RUSKA É A PALAVRA FINLANDESA PARA DESCREVER O ESPETACULAR FENÔMENO NATURAL DO OUTONO QUE TRANSFORMA O CAMPO DA LAPÔNIA NUMA EXPLOSÃO DE CORES.
Esse espetáculo sazonal geralmente dura cerca de duas semanas. Folhas de bétula douradas pendem de galhos brancos e retorcidos, um belo contraste com o tapete vermelho flamejante de arbustos de mirtilo no chão da floresta. O sol baixo do fim da tarde banha o ambiente com uma luz suave e quente, aprofundando ainda mais o azul dos lagos.
Esse “segundo verão” é um evento natural inigualável na Lapônia, e tivemos a sorte de estar lá em uma dessas semanas. Nossa boa sorte, no entanto, só foi percebida quando pousamos bem ao norte do Círculo Polar Ártico, em Kittilä. Assim que saímos do aeroporto, o brilho de cores ao nosso redor foi impressionante. Fränzi, eu e nossas mountain bikes cuidadosamente guardadas na bagagem estávamos a caminho de nossas acomodações na companhia do fotógrafo Martin Bissig, que registraria em filme essa incrível estação.
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Dos dois lados da estrada, não vemos nada além das cores ricas das florestas do outono. Nenhuma surpresa, já que a floresta cobre 70% do país. Aqui e ali vislumbramos pequenos povoados e suas típicas casas de madeira vermelha.
“A cor veio originalmente do lodo dos rejeitos de mineração, que contém um óxido de ferro vermelho. Esses pequenos assentamentos geralmente consistem em algumas casas, uma pousada, uma padaria, celeiros e dependências. A razão para que estejam assim espalhados é para que não peguem fogo caso haja um incêndio. Afinal, temos espaço suficiente”, explica Juha, nosso motorista.
Sua família vive na área de Levi há mais de 500 anos. Hoje, ele e sua esposa, Heidi, operam uma renomada agência de viagens, a Polar Star Travel. Estávamos entusiasmados por poder viajar com pessoas cujas raízes locais são tão profundas. Nossas acomodações numa casa feita de toras não poderiam ser mais autênticas. É um cenário perfeito de filme. Os materiais naturais de construção oferecem aconchego em cada quarto. A casa pertence a uma família de caçadores, como evidenciam as muitas peles e chifres que adornam as paredes.
Além de alguns quartos e uma sala de estar com uma cozinha cheia de luz natural, há, claro, a sauna obrigatória. Esses espaços têm uma longa história na Finlândia e são um componente essencial da vida finlandesa. “Uma casa não está completa sem uma sauna”, explica Juha, rindo. “Há mais de 3 milhões na Finlândia!” Mais tarde, encontramos Heidi na pihvipirtti, que significa churrascaria. As velhas tábuas do assoalho rangem quando entramos na sala. Piso, teto, paredes, cadeiras. Tudo de madeira. O balcão, sobre o qual se estende um enorme bufê, é feito de pedra. O ambiente é sublime.
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Nosso jantar marcou o início de uma semana de culinária extraordinária. Legumes, ervas e batatas são cultivados logo ali ao lado. Os baixos níveis de poluição do ar e as longas horas de luz do dia no verão permitem que as plantas cresçam. Por sua vez, essas plantas saudáveis nutrem os animais, principalmente renas, que servem de alimento básico na Lapônia. Sua carne é especialmente tenra, com um sabor diferente de tudo que já comemos. A rena é servida de todas as formas imagináveis: filé de rena, guisado de rena, hambúrgueres e costeletas de rena e até alce recheado de rena. A criatividade na cozinha não tem limites.
Depois que nossas papilas gustativas foram totalmente estimuladas ao longo de uma noite divertida, voltamos para nossas acomodações, saciados. “O programa para os próximos dias está empolgante”, declarou Fränzi alegremente. Com muita expectativa, deslizamos sob os cobertores xadrez em nossas camas aconchegantes na casa de madeira.
Não tivemos muito tempo de aquecimento no dia seguinte. A trilha estreita serpenteia pela floresta densa e, depois de apenas alguns minutos, sobe íngreme. Na verdade, temos que descer das bicicletas e empurrar e, mais tarde, carregá-las no ombro. “Quem diria que teríamos que carregar as bikes neste campo plano”, digo, rindo. Pedalamos por um dos muitos fjells da região.
