanto corríamos para fora da área de esqui, animados por estarmos no nosso caminho depois de tantos meses de espera. Por enquanto, nervos e ajustes no corpo foram esquecidos. O bisse [canal de irrigação Bisse du Levron] ria junto com a gente.
Felizmente, não tínhamos que carregar muita coisa, graças ao sistema de refúgios da Suíça. Mais de 150 estruturas comerciais noturnas pontilham essas montanhas, oferecendo jantar, café da manhã e um edredom macio para montanhistas, andarilhos e – cada vez mais – corredores que passam por ali e não desembolsam mais do que US$ 110 por noite, incluindo comida.
Na maior parte das noites, ficávamos nos refúgios, mas às vezes em hotéis no fundo do vale, e essas acomodações nos permitiam correr por dias carregando pouco mais do que capa de chuva, uma escova de dentes, um pedaço de salsicha seca e uma carteira cheia de francos suíços para as cervejas pós-corrida.
Trotamos por uma curva e deixamos os chalés deslumbrantes de Verbier para trás. Mais à frente, ouvíamos uma sinfonia de vacas com sinos em um prado verde, figurinhas em uma mise-en-scène perfeitamente suíça. “Mais agudos!”, disse Greg que, logo descobrimos, se empenhava bastante em suas piadas de tiozão.
Fizemos outra curva e as vacas desapareceram. O bisse ficou mais alto; lá em cima era um ruidoso córrego da montanha. O caminho fácil ao longo do rio empinou, e a Via Valais virou uma verdadeira wanderweg, ou trilha de caminhada. A Suíça tem mais de 64.000 km de trilhas como esta, prova da paixão nacional por caminhadas. Seguimos as marcações nas rochas que iam cada vez mais alto e, de repente, estávamos em um campo alpino deslumbrante.
À medida que ganhávamos altitude, a Via Valais descortinava a primeira de suas muitas lições: correr em trilha aqui não é como correr nas trilhas perto de casa. Muitas vezes sequer corremos, porque as trilhas são muito íngremes. Quão íngremes? Já peguei escadas rolantes com menos inclinação. Mas e os zigue-zagues? Aparentemente são invenções de estadunidenses preguiçosos.
Os suíços valorizam a diretíssima, a reta mais estética e intransigente até a montanha. Em trilhas como esta, o orgulho de um corredor dói mais do que qualquer bolha. Ele deve encontrar um ritmo mais humilde para aguentar o terreno.
Rapidamente deixamos de lado qualquer preocupação com o tempo e o ritmo em favor de uma nova filosofia: corra quando puder, caminhe quando precisar. Repeti esse mantra muitas vezes, começando em nossa escalada acima da linha das árvores, passando por lagos cravados como pedras preciosas nos vales, em direção ao Col de Louvie, uma passagem de 2.700 metros.
Naquela subida, pela primeira vez, vários de nós usaram bastões de caminhada para tirar um pouco da carga das pernas, criando um som de click-click, como se fôssemos um exército de soldadinhos de chumbo. Por necessidade ou exaustão, provavelmente caminhamos um terço da quilometragem – ou mais – todos os dias.
GREG LEVANTOU UMA CERVEJA PARA O MEU CORPO PROSTRADO. AQUELE MALDITO EXTRATERRESTRE JÁ ESTAVA LÁ HAVIA UMA HORA, BATENDO PAPO COM OS “REFUGIEIROS” E COMENDO COOKIES COM A CERVEJA.
Mesmo com a ajuda dos bastões, quando chegamos ao primeiro refúgio – a Cabane d’Essertze, situada bem acima da cidade de Sion, a 2.190 metros –, eu estava tão destroçado pelos 32 km percorridos que desabei no deck. Greg levantou uma cerveja para o meu corpo prostrado. Aquele maldito extraterrestre já estava lá havia uma hora, batendo papo com os “refugieiros” e comendo cookies com cerveja.
Eram suíços francófonos, um pouco mais gregários do que seus compatriotas travados do leste. Anthony Sermier, um dos refugieiros, enfiou a mão em um coxo entalhado em madeira, tirou uma garrafa gelada de vinho branco local, sacou a rolha e inclinou o gargalo para mim em um gesto que dizia: o que você precisa é isso, certo? Agradeci a hospitalidade, mas cambaleei para dentro em busca de um beliche. Logo estávamos devorando pratos de sua fabulosa massa. Não foi um começo tão ruim.
