Embalados pelo projeto brasileiro La Liebre, ciclistas amadores sul-americanos cruzam os Andes em bikes fixas
Por Bruno Romano*
Fotos por Ricardo Vilela
Rajadas de até 50 km/h dão as boas-vindas para um grupo de ciclistas na Cordilheira dos Andes. Elas vêm do Oceano Pacífico e transformam a tão esperada sensação de “vento no rosto” em algo muito mais extremo. Cada giro dos pedivelas se torna um martírio. Mas ninguém quer pensar em desistir. Afinal, esse é o ápice do Desafio en Los Andes, uma viagem independente criada pelo grupo brasileiro La Liebre Fixed – trupe que tem se especializado em expedições com bikes de pinhão fixo. Durante três dias gelados de outono andino, no fim de abril, eis o objetivo da vez: escalar os Andes conectando a Argentina ao Chile pelo Paso de Los Libertadores (não poderia ter um nome melhor) usando apenas uma marcha.
O desafio instigou 23 aventureiros sul-americanos – Argentina (12), Brasil (8), Uruguai (2) e Colômbia (1) – a tocarem para cima nessa região que beira o Aconcágua (6.962 metros), pico mais alto do continente. Ao todo, um giro de 250 km em território montanhoso, alcançando até 3.200 metros de altitude e somando 2.800 metros de subida acumulada. Junto dos ciclistas, seguia uma equipe de apoio com veículos e equipamentos para documentar a travessia, partindo de Las Vegas (Argentina) rumo a Panquehue (Chile) na latitude aproximada de Mendoza, cidade ícone do nosso país vizinho, ao norte de Santiago, capital chilena – a descida foi pela clássica via Los Caracoles. Para dar uma dimensão da jornada, o dia mais duro de ascensão chegou a registrar mais de nove horas de pedal. No fim, 17 dos 23 ciclistas alcançaram o topo e fecharam o percurso completo.
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“Só lá em cima você se dá conta de que o ‘monstro’ contra quem estava lutando era você mesmo”, diz o paulista André Gonçalves, 26, um dos que cravou o feito. “É difícil descrever… daquele tipo de coisa que você tenta colocar em palavras, mas só entende mesmo vivenciando”, completa André, dono de uma bike shop em Balneário Camboriú (SC) e amante de fixas há oito anos, que encarou a pedalada pela segunda vez. Em novembro de 2015, na viagem pioneira do projeto La Liebre, os participantes foram castigados pelo frio da cordilheira. Apenas quatro dos 13 integrantes da estreia aguentaram a pior parte da subida. Além de André, os fixeiros Diego Grbin, Marlon Portes e Nicolas Montemurro repetiram a façanha neste ano.
“Logo na primeira vez que ouvi falar disso – e fiquei sabendo que ninguém ainda tinha feito –, pensei: ‘Estou dentro!’”, lembra André, que tenta expressar um pouco mais do que viveu. “No início, você olha ao redor e o cenário te dá medo, mas aí passa a respeitar as montanhas e, quase sem perceber, começa a sentir que está fazendo algo grande e tudo aquilo te motiva”, reflete. Com o aprendizado de 2015, a escolha por uma janela de tempo melhor em 2018 rendeu bons frutos. Além dos três dias de travessia, os bikers passaram duas semanas juntos na estrada, vivenciando a bicicleta de forma intensa. De rolês pelas ruas, locais de treino e bicicletarias da região, o universo fixeiro marcou o ritmo das pedaladas e a interação dos países.
No meio de tantas descobertas e de momentos mais relax, o desafio maior pelos Andes seguia ditando os rumos das escolhas e das conversas. E os perigos da missão se mostravam evidentes. Na última parte do trajeto, Gabriel Campos, 24, um dos membros da equipe de produção, teve de ser internado por conta de complicações respiratórias. Ele foi diagnosticado com água nos pulmões e sua vida foi salva em um pequeno hospital da localidade de San Felipe, na parte chilena dos Andes. Dois meses depois do atendimento de emergência, Gabriel seguia em terras estrangeiras, agora na companhia de amigos e familiares, com sua recuperação bem encaminhada.
