Em um trecho de seu novo livro, In Praise of Walking [Em Homenagem à Caminhada,
em tradução livre], o escritor Shane O’Mara examina a ciência e os benefícios da caminhada, que os seres humanos tão frequentemente subestimam. Confira:
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Mover-se pelo mundo é parte essencial da experiência humana. Movimento, e mais especificamente frequentes caminhadas, é ótimo para o corpo e a mente. Quero ir muito além dessas afirmações simples e relativamente incontestáveis e investigar os benefícios mais amplos de andar – quero entender como caminhar afeta o humor, a saúde mental e a função cerebral. Pessoas que caminham regularmente (e eu me incluo aí) alegam que, privados por apenas alguns dias da possibilidade de andar, se sentem letárgicos, cansados e muitas vezes um pouco tristes. A cura autoadministrável é simples: sair para dar uma boa andada.
Existe agora um conjunto cada vez maior de evidências científicas que apoiam esse sentimento e indicam que caminhar, especialmente em doses regulares e em lugares com natureza, realmente faz a gente se sentir melhor. Pense em todas aquelas caminhadas longas, em climas chuvosos, que talvez tenham parecido uma roubada na hora, mas no que no final te deixaram superfeliz. Uma bela caminhada melhora a forma como você se sente e muito mais. Hipócrates afirmou que “andar é o melhor remédio”.
Ainda assim, em nosso mundo moderno, a maioria de nós passa o dia inteiro sentada dentro de casa, o que pode trazer consequências terríveis para nossa saúde e nosso bem-estar. Passamos menos tempo ao ar livre do que em qualquer outro momento da história da humanidade. Um grande estudo feito nos Estados Unidos mostrou que as pessoas gastam 87% do tempo em ambientes artificiais (casas, escritórios, lojas e outros edifícios). Alguns até afirmaram – o que me parece um pouco exagerado – que “ficar sentado é o novo tabagismo”. O sentimento por trás dessa afirmação é claro: nossos corpos foram feitos para se movimentar regularmente. A vida sedentária é fundamentalmente prejudicial, levando ao declínio do volume muscular e da força. E mais: longos períodos de inatividade também trazem prejuízos para o cérebro.
Uma pesquisa interessante descobriu recentemente que a falta de atividade física está associada até a uma mudança de personalidade, e com isso quero dizer uma mudança para pior. De forma geral, níveis mais altos de sedentarismo se mostraram associados a mudanças em três dos “Cinco Grandes” (Big Five) fatores de personalidade (abertura ao novo, capacidade de autocontrole, habilidade de interação com as pessoas, empatia e instabilidade emocional, ou OCEAN na sigla em inglês). Menos atividade física foi relacionada com declínios na capacidade de se abrir aos outros, extroversão e empatia, sugerindo uma piora de personalidade no longo prazo. Mesmo níveis mínimos de atividade mostraram ter um efeito moderador nessas mudanças.
O caminho que canaliza essas mudanças negativas ainda não está claro, mas provavelmente envolve os aumentos usuais de doenças e a falta de bem-estar associados ao sedentarismo, transformações nas funções cognitivas em geral e talvez até mudanças de humor. Considerando o que já sabemos, é altamente provável que uma mudança comportamental simples – como andar – seja uma forma viável de reverter impactos negativos de personalidade resultantes de uma vida parada. Simplesmente ficar em pé causa mudanças imediatas na pressão e no fluxo sanguíneo e na velocidade com que consumimos energia e produzimos calor (nossa taxa metabólica).
Caminhar traz mudanças abrangentes nos sistemas do corpo e do cérebro, da produção de novas moléculas até o comportamento. Caminhadas regulares em ritmo firme são uma forma simples de exercitar nossa parte cardiovascular e trazem grandes benefícios para o eixo cabeça-coração, porque 20% da emissão de sangue do coração são dirigidos para nosso cérebro, sempre faminto por oxigênio e energia. Efeitos similares acontecem no sistema digestivo, que também é louco por oxigênio e energia. A cura está bem na nossa frente: levantar e andar.
Andar é uma coisa. Onde andamos é outra. Conforme mais e mais de nós vivemos em cidades, espaços verdes se tornam cada vez mais essenciais para nosso bem-estar. A arquitetura, especialmente em regiões de clima mais frio, tem demonstrado historicamente levar isso em consideração. Claustros e pátios internos em edifícios universitários, monastérios e outros locais permitem que as pessoas andem fora do prédio enquanto ainda se mantêm protegidas do frio e da chuva. Claustros são às vezes mencionados por seu propósito de ritual e procissão. E, claro, eles geralmente são construídos ao redor de um jardim, garantindo que um elemento de natureza (ainda que domada) esteja no centro do caminhar.
