Andy Singer desenha desde 1992. Apesar dos seus cartoons só terem sido publicados no Brasil recentemente, a arte desse norte-americano é conhecida há tempos por cicloativistas e por quem já participou das Bicicletadas, a versão nacional da Massa Crítica, ou Critical Mass, passeatas que pedem mais segurança no trânsito e estrutura cicloviária. Suas criações se espalham em panfletos, camisetas e lambe-lambes distribuídos nas ruas. Na semana do Dia Mundial Sem Carro, relembrar esse papo com Andy Singer vem bem a calhar.
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Andy esteve no Brasil em 2018 para lançar Cartoons – Atropelando a ditadura do automóvel (editora Autonomia Literária, R$ 30). Você também pode baixar o livro de forma legal e gratuita clicando aqui. Essa entrevista foi feita na época, e se mostra tão assustadoramente atual que decidimos republicá-la. É urgente nos liberarmos da dependência do carro, e o Dia Mundial Sem Carro é uma oportunidade de experimentar essa possibilidade. Motivos não faltam, como demonstra esta entrevista.
O cartunista trouxe seu próprio selim na mala, e enfrentou de bike o trânsito de São Paulo e de Salvador, onde participou do Fórum Social Mundial. “Sou velho, preciso ficar confortável”, diverte-se Andy, hoje com 56 anos. Em toda sua vida, nunca teve um carro, mas coleciona uma verdadeira esquadra de bicicletas. “Além da minha e a da minha mulher, temos um carrinho para fazer compras e outras bikes para as visitas”, conta, sobre sua casa em Minnesota, nos Estados Unidos.
Não é preciso ser um cicloativista para curtir os cartoons de Andy. Todos nós, apaixonados por bike de uma ou outra forma, podemos nos identificar com sua arte e reivindicações de um mundo menos dependente de veículos. Conversamos com o artista sobre sua carreira, sobre como fazer a diferença para tornar cidades mais humanas e pedaláveis e como fazer da bike uma ferramenta essencial para retomar o contato com o outro e com nosso entorno.
GO OUTSIDE: Como você virou um cartunista tão interessado em bicicleta, mobilidade urbana e crítico da “carrocracia”?
ANDY SINGER: Eu sempre gostei de desenhar. Nos Estados Unidos, isso não é uma profissão muito rentável. Logo eu não tinha dinheiro para comprar um carro. Uma parte da solução era ir de bike para cima e para baixo. Isso acaba te mostrando como tudo é muito insano. Quando me formei, em 1989, voltei para a Califórnia, onde vivi minha infância. Nessa época, não havia ciclovias nem nada de infraestrutura. Eu fui morar em um cruzamento de rodovia, pois era bem mais barato – ninguém quer viver em um lugar assim. Isso foi despertando meu interesse e meu olhar.
O que mais te marcou e te influenciou naquela época?
Conheci minha mulher ali. Ela era uma vizinha. E uma vizinhança de aluguel barato, no cruzamento de duas rodovias, não é exatamente o lugar que você espera conhecer a pessoa com quem vai casar [risos]. Naquela época, li o livro The Power Broker: Robert Moses and the Fall of New York [editora Knopf, sem edição no Brasil], do jornalista norte-americano Robert Caro. É uma biografia do Robert Moses, um grande construtor de rodovias e avenidas de Nova York. Ler essa biografia, andar de bike por aí e morar nesse trevo de rodovia me fez perceber como carros são horríveis.
Você já pedalava antes?
Sim, desde pequeno. Sempre gostei de bicicletas. Elas são sinônimo de liberdade quando você é criança e não dirige. Eu me lembro exatamente de quando aprendi. Estava com minha mãe: ela segurou a bike por trás e pegamos embalo até ela me soltar. Bom, na verdade, não deu muito certo. Mas alguns dias depois meu pai fez a mesma coisa e, dessa vez, funcionou. Só faltava encontrar o ponto de equilíbrio. Lembro desses flashes de memória bem claros. Foi incrível. Nunca mais parei de pedalar.
Como era a sua primeira bike?
