A situação no sul do Pará era dramática com a morte da Irmã Dorothy, missionária norte-americana assassinada a tiros em fevereiro na cidade de Anapu, no Pará. As polícias militar, civil e federal tomavam conta da região, mas mesmo assim as mortes não cessavam. Para completar, a estrada – se é que podemos chamá-la assim – até Xinguara, no sudeste do estado, estava praticamente intransitável com tantos buracos e a chuva que não parava de cair. Isso fora os constantes assaltos aos veículos que se arriscam por aquelas bandas. Enquanto eu tentava arrumar uma maneira de chegar a Xinguara, município brasileiro com o maior número de assassinatos ligados à disputa de terras nos últimos 20 anos (87 mortes), frei Henri Burin des Roziers propôs que nos encontrássemos no meio do caminho, em Marabá, também conhecida como “Marabala”, uma terra sem lei a 438 quilômetros de Belém.
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O local combinado foi a rodoviária da cidade. Frei Henri, francês naturalizado brasileiro, apareceu acompanhado de quatro seguranças e me deu um papel com o endereço de um hotel. Seguiríamos em carros separados para minha proteção. Assim foi meu primeiro contato com a rotina de ameaças de morte, perseguições, trabalho escravo e assassinatos do frei. Advogado, líder da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Pará e um dos militantes mais visados pela pistolagem, o religioso de 75 anos faz parte, como outros 115 militantes do estado, de uma lista de ameaçados de morte preparada a partir de informações de agentes pastorais enviadas à sede da CPT, em Goiânia. Seus seguranças não desgrudam dele nem na hora de dormir. Ali, naquela espelunca nem um pouco suspeita para o pernoite de um religioso, os seguranças discutiam quem passaria a noite ao lado do frei – um deles, visivelmente orgulhoso da função, dormiria na mesma cama que Henri – e quem ficaria no outro quarto.
Com o conhecimento de quem milita há 27 anos pela regularização de assentamentos dos sem-terra e contra a utilização de mão-de-obra escrava, o frei garante que pelo menos 25 matadores atuam na região de Xinguara. No fim do ano passado ele recebeu um telefonema muito violento e agressivo. “Agora basta! Você incita invasão de terras. Basta! Agora está certo que você vai ser morto. Vamos te matar!”, ameaçou a voz do outro lado do aparelho telefônico. Frei Henri não deu atenção. “Até a morte de Dorothy, eu não tinha preocupação. Sou velho, religioso, estrangeiro, advogado e tenho o apoio e a atenção das autoridades federais”, diz ele com voz baixa e grave e sotaque acentuado. “Mas fiquei assustado pela audácia de matarem Dorothy e reconheço que tive de repensar toda essa situação. Eles são capazes de absolutamente tudo”.
A par das ameaças, o Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) finalmente pediu que o presidente Lula desse proteção ao frade. Mas o governo do Pará já tinha se mexido e des Roziers passou a ser protegido, a contragosto, pela polícia militar paraense. Apesar de ter seus dias e noites assombrados pelos pistoleiros contratados por posseiros, fazendeiros ou madeireiros da região, frei Henri não pretende renunciar tão cedo à luta. “No dia do meu aniversário, um jornal deu a notícia de que minha cabeça está valendo R$ 100 mil”, disse o senhor de cabelos brancos e olhos azuis, “mas não tenho medo”.
DIREITO
Nascido em Paris, numa família católica de classe alta que participou da resistência contra o nazismo, Henri esteve na Argélia quando serviu no exército francês e sensibilizou-se com a situação da pobreza do país. Formou-se em Letras na Sorbonne e em Direito Comparado na Universidade de Cambrige, na Inglaterra, e fez o Doutorado na Universidade de Paris. Era um advogado com carreira promissora quando conheceu, em 1956, o dominicano Yves Congar, um dissidente punido pelo Papa Pio XII por suas idéias renovadoras. Optou por esse caminho e ordenou-se padre em 1964, na Ordem dos Frades Pregadores.
