Desde o desastre de 1996 que deu origem ao livro No Ar Rarefeito, escalar o Monte Everest tornou-se muito mais seguro, com melhoras sensíveis na previsão do tempo e a chegada de helicópteros de resgate em altitude. Então por que as expedições no Everest ainda levam a tantas mortes?
Três pessoas já morreram tentando escalar a maior montanha do mundo só em 2021. No ano de 2012, dez pessoas também perderam a vida no local. Na época, a mídia internacional aproveitou as mortes como a prova de uma constatação recorrente: a de que o cenário de escaladas no Everest estava fora de controle.
Comparações entre a tragédia de 2012 e aquela que tirou a vida de cinco clientes e três guias em 1996 foram feitas por comentaristas de jornais e TVs mundo afora. Até mesmo na comunidade de montanhistas, que ainda está profundamente dividida com as várias versões do episódio de 1996, as pessoas começaram a perguntar: “Será que algo mudou desde então?”.
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No ocorrido de 2012, eu estava no Everest com uma equipe de alpinistas. Ao contrário de Jon Krakauer, que escreveu o livro da tragédia de 1996, eu não estava tentando escalar a montanha, o que me deixava livre para passear pelo campo base colhendo informações para reportagens sobre a temporada.
O que eu vi foi uma situação que lembrava à de 1996 em alguns aspectos, mas, na maioria deles, não tinha nada a ver com aquela época. Como aconteceu 25 anos atrás, algumas das equipes de 2012 perderam um tempo precioso esperando em longas filas na chamada “zona da morte”, acima dos 8 mil metros, e chegou ao cume muito tarde no dia. Mas as vítimas de 2012 não foram pegas por uma insana e repentina tempestade. Suas mortes foram resultado de exaustão, escalada muito lenta, ignorância frente aos sintomas de mal de altitude agudo e recusa em dar meia-volta. Ninguém morreu em decorrência da roleta russa da montanha, como quedas de rochas, avalanches ou tempestades.
Isso é importante, pois aponta para uma nova situação no Everest: a morte em altitude transformada em rotina. Na maioria dos casos, as pessoas que atualmente controlam o “show” na face sul do Everest – os guias profissionais, sherpas escaladores e oficiais nepaleses responsáveis pelas autorizações para se subir as montanhas do país – fazem um trabalho excelente levando gente ao cume e, depois, de volta ao campo base. Na verdade, uma semana depois do infortúnio de 2012, mais uma centena de pessoas chegaram ao topo do mundo em um único dia de céu azul, sem nenhuma morte ou ferimento sério.
Pré-requisitos para escalar o Everest
Mas isso não significa que o Everest estava sendo conduzido de maneira racional. Até 2019, o governo nepalês não falava de pré-requisitos de experiência para quem queria subir a montanha, tampouco regras que definiam quem podia organizar as escaladas. Muitos dos melhores alpinistas do mundo ainda apareciam no campo base toda primavera. Mas, cada vez mais, também surgiam pessoas despreparadas que decidiram escalar e que achavam que o Everest é o lugar mais empolgante para se começar nesse esporte. E, enquanto algumas das agências mais bem-estabelecidas se recusam a levá-los, os novatos eram ativamente seduzidos por operadoras iniciantes com preços convidativos, que não recusam dinheiro.
Era uma combinação de fatores que não precisava de uma tempestade para matar montanhistas.
Somente em 2019, após uma temporada com número recorde de montanhistas, muitos acidentes e mais de 10 mortes, o governo do Nepal anunciou novas regras para escalar o Everest. Um dos pré-requisitos seria já ter escalado ao menos um pico nepalês acima de 6.500 metros. Um atestado de boa saúde e condicionamento físico também passaria a ser necessário, além do acompanhamento de um guia nepalês treinado.
Em março de 2020, porém, o governo disse que as novas regras não entrariam em vigor na temporada que começaria em abril. Kedar Bahadur Adhikari, secretário do Ministério do Turismo do Nepal, disse que as regras ainda não haviam recebido aprovação de vários escritórios do governo.
Um mês depois, em abril de 2020, as expedições ao Everest foram suspensas devido à pandemia da Covid-19. As escaladas feitas pelo lado do Nepal foram retomadas somente em abril deste ano.
Temporada de 2021
Com a reabertura do Everest, o governo do Nepal finalmente propôs novas regras para os alpinistas. Foi exigida a contratação de seguro para os sherpas e outros trabalhadores da expedição e um plano de retirada em caso de emergência e de coleta do lixo gerado, além das burocracias e autorizações do governo.