CADA MANHÃ na Via Valais era uma pequena ressurreição. Os dias difíceis eram deixados de lado, dando lugar à aurora rosada e promissora. Não havia pressa. Ritmo e atenção não competiam. Saímos da cama e descemos as escadas em direção à granola e ao café.
Tentamos sair às 8h, começando devagar, aquecendo com o sol. Enquanto trotávamos, discutimos com bom humor sobre os nomes das flores silvestres que ladeavam a trilha – genciana-da-neve, áster-alpino, anêmona. As manhãs também eram gratificantes por outro motivo. Enquanto as tardes guardavam boa parte da dificuldade, muitas vezes por terminarem com subidas extenuantes até um refúgio no alto, o início do dia era uma etapa de descidas, ou pelo menos de terrenos mais planos.
No fim da manhã, todos os dias, os corredores do nosso grupo alternavam posições à medida que cada pessoa se acomodava em seu próprio ritmo, um galopando à frente se sentindo forte, outro diminuindo a velocidade para admirar a vista. Eu gostava mais quando alguns de nós se reuniam novamente, meia hora ou duas horas depois. Normalmente, isso acontecia num local onde a trilha virava a esquina para revelar uma nova paisagem.
Isso aconteceu no segundo dia. Greg tinha ido à frente, a perder de vista. Grace e Annavitte tinham dobrado uma curva e atravessado uma ponte provisória sobre as águas barulhentas. Acima de nós, o Dent Blanche, 4.357 metros, aparecia por inteiro e inclinava sua massa egípcia sobre um vale deserto, tão recentemente abandonado pelo gelo glacial que sequer tinha gramíneas.
Era um lugar onde valia a pena parar, então nos sentamos nas rochas e comemos pedaços gordos de gruyère com fatias de maçã crocante no pão integral. Estávamos cansados, felizes e gratos, pelos corpos fortes e por estarmos ali ao sol. Era mais importante assimilar aquilo tudo do que dizer qualquer coisa. Ouvir a espuma do riacho empurrando as pedras em direção ao Reno.
Ao cair da tarde, no fim de um segundo dia de 32 km, corremos até a porta do refúgio Cabane des Aiguilles Rouges, que fica abaixo de um pico de 3.646 metros de mesmo nome.
O local oferecia todo o gemütlichkeit – o aconchego alpino – que se pode esperar de um refúgio suíço, com sua fachada de pedra iluminada por venezianas vermelhas e sua sala de jantar feita de madeira clara e convidativa.
O refugieiro era menos acolhedor. Imagine um Rubeus Hagrid (personagem barbudo do Harry Potter), mas sem o sorriso. Quando Greg lhe disse que iríamos correr na manhã seguinte até o Cabane Becs de Besson, nosso terceiro dia consecutivo de 32 km, ele riu sem gentileza. “Pegue um helicóptero”, rosnou. Por outro lado, é possível que ele tenha preferido demonstrar seu amor através da comida: naquela noite, ele serviu carne com molho de vinho tinto sobre batatas assadas. Estava absurdamente bom. Raspamos nossos pratos e desmaiamos cedo.
Na manhã seguinte, a trilha que saía do refúgio parecia uma pausa fácil em nossa rotina. Despencou por uma floresta encantada de pinheiros de agulhas macias com pontas amareladas pelas noites frias, passou pelas águas azuis-turquesa do Lac Bleu e cruzou pelo meio de um rebanho de gado preto que nos atacou, aparentemente vendo nosso grupo como salinas humanas. Continuamos correndo, através de prados e passando por chalés esculpidos.
Naquele ponto, quase 2.200 metros abaixo do refúgio da noite anterior, chegamos ao fundo do vale em Evolène, a primeira aldeia que víamos em dias. As padarias estavam todas fechadas – merde! –, então compramos almoço e suprimentos em uma pequena mercearia, depois nos sentamos num ponto de ônibus, como andarilhos es- farrapados, acumulando calorias.
EU HAVIA ESTUDADO os mapas e temia o que viria a seguir. Do fundo do vale, o jantar e a cama daquela noite estavam a 1.800 metros verticais acima de nós e a cerca de 16 km de distância, num cume distante, com um refúgio chamado Cabane Becs de Bosson no topo. Começamos às 14h.
