Sabe aquele momento em que você e sua bike parecem um só corpo e tudo flui maravilhosamente? Esse fenômeno se chama estado de flow. Sabe quando você está alerta e consciente mas ao mesmo tempo relaxado e entregue? Esse estado ativo e meditativo acontece correndo, pedalando ou mesmo em tarefas como cozinhar. Em bom português, dá para chamá-lo de estado de fluxo.
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Entre as sensações comuns de quem experimenta o flow, está a de não perceber o tempo passar: 10 km, 20 km, 50 km voam. Você respira fundo e está na parada da via. Se você entrar em estado de flow na subida de uma serra, muito possivelmente vai encaixar a cadência perfeita, a respiração e o fluxo mental quase como um transe. A mente fica limpa, sem questionamentos. Simplesmente, tudo flui. Pedais e corridas longas, como randonées e maratonas, são cenários perfeitos para o estado de flow acontecer.
Sensação de performance sobre-humana
Outra sensação acompanha com frequência o estado de flow: a sensação de performance sobre-humana, recordes pessoais quebrados, tempo de aceleração ou desaceleração, ausência de dor, julgamento instintivo. E uma euforia saída de um lugar profundo, ao qual raramente temos acesso. É bem provável que Alex Honnold seja viciado em flow.
Você pode estar familiarizado com essa sensação. É o momento em que você se torna totalmente presente e intensamente focado. Você perde a noção de si mesmo, tornando-se um só com a bike, a via ou a onda. Você possui total controle ou domínio da situação. O tempo parece acelerar, ou desacelerar, dependendo do contexto. Você percebe a experiência como altamente recompensadora ou, em outras palavras, “é tão divertido que eu largaria meu emprego para pedalar assim o tempo todo”.
Alguns segundos de flow
A sensação, em geral, é breve, com duração de segundos apenas, mas de vez em quando pode durar minutos, até horas. É conhecida por muitos nomes – flow, mente zen e barato são alguns, por exemplo. Entretanto o termo mais adequado é estado de fluxo, cunhado em 1990 pelo pesquisador Mihaly Csikszentmihalyi, professor de psicologia da Claremont Graduate University, na Califórnia (EUA).
No estado de fluxo, condições psicológicas e fisiológicas se alinham para que consigamos atingir nossa performance máxima e uma experiência perfeita. Para um ciclista, o flow pode tornar um pedal inesquecível, em vez de apenas ótimo. E, se você entender como funciona, pode alcançá-lo com mais frequência.
Em seu livro “Flow: The Psychology of the Optimal Experience” [Flow: A Psicologia da Experiência Perfeita], Mihaly explica que o fluxo não acontece a menos que haja a perfeita equação entre desafio e habilidade. Quando os dois se juntam – digamos, em uma descida desafiadora, mas não assustadora –, o sistema nervoso é confrontado com mais estímulos do que pode lidar conscientemente. O córtex pré-frontal do cérebro, a parte do lobo frontal responsável por aptidões cognitivas como julgamento, planejamento, tomada de decisão e solução de problemas, apaga.
“Você troca processamento consciente por processamento inconsciente”, diz Steven Kotler, fundador e diretor do Flow Genome Project e autor do livro The Rise of Superman: Decoding the Science of Ultimate Human Performance [A Ascensão do Super-Homem: Decodificando a Ciência da Performance Humana Perfeita]. Em outras palavras, você processa tanta informação que não tem tempo para pensar, o que cria uma sensação de se estar totalmente absorvido na situação. Você para de questionar se vai se machucar caso erre a curva: você interrompe a “autoedição” que ocorre quando o córtex pré-frontal está no comando e passa a ficar 100% presente naquele momento.
Essa parte do cérebro também é responsável pela personalidade. Sem um prosencéfalo [parte anterior do cérebro] dizendo onde você termina e o resto do mundo começa, sua noção de si mesmo fica vaga. Viciados no estado de flow mencionam a sensação de se tornarem um com o universo: no caso dos ciclistas, eles contam que se transformam em um só corpo com sua bike.
Nesse estado alterado de consciência, você tem a oportunidade de obter sua performance máxima. A norte-americana Chris Berka, pesquisadora em neurociência e fundadora do Advanced Brain Monitoring – empresa que desenvolve equipamentos médicos para medir a atividade cerebral –, enxergou evidências disso em exames de imagem de atiradores, arqueiros (atletas de tiro com arco) e jogadores de golfe que experimentaram o tal fluxo. As regiões do cérebro associadas à criatividade acendem, e toda a atenção se foca no “alvo”. Os atletas tornam-se calmos e relaxados o tempo todo, como fica evidente pela diminuição da frequência cardíaca.
