O Parque Estadual do Desengano é o primeiro local da América Latina a conseguir o certificado internacional de Dark Sky Park, fortalecendo a luta contra a poluição luminosa e fomentando o astroturismo no Brasil
Ao olhar para o céu à noite, o que você vê? Se você está lendo essa revista em uma área urbana, provavelmente não há muito o que enxergar lá em cima. As luzes artificiais das cidades impedem a observação das estrelas, já que ofuscam o brilho natural dos astros. Para tentar apreciar a beleza do céu noturno, o ideal é ir até lugares a pelo menos 50 km de distância dos grandes centros urbanos e longe do litoral.
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O Atlas Global da Poluição Luminosa, publicado em 2016 pelo Instituto de Tecnologia e Ciência da Poluição Luminosa (Stil) da Itália, mostrou que mais de 60% dos brasileiros não conseguem ver a Via Láctea no céu noturno. De acordo com o órgão, nas áreas em que existe poluição luminosa extrema, as pessoas não experimentam noites reais e veem apenas “uma espécie de crepúsculo eterno”. Silvia Carneiro, arquiteta e especialista em iluminação, explica que em São Paulo, por exemplo, o que é visto no céu à noite são os Starlinks (constelações de satélites), que são mais brilhantes, e não as estrelas de fato.
No Brasil, um dos poucos lugares em que é possível ver os astros plenamente é o Parque Estadual do Desengano (PED), no Rio de Janeiro. Entre o fim de 2021 e começo de 2022, o parque localizado no norte fluminense foi o primeiro local da América Latina a ser nomeado um Dark Sky Park, ganhando reconhecimento internacional como “uma unidade de conservação de qualidade excepcional para a observação de noites estreladas e um ambiente noturno protegido que valoriza seu patrimônio científico, natural, educacional, cultural e social”. O certificado foi emitido pela International Dark-Sky Association (IDA), a associação de “céu escuro” que surgiu nos Estados Unidos na década de 1980 questionando a poluição luminosa que afetava os observatórios astronômicos, mas logo se tornou um núcleo responsável por divulgar os desdobramentos deste problema na natureza.
Carlos Dário, gestor do Parque do Desengano – que é administrado pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) –, conta que a busca pela certificação da IDA começou no fim de 2019, após a observação de um astrônomo na região. Marcelo Oliveira, professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UEMG), fazia um estudo de astronomia nas imediações quando percebeu o potencial do Parque e sugeriu a busca pelo certificado.
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“As condições naturais nós já tínhamos”, conta Dário. “O parque fica no norte fluminense, onde a densidade demográfica e as cidades são pequenas. Os municípios próximos ao PED (Santa Maria Madalena, Campos dos Goytacazes e São Fidélis) estão longe, e a poluição luminosa que eles emitem é baixa.”
A certificação
O processo de obtenção do título durou cerca de dois anos. Isso porque a IDA solicita uma série de adequações àqueles que pleiteiam o título de Dark Sky, sejam eles parques, reservas ou comunidades. Primeiro, a Associação aprovou os documentos e a apresentação do Parque com as especificações técnicas de qualidade do céu noturno da área. “Uma das avaliadoras, inclusive, disse que o nosso estudo seria referência para qualquer outro parque da América Latina que pleiteasse esse título”, conta Dário.
Em seguida, a IDA avaliou as informações sobre os compromissos assumidos pelo PED em atividades voltadas à redução da poluição luminosa – tanto no Parque quanto nas regiões próximas –, não somente para permitir uma melhor observação do céu noturno, mas também para proteger a fauna local. “O ideal é usar uma luz que não afete o meio ambiente, que tenha um comprimento de onda menos nocivo aos animais”, explica Silvia, que faz parte do Comitê Internacional da IDA no Brasil. “A luz artificial impacta na produção fisiológica dos seres humanos, principalmente na questão do sono, mas, no caso dos animais, os efeitos se estendem até o ciclo de reprodução.”
Alguns dos animais mais afetados pela poluição luminosa são as aves. Muitos animais, como várias espécies de pássaros, migram de acordo com a posição das estrelas e têm a migração impedida quando não conseguem enxergar os astros com nitidez. “As aves têm, além de sistema visual, uma glândula pineal que funciona de forma semelhante a uma bússola. Elas acompanham as estrelas para seguir o calor e fazer seus movimentos migratórios, indo para o hemisfério norte quando é verão por lá e voltando para o sul quando as temperaturas aumentam aqui”, explica a especialista.
Após a adequação da luz artificial, o Parque do Desengano também precisou desenvolver planos educativos sobre poluição luminosa para seus visitantes, fomentando o astroturismo da região. Agora, além das trilhas e atividades diurnas, a observação noturna abre uma nova possibilidade para ampliar o contato da população com a natureza, conforme conta o presidente do Inea, Phelipe Campello.
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Ashley Wilson, Diretora de Conservação da IDA, também ressalta o impacto que teve a substituição de 100% da iluminação existente em instalações externas, que agora são compatíveis com o céu escuro e com soluções sustentáveis. “Enquanto o parque ostenta céus escuros requintados, a equipe também certificou-se de se conectar com as comunidades locais para se inspirar no céu noturno”, afirma.
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Astroturismo no Parque Estadual do Desengano: o céu que cobre todos nós
Para o gestor do Parque, a certificação internacional é muito mais que um título. Dário interpreta o reconhecimento como uma garantia de que o céu noturno observado no PED é o mesmo que nossos antepassados admiravam antes da urbanização do território fluminense. Para ele, a certificação acrescentou uma nova camada de proteção ambiental no Parque – unidade de conservação mais antiga do estado do Rio de Janeiro – e trouxe o reconhecimento internacional como uma IBA (Important Bird and Biodiversity Area), ou seja, uma área prioritária para conservação da biodiversidade de aves, pela BirdLife International. O PED totaliza 22.400 hectares de área de Mata Atlântica, abrigando 82 espécies de mamíferos, 494 de aves, 56 de répteis, 73 de anfíbios e mais de 1.000 tipos de flora.
O Parque Estadual do Desengano agora faz parte da lista de mais de 190 lugares “dark sky” reconhecidos pela IDA, que demonstram apoio da comunidade para a defesa do céu escuro e se esforçam para proteger a noite da poluição luminosa, além de impulsionarem o astroturismo.
Astroturismo no Brasil
Mesmo sem reconhecimento internacional, alguns outros locais brasileiros também podem ser bons pontos de observação das estrelas. Sofia Fonseca, astrofotógrafa amadora e graduanda em astronomia na Universidade Federal do Rio de Janeiro, compartilha algumas dicas de locais que já visitou e fotografou, e que possuem um lindo céu estrelado à noite:
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1) Chapada dos Veadeiros (GO)
“Esse parque nacional possui um céu na Escala de Bortle que varia de 1 a 3, o que é muito bom.”
2) Parque Nacional do Itatiaia (SP, RJ e MG)
“Localizado na rica Serra da Mantiqueira, esse parque está a cerca de 2.000 metros de altitude e tem um dos melhores céus da região sudeste.”
3) Pedra da Macela (RJ e SP)
“É um lugar ideal para acampar e ver tudo que o céu pode oferecer.”
4) Parque Pico das Cabras (SP)
“Mesmo localizado próximo a Campinas, esse lugar exibe um céu fantástico. Lá, inclusive, está o Museu Aberto de Astronomia (MAAS), onde tem um planetário e observação dos astros a olho nu e com telescópio.”