A trilha saindo de Evolène me acalmou, a princípio, passando por chalés antigos com vigas de madeira tão vincadas quanto os rostos que se inclinavam para fora de suas janelas para nos ver passar. Em uma pequena aldeia incrustada na encosta da montanha acima de Evolène, um homem perguntou para onde eu estava indo. “Zermatt”, respondi, em um francês quebrado. Sua esposa inflou as bochechas e fez um som como o ar saindo de um pneu. “Bon courage” [boa sorte], ele falou, sem entusiasmo.
Logo a trilha começou a subir em direção ao céu de uma maneira nova e horrível – passando pelas portas da frente das cabanas dos pastores que se agarravam com unhas e dentes à encosta da montanha e por homens que organizavam o feno em declives impossíveis. Eu caminhei na ponta dos pés, arfando como um cavalo de arado trabalhando em solo duro. Meu pescoço estava queimado de sol. Percebi que, por dias, embotado pela exaustão, eu vinha me protegendo dos raios UV com aplicações generosas de xampu anticaspa.
Em algum lugar acima, as garotas de Green Mountain não estavam sofrendo. Estavam rindo. Elas se lembravam de falas do filme Ricky Bobby: A Toda Velocidade e comiam ursinhos de goma e espinafre direto da sacola. Depois de um tempo, vi Grace acima de mim. Ela estava esperando. “Posso levar alguma coisa da sua mochila?”, perguntou. A doce, adorável e ruiva Grace, com suas panturrilhas de ferro e seu sorriso largo, uma inocente, só querendo espalhar bondade.
Eu disse algo impublicável para ela. Era o uivo de um velho javali ferido que ainda se lembrava do que era ser jovem e à prova de balas e que tinha vergonha de não ser mais nenhum dos dois. Chocada, ela se virou e desapareceu na trilha. Eu me arrastei para o alto, carregando uma nova vergonha (fiel ao seu nome, Grace pareceu me perdoar depois).
No refúgio de Becs de Bosson, a 3.000 metros, uma multidão de caminhantes e alpinistas bebia cerveja e descansava nas espreguiçadeiras. Os Alpes estavam se exibindo, com a vista da geologia violenta e do imenso espaço aéreo azul. Dentro poderíamos pedir fondue, e pichets de vinho servidos por sorridentes refugieiros. A cena era a melhor dos Alpes, aquela pela qual eu havia trabalhado por tanto tempo. Mas eu era só o pó e via tudo como se fosse por um vidro fosco.
“Eu não sei se vou conseguir”, murmurei enquanto me arrastava para a cama naquela noite. Estranhamente, porém, o pensamento veio sem o peso da preocupação, porque eu estava cansado demais para me importar.
OS OUTROS ME ajudaram a me manter em movimento. Greg era tão incansavelmente positivo que sempre nos fazia rir na mesa de jantar, mesmo quando não conseguia dobrar os joelhos sem ter câimbras. Annavitte, que é engenheira estrutural, nos contava fatos interessantes sobre os prédios que vimos – como um puxadinho moderno em uma velha cabana de pedra em balanço sobre uma geleira.
Sempre que eu estava sofrendo, de cabeça baixa ou me movendo muito rápido, a sensibilidade e o olhar de Grace para a beleza sempre me chamavam a atenção para levantar a cabeça e olhar ao redor. Um dia, depois que partimos do Cabane de Moiry, numa manhã tão enevoada que parecia a descrição de um ancoradouro inglês, as nuvens se abriram para revelar o Zinalrothorn, de 4.220 metros, coberto de neve nova. Os vislumbres foram breves – uma sublimidade que aumentou o efeito. Annavitte notou que Grace tinha lágrimas nos olhos. “Falta pouco,” ela disse.
Claro, sempre havia a paisagem, sua grandeza nos levando adiante. Passamos correndo por mais cabanas antigas no alto das montanhas, as pedras estampadas com líquen, portas em ruínas emoldurando paisagens que os ricos de Verbier pagariam milhões para ter. Corremos ao lado do Lac des Dix, com sua água cor de opala-pálida, resultantes das geleiras do Mont Blanc de Cheilon e do desgaste da montanha.
E aí veio a surpresa do caminho da Via Valais nessa parte da trilha. Subia por escadas. Contornava paredes vertiginosas. Atravessava túneis. Cambaleava sobre pontes suspensas. Eu tinha vontade de continuar porque queria descobrir o que o caminho me traria à frente.