Boletins meteorológicos
Outro motivo que causava muitas mortes no Everest era a falta de previsões meteorológicas. A multidão nos dias de cume hoje em dia acontece por uma razão óbvia: os boletins meteorológicos são exponencialmente melhores do que os de 1996. “Quando eu guiava no Everest no começo dos anos 90, não havia boletins meteorológicos que dissessem mais do que ‘tempo chuvoso no Himalaia’”, diz Todd Burleson, proprietário de agência que guiou clientes na via do Colo Sul entre 1992 e 1996.
Há 25 anos, como relatou Jon Krakauer, o líder de expedição Rob Hall fez uma reunião no campo base com outros guias, “esperando evitar engarrafamentos na aresta do cume”. Rob guiava Jon Krakauer e morreu naquela primavera, junto com seu amigo Scott Fisher, proprietário da Mountain Madness. Ele escolheu a data do dia 10 de maio sem saber Quando foi a última morte no Everest?da entrada de ventos, baixas temperaturas ou tempestades. Segundo escreveu Krakauer, Rob simplesmente ponderou que, das quatro vezes em que fez cume, “duas delas foram no dia 10 de maio”.
A situação ficou radicalmente diferente nos últimos anos. Cada dia que o montanhista David Morton, da First Ascent, não estava “lá em cima” na montanha em 2012, ele caminhava dez minutos até um morrinho de pedra onde havia sinal 3G e baixava o último boletim meteorológico da empresa suíça Meteotest.
Este é o lado bom das previsões mais precisas. O lado ruim aparece quando a multidão capta a informação e entope a via. Em 2012, havia centenas de montanhistas com autorização, e apenas duas janelas de tempo para se chegar ao cume no lado sul.
Agências não confiáveis e as mortes no Everest
Muitas mortes do Everest também acontecem quando clientes escolhem agências não muito confiáveis. É difícil apontar quais operadoras que vendem pacotes de escalada da montanha mais alta do mundo são realmente perigosas, e quais simplesmente tiveram azar. Há mais ou menos uma dúzia de empresas que se encaixam na categoria de operadoras baratas de Katmandu. Em 2012, a Thamserku foi a única que conseguiu não perder nenhum cliente ou sherpa. A Himex e a Peak Freak – que não são baratas – também perderam sherpas.
Como sugerem os nomes de algumas empresas, várias começaram como operadoras de trekking. Mas, na primeira década deste século, vendo operadoras ocidentais bem-sucedidas usando sherpas como guias – uma medida econômica, já que os sherpas não precisam pagar autorização para escalar –, elas decidiram ir atrás de seu quinhão nos lucros. Em vez de simplesmente oferecer a logística para as expedições profissionais ao Everest, como a Asian Trekking vem fazendo desde 1982, começaram a vender viagens guiadas. Das centenas de sherpas no Everest, apenas um punhado está realmente qualificado para guiar, enquanto outros são apenas montanhistas fortes. Mas os potenciais clientes raramente conseguem distinguir quem é quem.
Relação com os sherpas — e preconceito
Há duas questões em tudo isso: a primeira é a proliferação de operadoras iniciantes. A segunda, ponto mais sensível dada a localização do Everest, é a crença de que os sherpas não são capazes de guiar ocidentais sozinhos.
Uma pessoa que entende as duas culturas é Dawa Steven, cujo pai, Ang Tshering, criou a Asian Trekking oferecendo a logística para o Everest em 1982 (o pai de Dawa Steven é sherpa, sua mãe é belga e ele foi educado na Escócia). “Este é definitivamente um problema na cultura sherpa”, concorda. “Os sherpas não são pessoas diretas, então é uma coisa que precisa ser treinada.” Mas ele se irrita com a sugestão de que os sherpas, poucos dos quais se formaram nas melhores escolas de guias, não conseguem convencer um ocidental a dar meia-volta. “Dizer isso é preconceituoso”, diz. “Às vezes não há diferença entre um sherpa e um guia ocidental.”
O problema vem quando se tenta descrever cada viagem para os clientes potenciais. Dependendo do operador, termos como guiada, não-guiada, guiada por sherpas, híbrida e apenas logística pode significar diferentes níveis de serviços de pessoas com graus de conhecimento absurdamente diferentes.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de novembro de 2012 por Grayson Schaffer)