Se comparadas aos Alpes, essas elevações são apenas morros. Os planaltos sem árvores se abrem para uma vista magnífica sobre intermináveis extensões de terra. Os fjells têm todas as formas e tamanhos e são o destino perfeito para ciclistas de montanha e caminhantes, pois geralmente há caminhos estreitos e deliciosos que levam direto ao topo. Uma vez de volta ao selim, retornamos para a linha das árvores.
A vegetação colorida é menor, então a vista se estende ainda mais. “Dá para ficar olhando por horas a fio. E quantos lagos!”, diz Fränzi quase emocionada. Não ficamos no alto por muito tempo, pois uma tempestade está se formando à distância. Graças à vista incrível, conseguimos avistá-la no horizonte.
Demos a volta com as bikes e fizemos nossa primeira descida feliz na Lapônia. O chão é bem aderente, com a trilha ziguezagueando, uma raiz para pular aqui, um desafio técnico ali, drops íngremes – a trilha é perfeita, mesmo quando ainda não estávamos completamente aquecidos. Impossível não sorrir quando nos deparamos com uma cabana rústica de madeira ao pé do fjell.
Agradecidos, nos afundamos nas espreguiçadeiras cobertas de peles em frente à cabana de madeira, com seu exterior excessivamente decorado, quase kitsch. Chifres de alce, esquis antigos, lanternas, buquês de sempre-vivas – mais uma vez, não podemos deixar de pensar que fomos jogados no meio de um set de filmagem. Aos poucos nos acostumamos por que é assim que eles fazem as coisas no norte da Finlândia.
O país também é conhecido por seu consumo de café, ocupando o primeiro lugar no mundo, e nosso café fumegante era servido em uma kuksa. Essas taças, feitas com madeira de bétula, são o tradicional recipiente de bebidas dos Sami, habitantes originais da Lapônia, e ainda são muito usadas por onde passamos. É como se os finlandeses tivessem pensado cuidadosamente em cada aspecto da vida, porque a arquitetura complementa perfeitamente os pratos.
A outra coisa que eles levam em conta é como combinar o clima úmido e frio com as saunas, conforme descobrimos em nossa visita a um dos muitos parques de sauna. O céu estava começando a se abrir novamente quando chegamos às cabanas de sauna localizadas às margens de um lago profundo e azul.
Nós nos sentamos nos generosos bancos de madeira, suando, apreciando a vista pelas janelas do chão ao teto. As folhas de bétula dourada se refletem no lago agitado. “Não dá para imaginar um jeito melhor de terminar um dia de bike”, digo, interrompendo nosso devaneio silencioso e derramando mais água nas pedras quentes.
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Também estava no programa uma visita ao Levi Bike Park. O mapa mostra 16 trilhas diferentes, ou trilhas parciais. Tem de tudo, desde as azuis, fáceis, até a trilha preta da Copa do Mundo. Há também duas de enduro que contornam o perímetro do parque. No dia seguinte, o teleférico nos levou pelos 310 metros verticais até o topo.
A estação do cume fica bem acima da linha das árvores e oferece uma impressionante vista panorâmica da paisagem. As condições da trilha variam. Ficamos surpresos com a diversidade de terrenos do parque. De trilhas naturais rústicas seguindo linhas de fluxo a trechos desafiadores com grandes saltos e estruturas de madeira, elas garantem que os ciclistas se divirtam muito, independentemente do seu nível de habilidade. Passamos várias horas curtindo, até nossos antebraços queimarem.
Na trilha vermelha, apropriadamente chamada de “Chalé do Papai Noel”, nós nos deparamos com um set de filmagem real. O chalé, assolado pelo vento, fica bem ao lado da trilha. Esse é o lugar da infância do pequeno Nikolas, do famoso filme “História de Natal”. Mais tarde, ele se tornaria Papai Noel.
Nossa noite não é menos emocionante do que as trilhas do Bike Park. Jantamos no Shaman, um restaurante local. A palavra “Shaman” está afixada em uma casinha de seis lados, então sabemos que encontramos o lugar certo.
Esses chalés, chamados kota, foram originalmente destinados a abrigar caçadores e silvicultores. Eles têm uma fogueira no meio e agora são frequentemente usados como uma espécie de churrasqueira. Temos que nos abaixar para passar pela porta, que se fecha atrás de nós. Mal da hora, decidimos que não era tarde demais para acender a sauna em nossa casa de madeira. “Isso é algo que todo mundo tem que ver pelo menos uma vez na vida,” declaro. Fränzi e Martin concordam com a cabeça, banhados de suor.