No sexto dia, algo aconteceu. Justo quando pensei que não conseguiria continuar, acordei e percebi que não estava dolorido e que conseguiria prosseguir. Meu treinamento me preparou para aquilo. Claro, eu estava muito cansado. Sim, minha forma imperfeita de corrida não estava ajudando. Eu ainda usava muito as panturrilhas, que gritavam, e dobrava demais a cintura, o que me tornava ineficiente. “Mas talvez eu consiga fazer isso”, pensei. Talvez eu seja o corredor que queria ser afinal – ou quase, por enquanto.
A Via Valais também começou a mudar de maneira sutil. A quilometragem diária ficou modestamente mais curta. Os picos circundantes ficaram mais altos e eram ainda mais inspiradores. No entanto as trilhas ficaram mais “corríveis”. Os dias pararam de subtrair de nós. Agora eles davam mais do que recebiam. Os outros também sentiram assim.
Saímos da aldeia de Zinal, subindo a trilha ladeada de flores lavadas pela chuva. Mirtilos mancharam nossos dedos de roxo enquanto nos empanturrávamos. O ar trazia os perfumes doces e melancólicos de feno ceifado e estrume com o do inverno chegando. Depois subimos ainda mais, até o Passo Forcletta, de 2.874 metros, onde cruzamos o Röstigraben (“fronteira da batata”), aquela linha cultural invisível que divide a região onde os suíços tradicionalmente falam francês e onde falam suíço-alemão e comem rösti, seu amado prato de batatas assadas envoltas em queijo e presunto defumado.
NAQUELA TARDE, tomando drinques no deck ensolarado da pedra Turtmannhütte, os designers da Via Valais – Dan, Janine e Kim – nos contaram a história da origem da trilha. Alguns anos antes, os três estavam terminando um livro sobre corridas de trilha na Suíça, quando uma injustiça veio à mente. Os caminhantes estadunidenses têm as trilhas Appalachian e Pacific Crest, eles pensavam, e os esquiadores europeus têm a Haute Route. Por que a corrida em trilha não tem um tour icônico?
Eles decidiram criar um no Valais, que sabiam que ofereceria algumas das melhores corridas de trilha do mundo (os três vivem pelo menos meio período na Suíça). Vários mapas marcados e tênis de corrida desgastados depois, nasceu a Via Valais, ligando algumas das melhores trilhas existentes. “A rota é mais ou menos paralela à Haute Route, mas com um percurso mais amigável, para correr quando possível”, explicou Dan, “contornando as extremidades dos vales e subindo mais alto do que a versão da rota dos caminhantes de verão.”
Eles concordaram, no entanto, que os aspirantes a corredores deveriam pensar nisso como uma jornada na montanha, em vez de uma simples corrida em trilha. Precisarão de mais do que apenas um belo par de pulmões – terão de ser experientes para passar por grandes picos em todos os tipos de condições. “Nós não a projetamos para o novato”, disse Janine.
O que suaviza os rigores a cada dia é o incrível sistema de refúgios. Quando possível, o trio incluía cabanas favoritas em cenários deslumbrantes – incluindo o Turtmannhütte, que se empoleira como um ninho acima de sua geleira homônima. Os corredores podem pagar para que o sistema ferroviário suíço transporte sua bagagem até o hotel seguinte no fundo do vale, para que possam ter um shorts limpo de vez em quando. Meu plano de viagem foi feito por mim. A viagem custou cerca de US$ 2.000, sem contar a passagem aérea.
Dan e Kim correram conosco no dia seguinte e, embora todos estivéssemos deixando passar os picos de bônus, eles não nos deixaram perder aquele que insistiam ser o melhor brinde da semana. Quando a primeira luz atingiu os topos do Bishorn e do Weisshorn, subimos até o cume do Barrhorn, de 3.610 metros. Lá, os Patitucci nos contaram os nomes dos picos de gelo ao nosso redor: Dent Blanche. A geleira Aletsch, a mais longa dos Alpes. Mont Blanc e o horizonte francês acima de Chamonix, a oeste. Poderíamos ter contemplado as vistas gloriosas por muito tempo, mas o relógio finalmente nos pressionou a sair do cume.
O dia seguinte, nosso sétimo, foi palco da Etapa Rainha, o ponto crucial da Via Valais – um grande desafio, que nos assombrou por meses. Do alto do Barrhorn, nosso hotel ficava 2.700 metros abaixo do próximo vale. Entre nós e o chuveiro estava o infame Schöllijoch, uma parede de rocha que desce cerca de 76 metros da crista divisória até um pedaço remanescente de geleira. Os caminhantes descem o Schöllijoch usando uma série de escadas fixas, cordas grossas e degraus de ferro – misto de cascata de gelo do Khumbu com via ferrata.