Era uma bicicleta de menina, azul, de uma das filhas do nosso vizinho. Ela não usava mais e me deu de presente. Provavelmente era uma bicicleta pequena, mas eu me recordo dela como algo enorme. Afinal, quando você é criança, tudo é grande.
Seus pais já eram envolvidos com política nessa época…
É verdade, eles eram sim. Tanto nos Estados Unidos como no Brasil há um partido grande de centro-esquerda, que não é exatamente esquerda de verdade. Isso irritava meus pais nos anos 1950 – e me irrita até hoje. Eles faziam parte de um grupo democrata em Nova York e passaram uns dez anos tentando trazer mais gente para as pautas progressistas na política local. Até que eles conseguiram alguma coisa, mas nenhuma mudança gigantesca.
Como você analisa essa sequência de ondas políticas, em um momento incentivando transporte público e ciclovias, em outro agindo de forma contrária?
É algo horrível e deprimente. Mas nunca sabemos como o futuro vai ser. Liberdade e democracia não são coisas que você ganha ou tem garantidas. É preciso cuidar para mantê-las. Ver retrocessos não muda meu trabalho, mas machuca o otimismo, com certeza. Lembro de uma ciclovia em especial, no West Side de Manhattan, que segue o rio Hudson e se prolonga por cerca de 160 quarteirões. Quando eu era criança, ela não existia, e Nova York não era nenhum pouco bike friendly. Demorou 20 anos para o governo tirar esse projeto do papel, mas uma hora aconteceu.
E qual a reflexão que você faz disso?
As pessoas se acostumam com as coisas que elas gostam e usam. Transporte público é uma delas. Se a coisa funciona bem e, por algum motivo, qualquer infraestrutura é tirada ou diminuída depois, as pessoas ficam loucas. Uma vez que você estabelece um padrão, não dá para andar para trás. E é inevitável falar de combustível. Os preços do petróleo estão mais baixos por causa do fraturamento hidráulico [técnica que permite extrair combustíveis fósseis líquidos e gasosos do solo], mas os combustíveis fatalmente vão ficar mais caros. Logo os preços vão subir de novo. Isso incentiva o uso de transporte público em muitos lugares e, de quebra, o uso da bicicleta.
Quanto tempo sua atividade ativista em prol da bicicleta consome do seu dia atualmente?
Tempo demais! Quando você vê uma ciclovia por aí, pode ter certeza de que muita gente sentou a bunda na cadeira por horas em reuniões e reuniões para fazer essa ciclovia acontecer. Qualquer coisa legal que existe na face da Terra, aliás, precisa de um monte de reuniões com gente lutando por isso.
E o que está por trás da engrenagem que faz com que a cultura do automóvel seja tão forte?
Nos Estados Unidos, a maior forma de financiamento de estradas e transportes em geral é a taxa do combustível. Isso é determinado por lei. Em vários Estados, esse dinheiro é dedicado à construção de estradas. Você poderia investir parte da verba em transporte público, infraestrutura cicloviária ou até em habitações populares perto de onde estão os empregos para evitar tanto trânsito e deslocamentos. Só que, por lei, você não pode. Mudar isso é mais fácil em alguns Estados que em outros. A lei federal já foi alterada e hoje destina uma porcentagem mínima para pedestres. É insignificante, mas pelo menos está lá. É por essas e outras que as coisas estão assim.
O apelo dos carros é muito forte ainda no Brasil. Como você acha que se constrói um diálogo com essa mentalidade?
Ao ver como a mídia era hostil a bicicletas, pedestres e transporte público, algumas pessoas começaram a dizer: “Precisamos da nossa própria mídia”. Nos EUA, criamos nossa própria rede de blogs, o Streets.mn. Sabemos que os repórteres estão sobrecarregados, que precisam escrever muito todo dia, então tentamos facilitar para eles o acesso à informação. Muitas vezes a mídia usa blocos inteiros de material que disponibilizamos pela rede de blogs. Outro jeito é fazer vídeos. Tenho amigos que fizeram um vídeo mostrando como era difícil atravessar uma rua onde o trânsito era uma merda e postaram no YouTube, com link para o blog. Produtores de televisão acabaram vendo e se interessaram pela pauta.