Jardins murados, desde os tempos antigos, são outra forma de trazer a natureza para dentro do perímetro de uma construção e, assim, garantir caminhadas seguras ao ar livre. No livro clássico O Decamerão, Giovanni Boccaccio escreve sobre um certo jardim “em cujos limites externos e pelo centro corriam largos caminhos retos como flechas, cobertos por pérgolas de parreiras que davam todos os sinais que estariam repletas de uvas naquele ano… As laterais desses caminhos eram quase fechadas com jasmins e rosas vermelhas e brancas, de forma que era possível caminhar no jardim em uma sombra perfumada e deliciosa, intocada pelo sol, não apenas de manhã cedo, mas quando o sol estava alto no céu”.
O design moderno de edifícios incorporando claustros, toldos, pátios e outras características poderia facilmente tornar a caminhada ao ar livre e exposta à natureza mais possíveis. Da mesma forma, caminhadas indoor em torno de átrios com plantas pode oferecer às pessoas essa sensação de conexão com o mundo natural. Vistas das janelas que proporcionem vislumbres do céu e de árvores também podem melhorar o bem-estar significativamente. Ainda assim, essa nossa necessidade de passar tempo ao ar livre, em contato com a natureza, é algo que parecemos subestimar sistematicamente.
Isso foi mostrado de forma clara por um estudo feito em Ottawa, no Canadá. A capital canadense está sujeita a extremos climáticos, com temperaturas de mais de 30°C no verão e que chegam a 20°C negativos no inverno. Uma parte significativa do grande campus da Universidade Carleton, que fica na cidade, está conectada por um extenso sistema de túneis subterrâneos para permitir que os estudantes possam manter o hábito da caminhada quando o clima está inclemente.
Usando essa rede de túneis, psicólogos compararam o efeito de caminhadas em locais com contato com a natureza versus em locais fechados. Eles pediram a 150 participantes para caminharem as mesmas distâncias entre dois locais do campus, alguns pelos túneis e outros ao ar livre, ao lado de um rio em um espaço urbano cheio de árvores, plantas e outros elementos naturais.
Antes de começarem, todos os participantes tinham que dizer, usando uma escala de notas, como estavam se sentindo e como achavam que iriam se sentir depois de 15 minutos de caminhada. Os participantes da caminhada externa subestimaram consideravelmente como se sentiriam, em comparação com o grupo da caminhada indoor. O efeito da caminhada no ambiente urbano foi irrefutável. Houve uma melhora de cerca de 30% nas notas dadas pelos participantes ao próprio estado de espírito em relação ao grupo que fez a caminhada interna. Esse estudo também demonstra um problema persistente: nós, humanos, somos ruins em prever como qualquer atividade tende a influenciar nossos sentimentos.
Mas o que há na natureza que faz com que a gente se sinta melhor? Andar por áreas verdes e arborizadas é algo que os humanos fazem desde tempos imemoriais. Algumas culturas veneram essa experiência: os japoneses, por exemplo, têm a gloriosa tradição do shinrin-yoku, ou banho de floresta – a prática de caminhadas em florestas em busca das propriedades relaxantes de se estar conectado e totalmente imerso nas imagens, sons e sentidos da natureza. Banhos de floresta são uma manifestação importante de algo que parece ser universal na experiência humana: a veneração da natureza como fundamental para nossas vidas, presente desde antigas teorias panteístas, que imaginam que espíritos habitam árvores, rochas e afins, passando por religiões que cultuam a Mãe Terra ou divindades (como a deusa andina Pachamama) até a ideia contemporânea de Gaia e a proposta do cientista James Lovelock de que devemos considerar o planeta e toda a vida que existe nele como um ecossistema único e autorregulável.
Evidências científicas também corroboram nossa sensação intuitiva de que a exposição
regular à natureza tem efeitos positivos, mensuráveis e duradouros na saúde humana e que deveriam ser encarados pelos governos como algo semelhante a suprir água limpa, luz elétrica confiável, vacinação ou hospitais públicos. Isso pode ser comprovado medindo os níveis de estresse das pessoas antes, durante e depois de suas interações com a natureza.
O hormônio cortisol é liberado na presença de fatores estressantes, com efeitos potencialmente negativos e positivos. No curto prazo, ele ajuda na adaptação, mobilizando recursos para superar a situação de estresse. Porém a liberação crônica e sustentada de cortisol leva a uma variedade de problemas, do enrijecimento de nossas artérias a efeitos malignos em nosso humor e memória.
Um estudo em uma área carente de Dundee, na Escócia, examinou como a quantidade de áreas verdes em uma vizinhança pode afetar os níveis de estresse dos residentes do bairro. Isso foi medido tanto pelo nível percebido de estresse (em outras palavras, pela descrição feita pelos próprios moradores sobre como se sentiam) quanto pelo nível de cortisol, que pode ser medido por exames de sangue e saliva. A concentração de cortisol em nossa saliva varia ao longo do dia, chegando ao pico no começo da manhã e diminuindo mais perto da noite. Pessoas com alto nível de estresse não apresentam essa queda conforme o dia chega ao fim. Na pesquisa feita em Dundee, os cientistas descobriram que essa redução é nula, ou quase nula, em uma população urbana que não tem acesso habitual a áreas verdes. Essa correlação coincide com os resultados de outros estudos similares que sugerem que a exposição à natureza tem efeitos importantes na saúde e no bem-estar humanos.