No dia seguinte, o café da manhã é bem tarde. O país e seus habitantes exalam uma calma e serenidade difíceis de serem ignoradas. Talvez essa seja uma das razões pelas quais a Finlândia ficou no topo do “Relatório Mundial da Felicidade” de 2021 pela quarta nos sentamos quando uma aparição aterrorizante entra na sala. Após um ritual que inclui o xamã pintando nosso rosto com carvão e enfiando um graveto no fogo até que faíscas voem descontroladamente para o teto, o xamã vestido de pele se mostra um incrível contador de histórias e cozinheiro. Ele encheu a noite com histórias emocionantes da mitologia da Lapônia, enquanto nos alimentava com peixes que ele pescou e legumes de seu jardim.
Aprendemos muito sobre sua família e a longa linhagem de curandeiros à qual ele pertence. “Mesmo agora, muitos finlandeses vivem em sintonia com a natureza e sentem a magia que ela encarna”, conta. Encantados com suas histórias, já era bem tarde quando finalmente deixamos o kota.
Ao sair na escuridão, experimentamos nosso próprio momento mágico. O céu noturno é iluminado com uma exibição de luzes cintilantes. Tons de luzes verdes e roxas da aurora boreal dançam entre as estrelas e são refletidas no lago. “Rápido, venha ver!” “Uau, estão ficando cada vez maiores!” “Incrível, você viu aquelas lá atrás?” Continuamos apontando para o céu, chamando uns aos outros com espanto. Nenhum de nós já tinha visto uma aurora boreal. É claro que esperávamos encontrá-la, mas não acreditávamos que de fato conseguiríamos. Naquele momento ficamos felizes como crianças que veem neve pela primeira vez. Realmente um show único.
No meio da noite, quando o frio penetrou em nossos ossos, voltamos. Apesar vez consecutiva. Também estávamos felizes. Felizes pelas muitas experiências em tão pouco tempo e pelas pequenas trilhas que fazíamos por volta do meio-dia para chegar a uma fazenda de huskies. Cabanas de pescadores centenárias com telhados densamente cobertos de vegetação combinam perfeitamente com a paisagem. O senso de urgência que levamos conosco praticamente desapareceu. Saboreamos cada momento e nos demos tempo para fazer pequenas pausas e aproveitar a natureza.
No Levi Husky Park, ficamos maravilhados. Os animais confiantes, com sua pelagem densa e olhos azul-claros, era só o que precisávamos para nos convertermos de vez em fãs absolutos da Lapônia. Em um passeio pelo parque, alimentamos raposas, brincamos com huskies e até beijamos uma rena. Já tínhamos conhecido muitas delas nos últimos dias e até vimos versões raras dos animais, brancos como a neve. Mas ainda não tínhamos chegado tão perto de uma.
Descobrimos muitas coisas interessantes sobre esse membro da família dos cervos. “As renas conseguem nadar por muitos quilômetros. Elas não se afogam por causa do pelo, que retém bolsões de ar, mantendo-os isolados e flutuando”, explica nossa jovem guia de turismo. Ela claramente ama o que faz. “As renas conseguem mudar a cor dos olhos. No verão, quando tem luz o dia todo e a noite inteira no alto norte, seus olhos são dourados e, na escuridão do inverno, ficam azul-escuros”, explica.
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Nosso caminho de volta, naturalmente, nos leva a passar por uma sauna. Mas não qualquer uma: ela é flutuante. A construção é realmente única para esta parte do mundo. É uma casa construída sobre uma plataforma de madeira mantida de pé por grandes pontões. Uma cerca branca circunda a plataforma. Quatro motores de popa impulsionam o gigante pela água. No interior, ao lado de uma grande área comum, há também uma sauna enorme com fogão a lenha. Quando chegamos lá, a fumaça já estava subindo da chaminé. Entramos no barco por um portão. A casa se afastava lentamente da costa.
“Não é possível! Estamos em uma casa, atravessando um lago em direção ao pôr do sol!” Impossível não sorrir. “Ok, vamos entrar na sauna e depois mergulhar no lago!”, diz Fränzi, que está explodindo de entusiasmo. Três rodadas de sauna depois, cada uma seguida de um pulo no lago, voltamos. “Isso é tão incrível”, comenta Martin, encantado.