Seus cartoons também fazem isso, provocando, brincando e inspirando. De onde vem a inspiração?
De tudo, da vida diária. Andar de bicicleta em uma cidade como São Paulo é perceber que se está na Matrix, como no filme: você vê sua cidade como ela é, inclusive a parte horrível. Começa a enxergar outras nuances, de jeitos diferentes, simplesmente fazendo as mesmas coisas que antes. Percebe que seu olhar está mudado e sente a necessidade de colocar isso para fora. No meu caso, eu desenho.
Sua visão de mundo fica bem clara no seu trabalho. Você recebe mensagens de ódio?
Recebo, sim. O jornalismo tradicional está morrendo e está sendo substituído por blogs e material autônomo ou voluntário. Isso faz com que o conteúdo seja cada vez mais fragmentado, ou seja, acaba-se pregando para convertidos. Todo mundo fica na mesma bolha de pessoas que pensam como elas. Mas já publiquei meus cartoons em grandes jornais, e geralmente isso rende mensagens de ódio de alguns leitores.
Lembra de alguma história que te marcou?
Um jornal da minha cidade dá matéria de capa todo ano com o salão do automóvel local, porque a indústria automotiva é um grande anunciante. Teve um ano em que um dos repórteres queria fazer uma reportagem diferente e teve a ideia de ir ao salão com duas pessoas que detestavam carros – eu era uma delas. Ele conta que nunca recebeu tanto e-mail de ódio na vida dele. E, como você sabe, as pessoas dizem coisas horríveis na internet. Para mim, a internet é como estar dentro de um carro: você tem a sensação de que tudo bem fazer algo errado contra alguém porque vai conseguir se safar dali muito rápido.
Isso é parte da mágica da bike: ela te devolve o cara a cara, a mediação com outro ser humano…
Sim, é isso. Você vê as pessoas e a cidade. Simplesmente o ato de andar de bicicleta permite isso. Estar com pressa em um dia e notar que de bike chega mais rápido. E é exercício também. Eu detesto academia, então a bike me ajuda na hora de me exercitar. É simples: basta abrir mão do carro.
Você curte ver competições, como o Tour de France?
Acho legal, sim. Não curto tanto mountain bike como competição. Quando estou na trilha, quero curti-la no meu ritmo. BMX é legal, gosto de ver a molecada fazendo as manobras. Mas, antes de mais nada, eu gosto da bicicleta como uma solução ambiental, como exercício, como algo que te conecta com pessoas, o aspecto social dela. E como ela te coloca em contato com você mesmo, até de uma forma espiritual.
Acredita que pedalar como transporte sempre acaba sendo um ato político?
Não necessariamente. Eu sou muito questionado porque não dirijo, pois é essa a mentalidade vigente. Tenho carteira de motorista, mas nunca tive carro. Por outro lado eu já trabalhei dirigindo – fazia entregas de produtos de uma fazenda para mercados, de caminhão, três vezes por semana. Depois, ainda fui motorista em uma empresa.
E como você se sente como motorista?
Eu odeio dirigir e odeio o que dirigir faz comigo. Detesto quando estou preso no trânsito. Só gosto de dirigir carros antigos. Mas isso é o sentimento de curtir uma coisa clássica. E só. Quando tenho um carro na minha mão, eu fico ansioso e nervoso – você pode matar alguém com ele. É por isso que, além de incentivar as bikes, faço também “pedestreativismo”.
No fundo, a questão central é menos carros ou mais bicicletas?
Menos carros é mais importante, principalmente do ponto de vista do meio ambiente. Temos 1 bilhão de carros no mundo agora. Atingimos a marca do bilhão e temos gente demais, estamos nos aproximando das 7 bilhões de pessoas. Eu olho para bikes, planejamento urbano e para as perdas associadas ao carro e a resposta é: menos carros. Apesar do meu amor por bikes.