De 1970 a 1978 trabalhou na França com os imigrantes estrangeiros, principalmente africanos da Nigéria e da Tunísia que eram a mão-de-obra braçal das fábricas francesas. Nesta época o Brasil vivia sob a ditadura e vários religiosos dominicanos brasileiros foram exilados, indo se refugiar na França. Por eles, frei Henri soube do problema da terra e do trabalho escravo no Brasil. “Eles disseram que talvez minha experiência pudesse ser útil aqui e resolvi ver de perto o que estava acontecendo”, lembra.
Chegou ao Brasil em dezembro de 78. Ficou um ano estudando português e visitando as comunidades dominicanas espalhadas no país, aprendendo sobre a realidade brasileira. Em 79 fez um estágio na CPT em Conceição do Araguaia, no Tocantins. Em contato com pequenos posseiros oprimidos resolveu representá-los. Acabou ficando por lá, mas começou a incomodar e quiseram expulsá-lo do país. “O delegado que pedia isso e tentou me processar tinha um nome bem sugestivo: Hitler Mussolini”. Seu diploma de advogado foi reconhecido no Brasil em 1984. Leia a seguir a entrevista que frei Henri Burin des Roziers concedeu com exclusividade à Go Outside.
GO OUTSIDE O que o leva a arriscar sua própria vida na defesa dos interesses de terceiros? Você não tem medo de morrer?
HENRI BURIN DES ROZIERS Nessa vida você tem que escolher o que quer, não se pode ter tudo. Se tivesse escolhido ter família, mulher e filhos, provavelmente não estaria vivendo como estou, mas escolhi outra vida, com muitas renúncias e para isso é fundamental ter fé, equilíbrio e força psicológica, o que me torna livre. Honestamente te digo que a minha situação não tem nada de heróica. Esses seguranças que estão aqui me acompanhando, não fui eu quem pediu, eu não queria. O governo do Pará decidiu pela minha proteção independentemente da minha vontade. Há dois soldados para me proteger, se revezando, sempre um ao meu lado. Na minha idade posso ter a liberdade de falar coisas a qualquer pessoa, seja juiz ou autoridade. Se vivermos com medo, não faremos mais nada. Se eu me tornar um tipo de morto vivo, trabalhando fechado, não será mais possível me sentir inspirado e motivado.
O senhor já recebeu muitas ameaças de morte. Existe realmente uma lista de “marcados para morrer”?
Certamente existe. Resolveram acabar com o Sindicato dos Trabalhadores na região do Rio Maria, que era um dos sindicatos mais atuantes, e assassinaram uma série de presidentes. Fui para lá ajudar na apuração desses crimes. Conseguimos que todos os pistoleiros fossem a júri. Vários foram condenados, todos fugiram. É por isso que, muito mais importante do que me proteger, é ir atrás da causa mais profunda do problema.
Qual é essa causa?
A principal causa do conflito é que a reforma agrária não está andando, apesar das promessas do governo. Os trabalhadores rurais foram pacientes durante dois anos, acreditaram no governo, que havia prometido as terras no ano passado. A grande maioria não recebeu nada. Agora os sem-terra não acreditam mais nas promessas. É mais um motivo para bloquear as estradas e ocupar prédios do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária). Do outro lado, os fazendeiros estão mais preocupados porque os milhares de sem-terra avisam que a solução é ocupar. A outra causa é a impunidade dos pistoleiros e fazendeiros que promovem os assassinatos. Primeiro eles aproveitaram a ausência total do Estado; agora que o Estado começou a aparecer, eles o inutilizam através da corrupção. Quase a totalidade da polícia serve aos fazendeiros. A polícia aqui no sul do Estado é privatizada.
Onde mais há focos de corrupção?