TODA ESSA IDEIA de unir bikes fixas com montanha realmente cruza uma nova fronteira e foge dos padrões. Bicicletas do tipo costumam ser projetadas para serem práticas e ágeis nas cidades. Elas até podem ganhar um perfil competitivo, como ocorre em eventos de criterium (em circuitos fechados), nos alleycats (corridas urbanas underground com pontos de controle e, muitas vezes, “charadas” entre eles) e demais provas espalhadas pelo mundo, que vão de disputas de velocidade (ou sprints) a jogos de equilíbrio, geralmente seguidos de uma bagunça coletiva.
O desempenho das fixas para curtas distâncias, portanto, costuma ser muito bom, ainda que o quesito conforto comece a pesar bastante na bagagem em quilometragens maiores – se o terreno for inclinado, isso ainda se multiplica. Só que a intenção do La Liebre era justamente mexer nesse paradigma, incluindo ingredientes como altas montanhas e percursos fora do asfalto. Com o tempo, foi se desenvolvendo um entendimento mais profundo entre medidas, peças e componentes, af nando o equipamento para pedaladas como a da missão andina.
Nas palavras de um dos criadores do grupo, o produtor paranaense Aliakim de Sá: “A técnica e a conexão com a bicicleta são os principais quesitos para completar um desafio como esse sem quebrar”. No Desafi o en Los Andes, por exemplo, cada ciclista podia escolher apenas duas relações de coroa e pinhão, uma para subir e outra para descer. “Olhar um pouco para a história das primeiras bicicletas que foram usadas em competições, tentando entender mais esse universo, nos deu motivação para colocar a magrela em uma condição tão extrema”, reforça Aliakim, 27, que também desenvolve o projeto independente Enfoque BMX, ligado ao mundo das bikes de manobra.
O plano de cruzar os Andes só saiu mesmo do papel, há de se ressaltar, depois de uma merecida cerveja pós-pedal, em julho de 2015. Quem se lembra bem da cena é o designer e apaixonado por ciclismo Adan Souza, 29. No tal papo, ele colocou pilha em um amigo para uma imersão de fixa pela cordilheira. “Ele até curtiu, mas acho que não me levou muito a sério”, diverte-se Adan, que logo depois criaria o projeto ao lado de Aliakim, outro grande parceiro de rolês de bike, a quem sugeriu a mesma intenção. Nessa segunda tentativa, já sabemos onde a história foi parar.
Só de espalhar a notícia para os amigos e divulgá-la nas mídias sociais, já foi o suficiente para atrair mais uma porção de gente corajosa. Só faltava criar um nome. A inspiração veio da observação das lebres que habitam os Andes e sobem as encostas das montanhas com tanta velocidade que fazem parecer ser algo super fácil. “Quando criamos isso tudo, ainda era uma enorme dúvida se realmente seria possível ou não”, recorda Adan. “Nós tínhamos visto um vídeo de uns caras fazendo algo parecido nos Alpes com fi xas, e parecia bem difícil”, diz.
Bom, também não ia ter graça nenhuma se fosse fácil. Mesmo assim, entre o ímpeto da aventura e a consciência para dar conta do recado, há sempre um terreno que exige cuidado. “Com mais um desafio completo, a lição que fica é que preparação e organização nunca são demais – imprevistos rolam e é bom ficar bem ligado”, alerta Adan, que pedalou toda a extensão do desafio de 2018. Ainda em território argentino, por exemplo, a galera foi parada por policiais locais – relatos de corrupção circulam por viajantes dessa zona –, alegando que a passagem não era permitida. O motivo seria o tamanho grande do grupo e uma suposta exigência de autorização expedida no ponto de parada anterior. Depois de muita conversa, chegou-se a um acordo: os ciclistas se dividiram em times de três pessoas e, assim, seguiram o rumo.
Momentos como esse parecem infortúnios à primeira vista, mas costumam engrandecer o caminho e o aprendizado, além de somar mais uma ótima história para contar. “O intercâmbio entre as culturas é a maior recompensa e o grande combustível para esse tipo de jornada”, concluiu Aliakim. Para André, ver e viver situações nas quais nem se imaginava ao lado de (antes) desconhecidos é o mais marcante. “A bike acabou se tornando a nossa língua comum e o ponto onde tudo se encontra.” Se ainda resta uma dúvida ou motivo para encarar ou não algo desse tipo a bordo de uma bicicleta, ele mesmo tem uma boa resposta: “A emoção de completar é muito grande. De alguma forma, é possível absorver a grandeza da montanha – você se enche de energia e passa a ver toda a vida de outra forma”.
*Reportagem publicada originalmente na edição nº 153 da Revista Go Outside, julho de 2018.