A química do flow
Há também neuroquímica poderosa por trás do estado de flow. Steven passou mais de uma década para consolidar pesquisas sobre a neurociência por trás do estado de fluxo. O que ele descobriu é que o organismo libera uma combinação potente de neurotransmissores que turbinam a performance quando estamos nessa condição.
Quando você diz a um colega no fim de um pedal suave “Caramba, parece que o tempo nem passou na descida”, é porque seu corpo estava produzindo norepinefrina, um estimulante que conduz o cérebro à exaustão. Isso permite que você processe muito mais informação em nível subconsciente, levando à percepção de alteração do tempo.
O organismo também libera dopamina. É ela que inunda o cérebro quando você ganha um beijo da pessoa amada ou vence um sprint, fazendo-o se sentir tão bem que tem vontade de repetir a sensação de novo. É também o que restringe seu foco e diminui o tempo de reação muscular. As endorfinas em ação agem como analgésicos naturais, substâncias químicas que permitem que você ultrapasse o desconforto e descubra reservas de energia em geral inacessíveis.
Durante o estado de fluxo, o corpo também produz um neurotransmissor que melhora o pensamento criativo e a habilidade de encontrar soluções inéditas para os problemas. Essa substância é chamada anandamida (da palavra em sânscrito para “felicidade”) e estimula o pensamento não linear – o tipo de inspiração que guia atletas de tirar o fôlego em eventos como o Red Bull Rampage ou permite que pessoas comuns como eu vejam novos rumos em descidas técnicas. A substância “gêmea” da anandamida – que se liga aos mesmos receptores cerebrais – é o tetra-hidrocanabinol, ou THC, componente da maconha que promove o “barato”.
À medida que o estado de fluxo perde força, o corpo dá um pequeno golpe final para confirmar a experiência incrível que você acabou de ter. Ele joga uma pitada de serotonina como a cereja do bolo. A serotonina torna o mundo sensacional – é um dos poderosos neurotransmissores responsáveis pela felicidade e deixa você com aquele brilho pós-euforia.
Esse coquetel de neurotransmissores liberados durante o estado de flow é melhor que qualquer antidepressivo, diz Leslie Sherlin, neurocientista e cofundador do SenseLabs, que cria programas e faz pesquisas em treinamento cerebral. Se pensarmos em todas as coisas que podemos colocar nos antidepressivos, a combinação seria essa. Leslie diz que isso torna o estado de fluxo “autotélico”, o que significa que nos faz sentir tão bem que procuramos por ele sem que haja qualquer motivação externa.
Depois que o estado de fluxo termina, o cérebro realiza um balanço, transformando aquela experiência desafiadora em seu novo estado “normal”. A curva que pareceu assustadora na hora? Não é nada demais. O fluxo estimula o desenvolvimento das habilidades. E, como a demanda inicial para o fluxo existir é o equilíbrio entre desafio e habilidade, não apenas seu arsenal de capacidades se expande após cada experiência de fluxo, como você continua buscando desafios cada vez maiores.
Quando nos aproximamos do estado de fluxo, o sistema adrenal começa a trabalhar, elevando os níveis de hormônios do estresse, como o cortisol. “Ficamos em alerta. Mas, se nos expomos demais a esse estado, sobrecarregamos nosso sistema”, ele fala. “A adrenalina inunda os receptores de modo que o organismo não consegue absorver os outros neurotransmissores [como dopamina e anandamida].” Quando você recebe uma grande quantidade de adrenalina, passa de “Consegui!” para “Preciso sair desta roubada!”. Por isso é importante que a situação seja desafiadora, porém não demais.
Uma recompensa?
Por que o estado de flow existe? A explicação remonta aos nossos tempos de predadores. “A paixão por exercícios aeróbicos está enraizada em nossos ancestrais”, diz David Raichlen, PhD, professor associado de antropologia na Universidade do Arizona (EUA), onde estuda a evolução da atividade física. “Existem fortes evidências de que a história da nossa evolução inclui altos níveis de exercício aeróbico, e isso está relacionado à recompensa que se tem durante a prática.” A pesquisa de David estabelece uma relação entre frequência cardíaca e liberação de endorfinas e neurotransmissores como anandamida: ela é mais profunda quando nos exercitamos entre 60% e 80% da nossa frequência cardíaca máxima. Dar tudo de si em um sprint não produzirá esses resultados, tão pouco sair para uma pedalada leve em volta do quarteirão. O “barato”, David explica, acontece mais frequentemente quando estamos realizando o que se chama de exercícios moderados.