No entanto é importante considerar como as pessoas usam as áreas verdes disponíveis. Elas as visitam regularmente? Utilizam-nas para caminhadas com amigos, para passear com os cachorros, levar as crianças para brincar? É aqui que precisamos de pesquisas em maior escala, preferencialmente que tentem randomizar as condições de tratamento para que algum grau de causalidade possa ser entendido. Seus níveis de estresse estão mais baixos porque você está exposto à natureza ou há algum outro fator?
Concluir se a exposição à natureza tem relação de causa e efeito em nos fazer sentir melhor requer estudos que variem a dose de natureza a que você está exposto: é preciso pouco, ou muito, e com que frequência? Os efeitos podem ser fortes, fracos, sutis ou inexistentes. E também pode ser que uma experiência mais longa em áreas naturais envolvendo trekkings extensos seja uma forma viável de tratamento para depressão (pelo menos em suas formas mais leves) e talvez para outras doenças relacionadas a estresse e ansiedade. Essa ideia nunca foi testada em larga escala.
A “Teoria da Restauração da Atenção” é a ideia de que o ambiente natural possui profundos efeitos restauradores e ajuda significativamente a manter e fomentar uma forte sensação subjetiva de bem-estar. Segundo psicólogos, um ambiente natural deve ter três elementos críticos para ser totalmente restaurativo: trazer a sensação de se estar fora de sua vida normal e de seu ambiente cotidiano, conter elementos visuais e sensoriais que sejam fascinantes de alguma forma e ser vasto. As crescentes pressões da vida moderna tendem a aumentar a fadiga mental, mas experiências restauradoras em ambientes naturais podem diminuir isso.
Em um estudo feito com 4.255 participantes no Reino Unido, pesquisadores investigaram esse fenômeno de “restauração”, definido como sentimentos de calma e relaxamento, uma semana depois de uma visita a um ambiente natural. A reparação percebida foi muito alta, com uma média de 4 em uma escala de 1 a 5. Havia uma hierarquia entre os locais, com ambientes litorâneos proporcionando a maior sensação de descanso, seguidos por áreas rurais, e com parques urbanos em terceiro. Essa hierarquia talvez devesse ser tratada com certa precaução – ela deriva de uma média geral, e muitos parques urbanos foram classificados como tão restaurativos quanto vastas áreas rurais.
A maioria dos participantes com maior nível socioeconômico (53%) havia estado em um ambiente de natureza na semana anterior, enquanto apenas uma minoria (31%) dos níveis mais baixos fez o mesmo. O grupo mais rico, claro, tem em média melhor educação, saúde, acesso a alimentação etc. A diferença de sensação de restauração encontrada entre diferentes quantidades de tempo passados em vários ambientes – a praia, o interior, os parques – não foi muito grande, e o estudo não controlou quais atividades podiam ser feitas em diferentes áreas. O que está claro é que a forma como os parques são projetados é um fator vital: se ele é acessível, funcional e facilita diferentes atividades, será mais usado.
Espaços verdes urbanos podem ser usados muito além da caminha: para cultivar vegetais, passear com o cachorro, praticar esportes. Acesso fácil à natureza é muito importante para indivíduos, famílias, grupos sociais e para a sociedade como um todo, e áreas verdes bem projetadas podem ser um bom substituto, ou reproduzir de forma importante, os efeitos de se estar fora da cidade. Parques, por exemplo, podem oferecer à fauna urbana (entre ela insetos e pássaros) áreas mais selvagens em vez de apenas gramados cuidadosamente aparados. Da mesma forma, as trilhas que existem nesses parques devem, o máximo possível, seguir as ondulações naturais do ambiente e não os caminhos desejados pelas pessoas.
Também já foi provado que o efeito positivo no humor depois de se passar um tempo ao ar livre se aplica a uma variedade de pessoas de diferentes idades e gêneros em todo o mundo. Talvez o mais importante seja que o impacto da exposição à natureza é comparável a outros fatores que afetam a felicidade dos indivíduos, incluindo aí renda, educação, religiosidade, estado civil, voluntariado e aparência física.
Sair de casa para caminhar é algo fácil de se fazer. As evidências sugerem que a caminhada em áreas arborizadas têm um impacto de longo prazo na felicidade e no bem- estar, e por isso deveríamos estar encorajando todo mundo a andar sempre, de preferência perto da natureza – mesmo que na pracinha perto de casa.
Trecho do livro In Praise of Walking: A New Scientific Exploration, de Shane O’Mara