Sem dúvida os órgãos estaduais – executivo, legislativo e judiciário – são coniventes com as forças econômicas e políticas que sustentam o agro-negócio. Estou mais envolvido com a linha jurídica e tenho um exemplo muito significativo. Nós denunciamos nesses últimos anos várias chacinas, de 1985 até hoje, que não foram apuradas. O judiciário alegava não ver esses fatos como sendo verdadeiros, então eles deram a todas as Comarcas do sul do Pará, autorização para arquivamento dos processos. Continuamos brigando e então pediram uma investigação para ver se todas essas denúncias de chacinas feitas pela CPT existiram realmente. Fizeram isso três vezes e como não poderia deixar de ser, tiveram que reconhecer que todas as chacinas aconteceram realmente e de fato iniciou-se um processo, mas este ficou parado. Às vezes é o delegado de polícia que trava, às vezes o promotor ou o próprio juiz. Quase todos os delegados chegaram com diplomas universitários, mas muitos deles são corruptos. Esse é um problema para a Justiça, porque tudo depende do inquérito inicial. A morosidade e a má vontade do Incra, com uma estrutura esclerosada, também atrapalha. Alguns elementos ali são obviamente corruptos, burocratizados, com vícios internos.
O senhor poderia falar quem são os mandantes dos crimes?
Nosso maior problema é com o Sindicato Rural dos Fazendeiros. Eles têm ódio da gente e estão usando verdadeiros exércitos particulares. Agora utilizaram esse tal de Bida [acusado de ser o mandante do assassinato de Dorothy Stang, foi preso e aguarda julgamento], porque é mais fácil acusá-lo, já que ele anda envolvido em falcatruas como assaltos a ônibus nas estradas do Pará. A polícia civil diz que já apurou tudo e apresentou o pistoleiro, o intermediário e esse pequeno fazendeiro de nome Bida… Quem vai acreditar nisso? Quem vai pensar que esse Bida é capaz de pagar o advogado que o defende, além de todas as despesas para conseguir se esconder? Como se pode pensar que não tem outros grupos poderosos por trás? Está uma confusão: a Polícia Federal e a Procuradoria da República dizem que tudo indica que há outros grupos poderosos envolvidos, mas o Estado e a Polícia Civil dizem o contrário. O Estado não quer ir a fundo, porque se for, vai encontrar grupos madeireiros poderosíssimos que têm envolvimento com a cúpula do Congresso. É óbvio que o Estado é incapaz de fazer um trabalho honesto em relação ao drama do conflito agrário.
Qual é o sentimento que você nutre em relação a esses fazendeiros?
Sinto raiva dessas pessoas. Espero que falte pouco tempo para que a justiça seja feita e dedico minha vida a isso. Hoje sou obrigado a andar com seguranças, enquanto eles passeiam livres por aí. Mas apesar de todas as mortes, todas as dificuldades, nosso trabalho está progredindo. A bancada ruralista disse que nunca conseguiríamos dar andamento aos processos criminais contra os fazendeiros e a máfia da região de Figueiredo Maria e Xinguara, mas conseguimos condenar quatro pistoleiros – um era um ex-policial que a própria polícia civil qualifica como de alta periculosidade. Infelizmente, todos os quatro fugiram da penitenciária de Marabá. Temos outro exemplo, os irmãos Cagliatto, que possuem 100 mil hectares e umas 250 mil cabeças de gado na região de Xinguara. Eles exploraram muito o trabalho escravo e foram denunciados muitas vezes pela CPT, mas nada aconteceu. Agora eles têm um processo criminal em andamento e há também um processo da Comissão Interamericana da Organização dos Estados Americanos (OEA) contra o governo brasileiro, que está sendo responsabilizado porque não tomou as devidas providências para solucionar o problema.
Qual é a finalidade da Comissão Pastoral da Terra?
A CPT é uma entidade ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e foi criada na metade da década de 70, quando pequenos agricultores e camponeses estavam sendo perseguidos devido aos conflitos de terra. Ela trabalha prestando serviço de apoio, assessoria e acompanhamento aos trabalhadores do meio rural. Atua junto a grupos de sem-terra, pequenos e médios proprietários e trabalhadores rurais que vivem da agricultura familiar, procurando despertar neles a vontade de serem protagonistas e sujeitos da própria história. Hoje temos equipes em cada estado do Brasil a serviço dos camponeses, para defender seus direitos à terra, à vida e à realização da verdadeira reforma agrária, que até hoje é um sonho.