Esse nível de esforço também é conhecido como tempo ou zona 3. Acontece quando a maioria dos ciclistas se sente mais feliz durante o pedal, para o desgosto da maior parte dos técnicos de ciclismo: é pesado demais para recuperação, mas não o suficiente para render ganhos significativos de condicionamento. De um ponto de vista evolutivo, porém, faz todo o sentido. No tempo em que éramos caçadores-predadores, aqueles que corriam mais se alimentavam melhor (e tinham mais chance de passar seus genes às gerações futuras).
O flow era como nosso corpo nos recompensava por perseguir a presa por horas, nos fazendo curtir a jornada. Recebíamos pequenas doses de dopamina para aproveitar a corrida, anandamida para ficar ligado na oportunidade de conseguir comida, norepinefrina para processar toda a informação em um nível super-humano e endorfinas para nos fazer correr além da fadiga. E quando abatíamos a presa recebíamos uma quantidade grande de dopamina para nos dizer “você fez um bom trabalho”.
Também é por isso que treinos em grupo geralmente negligenciam essa zona desmilitarizada de treino. Para muitos de nós, a prioridade em uma pedalada não é nosso condicionamento, mas nossa sanidade. Como os antigos caçadores -predadores, o grupo é nossa comunidade, trabalhando junto para conseguir a próxima refeição. Quando chegamos àquele sprint, liderados por nossos amigos ou adversários, a vitória nos leva milhares de anos atrás, ao entusiasmo que sentíamos quando capturávamos uma presa.
Como atingir o flow
Não existe um mapa ou um guia de como chegar ao estado de flow. Mas há algumas dicas para se seguir. O principal no fluxo é combinar a habilidade ao desafio, o que inunda o sistema com um pouco mais de informação do que você pode receber conscientemente. Estímulo em excesso causa ansiedade; falta dele, tédio.
Uma qualidade básica necessária para o fluxo é a novidade. Quando você realiza algo tão memorizado e familiar a ponto de ser fácil, elimina o flow. É preciso uma grande quantidade de estímulos para fazer com que o córtex pré-frontal desligue.
Outro elemento que ajuda é ter metas bem definidas e regras que deem uma noção de progresso e estrutura – como a linha de chegada de uma prova ou o fim de uma via de escalada. Você também precisa receber feedback claro e imediato para saber que está cumprindo o desafio – o que resulta naquela dose essencial de dopamina. O fluxo é uma recompensa ao trabalho bem-feito, porém você precisa saber que o seu trabalho é bom.
Experiências repetidas de flow levam à satisfação como nenhuma outra coisa. David acredita que os atletas são certeiros quando brincam que treinar é a terapia deles. “Exercícios aeróbicos são a melhor maneira de levar as pessoas à felicidade”, diz.
Cinco maneiras de chegar ao estado mental do flow
- FIQUE NA ZONA CERTA Um ritmo moderado te leva mais facilmente ao estado de fluxo. Isso equivale a de 6 a 8 em uma escala de níveis de percepção de esforço que vai de 1 a 10. Você deve sentir que fez um treino (ou prova) bom e difícil em vez de terminar completamente exausto.
- ESCOLHA UM DESAFIO: Algo que forneça um bombardeio constante de estímulos que desliga o lobo frontal do seu cérebro e permite que você esteja por inteiro no momento presente vai cutucar seu cérebro na medida certa.
- VÁ ATRÁS! Seguir alguém que é apenas um pouco melhor que você pode ser um bom gatilho para o estado de flow. Num pedal, por exemplo, deve ser em um ritmo que te leve a se perguntar: “Consigo pedalar assim nessa velocidade?”.
- TREINE COM SUA GALERA Treinar em grupo exige bastante foco. “Quando estamos em turma, costumamos nos fechar para o que vem de fora”, diz o pesquisador Steven Kotler, especialista em flow.
- PEGUE PESADO, DEPOIS ALIVIE Entre em um desafio fora da sua zona de conforto. Isso leva à liberação de norepinefrina, iniciando o estado de alerta mental necessário para o flow. Em seguida, desacelere um pouco.