Annavitte não é fã de alta exposição, e o Schöllijoch não saía da sua cabeça desde a noite anterior. Quanto mais tentávamos tranquilizá-la, menos parecia ajudar. Lágrimas rolaram. Agora, de pé na beirada do abismo, ela anunciou o desejo de dar a volta correndo – um desvio de 16 km. Mas estávamos na meticulosa Suíça: as escadas eram firmes, os degraus, cimentados na rocha. Persuadida habilmente por Dan, Annavitte conseguiu superar o Schöllijoch sem maiores problemas.
SOU INTELIGENTE O SUFICIENTE PARA SABER QUE CORRER NÃO É A RESPOSTA PARA AS QUESTÕES COMPLICADAS DA VIDA. MAS SEI O QUE A CORRIDA ME DEU. E EU ESTAVA FELIZ POR TÊ-LA DE VOLTA.
Ela desceu na neve e sorriu. Por horas corremos num zigue-zague de singletrack entrando e saindo das dobras da saia dos 3.800 metros do Brunegghorn. Desviamos para o Topalihütte para jantar rösti e coca-cola. Os refugieiros saíram e conversaram ao sol. Eles passaram meses trabalhando ali e estavam ansiosos para
descer para o inverno.
Essas paradas lânguidas nos alertaram para algo que não esperávamos sentir esta semana: arrependimento. Na maioria dos dias, corríamos pela paisagem, dando duro, os olhos focados na trilha à nossa frente. Às vezes parecia uma desfeita com o lugar. Afinal, é difícil refletir sobre a grandeza da natureza quando você está tentando não vomitar durante uma subida de 1.500 metros até a próxima passagem.
“Vocês transformaram as catedrais da terra em pistas de corrida”, escreveu John Ruskin, o crítico vitoriano do século 19 que amava os Alpes e odiava alpinistas, repreendendo aqueles que adotaram o esporte quando era novo. Todos nós sentimos a crítica de John Ruskin e paramos muitas vezes para olhar a paisagem.
Concordamos que precisávamos voltar e da próxima vez diminuir ainda mais o ritmo. Mas por enquanto tínhamos que nos mover novamente, descendo a encosta da montanha em direção à aldeia de Randa. A aproximação levou horas, e a montanha parecia ter saído de uma maquete.
O ÚLTIMO DIA foi o melhor. Acordamos ao amanhecer com vagalumes piscando no Matterhorn: eram as lanternas dos alpinistas subindo a aresta Hörnli. A trilha acima de Zermatt era suave, larga e rápida, e por quilômetros corremos à sombra do pico mais famoso da Suíça.
Nossa corrida parecia uma volta da vitória num vaivém acima da cidade, rindo, conversando e perseguindo uma ideia de doces matinais. “Acho que estou sentindo o cheiro da bäckerei”, eu disse, emergindo da floresta. “Só sinto o cheiro de vocês”, falou Annavitte.
Em um amontoado de chalés chamado Zmutt, devoramos tortas de pera e ameixa e, abastecidos com café expresso, seguimos para um vale solitário sob o polegar torto do Matterhorn. A trilha voltou a subir. Abrimos sorrisos amarelos. E continuamos correndo. Poucas horas depois, estávamos deitados de costas no topo de uma colina gramada à beira de Zermatt e jogamos nossos braços para o céu, como se estivéssemos tentando segurar algo enorme. Ninguém disse nada por muito tempo.
Sou inteligente o suficiente para saber que correr não é a resposta para as questões complicadas da vida. Não cura a crise da meia-idade nem a angústia existencial, tampouco as preocupações e oscilações da existência. Mas sei o que a corrida me deu. E eu estava feliz por tê-la de volta.
Annavitte falou: “Eu correria de novo amanhã”. Foi uma espécie de confissão. Mas havia espanto nisso. Ficamos em silêncio por um momento enquanto considerávamos a ideia. Eu também faria isso, pensei espantado. Conseguiria.
Ninguém se mexeu. Deitamos juntos na grama fresca, satisfeitos em não ir a lugar algum.
*O editor especial Christopher Solomon (@chrisasolomon) mora nas montanhas do Estado de Washington, nos Estados Unidos.
**Matéria originalmente publicada na Go Outside 175