O senhor acredita na concretização desse sonho?
Sim. Acredito que a questão agrária tem solução. Precisa é de vontade, porque a força política do bloco ruralista é muito poderosa. A agricultura e o agro-negócio trazem muitos dólares para o país e o governo precisa desses dólares. Assim a reforma agrária faz-se esquecida. Acho que todos deveriam conhecer melhor a realidade, entender que a solidariedade tem que ir sempre mais longe. É preciso mostrar que é possível haver outro tipo de projeto humano e agrícola para o Brasil que não seja o agro-negócio e a soja que contamina os solos com o veneno que é colocado nas plantações. Esse tipo de indústria impede os pequenos de viver da terra. É preciso implementar uma agricultura que não destrua a natureza e respeite as milhares famílias de camponeses.
O CENTRO DO TERREMOTO
A Terra do Meio é campeã em desmatamento, denúncias de trabalho escravo, invasão de terras indígenas, extração ilegal de madeira, pistolagem e grilagem de terras. Dos 12 assassinatos de trabalhadores rurais ocorridos este ano no Pará, seis aconteceram na região, incluindo o da irmã Dorothy Stang. São dez municípios localizados numa área de 8,3 milhões de hectares de floresta tropical amazônica – equivalente ao Estado de Santa Catarina –, que se estende entre os rios Xingu e Tapajós e é cortada pelas Rodovias Transamazônica e BR-163 (Cuiabá-Santarém). “Terras públicas dominadas por uma verdadeira máfia de grandes madeireiras, grileiros, empresas pecuaristas e traficantes. Na Terra do Meio o Estado é quase que ausente. Um lugar sem lei que a irmã Dorothy queria proteger e preservar, porque a fronteira agrícola está cada vez mais dentro da Amazônia”, explica o frei Henri des Roziers.
LINHA VERDE
1971 O bispo espanhol Dom Pedro Casaldáliga assume a Paróquia de São Félix do Araguaia (MT), que compreende metade do Parque Nacional do Xingu, toda a nação tapirapé, muitos xavantes e quase todos os karajás do país. Ele teve a cabeça posta a prêmio por fazendeiros e lutou por três décadas em nome dos peões, posseiros e índios da margem esquerda do rio Araguaia antes de se aposentar.
1975 É criada a Comissão Pastoral da Terra durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e realizado em Goiânia (GO).
1987 Chico Mendes – seringueiro que dedicou praticamente toda a sua vida à defesa dos trabalhadores e povos da floresta – recebe a visita de alguns membros da ONU, em Xapuri (AC), onde morava. Eles puderam ver de perto a devastação da floresta e a expulsão dos seringueiros causada por projetos financiados por bancos internacionais. No mesmo ano Chico levava estas denúncias ao Senado norte-americano e à reunião de um banco financiador, o BID. Os financiamentos foram suspensos.
1996 19 trabalhadores rurais foram mortos por uma tropa de 155 policiais militares na rodovia PA-150. A questão envolvia a posse da fazenda Macaxeira, em Curionópolis, latifúndio improdutivo de 42 mil hectares que seria desapropriado e loteado. Os 1,5 mil trabalhadores da fazenda obstruíram a rodovia, que dá acesso ao sul do Pará, para obter comida e transporte até Belém, onde tentariam sensibilizar as autoridades para sua causa, quando a tropa militar chegou e iniciou o massacre.
2003 A Senadora Marina Silva é convidada a assumir o Ministério do Meio Ambiente do governo Lula. Apontada pela revista Time como uma das 100 lideranças políticas mais influentes do mundo, ela passou a infância com a família em um seringal no Acre e aprendeu a ler aos 17 anos.
2005 Naturalizada brasileira, a missionária norte-americana Dorothy Stang é assassinada a tiros na cidade de Anapu, no Pará. Ela tinha 73 anos e trabalhava há 20 anos na defesa dos direitos dos trabalhadores rurais e da preservação do meio ambiente na região.
(Reportagem publicada originalmente na Go Outside de junho de 2005)