O rolê de bike no dia seguinte nos levou a Rouvivaara, um extenso planalto 560 metros acima do nível do mar e coberto de musgo. Aos nossos olhos, já não parece um grande morro. Mas ainda assim, o vento soprava em rajadas ferozes pelo planalto sem árvores e, com a incrível vista panorâmica, o morro parecia muito mais alto. A trilha é rochosa em algumas partes, dificultando o avanço, mas, por outro lado, é um passeio de mountain bike muito equilibrado e oferece toda a experiência da Lapônia. Troncos foram colocados lado a lado onde quer que o solo seja macio e pantanoso, formando uma espécie de calçadão rústico.
Encontramos alguns excursionistas, mas somos os únicos de bicicleta. As descidas serpenteiam do planalto para a floresta densa, onde se vê troncos transformados, pelo vento e pelo clima, em esculturas abstratas. Nosso passeio começa e termina num lago chamado Hieta-järvi. Na volta, Heidi e Juha nos receberam numa cabana semiaberta com uma bela digo, olhando para o céu. É com uma pitada de melancolia que arrumamos nossas coisas e voltamos tarde da noite.
Mais um dia de bicicleta nos esperava na região ao redor de Ylläs. Há uma rede bem estruturada e emocionante de trilhas aqui. Várias bike shops, locadoras e restaurantes completam a oferta. Apenas as trilhas marcadas para as magrelas podem ser usadas no Parque Nacional Palla-Ylläs. Mapas e informações podem ser encontrados no posto de turismo. As rotas são bem-sinalizadas e passam por florestas retorcidas e mágicas ou até pelos fjells da área, de modo que em algumas das trilhas, centenas de metros verticais se somam rapidamente.
Quase nos sentimos um pouco exóticos com nossas mountain bikes comuns, já que a maioria pedala de fat bike. Faz sentido, especialmente no inverno e em solo macio. No início da tarde, fomos vencidos pela fome. Encontramos um restaurante, onde estudamos de perto um mapa mostrando as diversas opções de passeios. Infelizmente, não havia tempo suficiente para fazermos a viagem de quase 100 km até Levi. “Mas fiquei com vontade. Acho que vamos ter que voltar”, sorri Fränzi, mordendo seu hambúrguer de rena.
“Como é a história da sexta temporada que eu ouvi falar?”, pergunto a Juha em nossa última noite juntos. “Os Sami, únicos povos indígenas da Europa, dividem o ano em oito estações. Então, além do inverno, há também o início do inverno e o fim do inverno. O mesmo se aplica para o verão”, explica Juha. “E ruska, outono, é a sexta temporada no calendário sami.” Concordamos que essas belas semanas merecem mesmo sua própria estação, porque pedalar por caminhos solitários através de uma floresta cheia de luz e resplandecentemente colorida em dias como estes é realmente uma experiência mágica.
Vai lá
Como chegar: Desde a Europa, há voos para Helsinque e de lá para Kittilä ou Rovaniemi.
Idioma: O finlandês é uma língua muito difícil de aprender. Mas dá para se virar bem com o inglês.
Aurora boreal: A melhor época para ver é entre setembro e março, em noites claras e sem nuvens. Há também aplicativos para prever o fenômeno.
Sites úteis:
Passeios guiados de bicicleta na Lapônia: abenteuerreisen.ch
Informações gerais sobre a Lapônia: visitlappland.com
Eventos, acomodações, passeios: polarstartravel.fi
Chalés fantásticos para até 10 pessoas: polarstartravel.fie
Levi Bike Park: levi. ski/en/summer/ bikepark
Levi Husky Park: levihuskypark.fi
Grande parque de sauna à beira do lago: harriniva.fi
Churrascaria de delícias culinárias em Levi: hulluporo.fi
Passeios de bike no Parque Nacional Ylläs: yllas.fi
Visitas com xamãs: laplandshaman.com
Parques nacionais da Finlândia: nationalparks.fi
Para os românticos de coração, recomendamos ficar em uma pirâmide de vidro, que oferece uma visão desobstruída da aurora boreal: elvesvillage.fi (o alarme da aurora boreal está, é claro, incluído, caso você adormeça). A Aldeia dos Elfos, cuidadosamente projetada, também merece uma visita. E enquanto estiver lá, não se esqueça de visitar o escritório do Papai Noel.
Matéria originalmente publicada na Go Outside 173.