Uma surpreendente jornada de minibike por Taiwan

Por Erika Sallum*

O convite, a princípio, não fazia lá muito sentido. Conhecer a ilha de Taiwan em quatro dias, pedalando distâncias de, em média, 80 a 90 km. Até aí tudo bem, afinal sou ciclista de estrada, e pedais de muitas dezenas de quilômetros são parte da rotina. Mas quase 350 km em menos de uma semana em uma minibike dobrável full suspension (!!), de pneus de aro 20, composta esdruxulamente por peças ora de mountain bike, ora de speed? Minha impressão deu uma piorada assim que bati os olhos na foto da magrela “Frankenstein” enviada pelo órgão de turismo taiwanês que estava convidando jornalistas para conhecer de perto o potencial do país para viagens de bicicleta. O quadro da bike era por demais esquisito – nele, para se ter uma ideia, a garrafa de água fi cava praticamente paralela ao chão… E as rodas, Jesus, tão pequenininhas… O mais indicado seria pedir informações extras por e-mail, mas estas nunca chegaram de forma 100% clara, em umas poucas explicações escritas em um inglês estilão Google translator (apesar de, sempre, extremamente educadas).

Erika Sallum viajou a Taiwan a convite do governo do país

Entretanto a simples junção das palavras “Ásia + bike + viagem + comida exótica” em uma mesma frase já bastava. “Boralá!”, pensei eu, em um misto de animação e receio (em especial ao perceber que o primeiro dia de pedal seria menos de 12 horas depois de uma jornada longa que incluiria um voo de 14h30, mais seis horas de conexão esperando o próximo avião, dentro do qual eu ficaria mais 8h30 até o destino fi nal). Ah, mas o que poderia sair de tão errado, além de… eu desmaiar de sono em cima de uma microbike das viagens de Gulliver? – a queda nem seria assim tão tensa, dado o tamanho diminuto de minha recém-companheira de aventuras.

Após aterrissar e sofrer a noite toda de jet lag em um hotelzão luxuoso de Taipei, capital dessa nação de 23,3 milhões de habitantes e extensão menor que o Estado do Rio de Janeiro, eu e o grupo de jornalistas, fotógrafos e blogueiros vindos de várias partes do planeta tomamos um trem-bala até Hualien, no leste da ilha. Logo no vagão, já tive a primeira noção do que me esperaria. Na poltrona ao meu lado, uma jovem estudante era só sorrisos. A pouca fluência no inglês não a impediu de fazer uma amizade que dura até hoje, em trocas de “likes” e calorosas mensagens via Facebook e Instagram. Minha mais nova amiga taiwanesa me emprestou carga para o celular, fez perguntas curiosas sobre o Brasil e falou das belezas de seu país. Sua doçura seria emulada em praticamente todos os lugares da terra de Chiang Kai-shek, militar e líder político que governou a ilha com mãos de ferro até sua morte, em 1975.

A apenas 180 km da China, que ainda considera o país uma região rebelde que precisa ser reincorporada ao governo continental, Taiwan é uma terra de gente batalhadora. Como uma Cuba às avessas, em uma versão capitalista que vive sob o temor do olhar de reprovação da China dominada pelo Partido Comunista, Taiwan sempre batalhou para defender sua independência e identidade. Para se proteger do gigante vizinho, investiu pesado (com a ajuda dos Estados Unidos) em educação e tecnologia – em 2015, por exemplo, fi cou em 4º lugar no ranking global de educação de matemática e ciência da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). O território, apesar de pequenino, hoje é altamente industrializado – muitas marcas de bike fazem seus produtos lá.

A bike usada por Erika

Além de economicamente desenvolvida, a ilha concentra tantas atrações naturais que é difícil entender como tudo cabe ali naquelas fronteiras. Para quem ama pedalar e, especialmente, pedalar em subidas (eu!), soa como um paraíso: em Taiwan, existem 275 picos com mais de 3.000 metros de altitude (a montanha mais alta do Brasil, o Pico da Neblina, tem 2.995 metros). É lá, ainda, que fi ca uma das mais doloridas subidas do ciclismo de estrada, celebrada anualmente no evento KOM Challenge, que atrai masoquistas de todas as partes do planeta para enfrentarem um percurso de 105 km que começa no nível do mar e acaba a 3.275 metros de altitude. Dizem que o último trecho do desafi o é tão íngreme que alguns apontam como o mais duro do mundo.

O começo da aventura

Minha aventura de minibike começou grandiosa, no Parque Nacional de Taroko, na província de Hualien, onde fi cam alguns dos mais belos cartões-postais taiwaneses. Dramáticos paredões rochosos compõem o cânion do vale do rio Liwu. Centro de produção de mármore, o parque foi criado ainda na época do domínio do Japão, nos anos 1930. A estradinha que cruza o vale, tortuosíssima, levou quatro anos para ser feita nos anos 1950 e causou a morte de 226 trabalhadores (por isso sempre aparece nas listas de “as estradas mais perigosas do mundo”).

Ciclistas pedalam pelo Parque Nacional Taroko durante o KOM

Foi em Taroko que a vi pela primeira vez. Quase feiosa ao primeiro olhar, mas já exalando o charme que iria me conquistar em poucas horas: minha minibike taiwanesa “tunada”, envenenada com minifreio a disco, guidão reto e quadro de geometria incompreensível. Confesso que, nos primeiros segundos, torci levemente o nariz. Levei meus pedais e sapatilhas para, em minha ignorante arrogância, tornar a experiência menos “terrível”. Que delicioso engano o meu, percebido logo nos primeiros momentos girando o pedivela. Confortabilíssima, a minibike provou ser ágil na medida certa, capaz de encarar longas horas sem espanar. Obviamente que não era, nem de longe, o modelo mais indicado para esse tipo de viagem ciclística. Mas a minibike não decepcionou, pelo contrário: transformouse logo em best friend forever durante meus dias em terras asiáticas.

No Parque de Taroko, devido às curvas fechadas, aos carros e às paisagens de arrebatar – que pedem que você pare e relaxe para admirá-las direito –, o pedal precisa acontecer devagar, ótimo para curtir cada momento, com pausas para fotos em pontes suspensas e templos encravados nas pedras. Para mim, acostumada à velocidade voraz do ciclismo de estrada, reaprender que pedalar mais lentamente pode ser ainda mais reconfortante se revelou uma lição interior poderosa. Até parece papo-aranha, eu sei, mas ali a pressa não tinha motivo de existir – apesar de eu e meu guia taiwanês chamado John John volta e meia aproveitarmos o embalo dos downhills para descer mais forte, sentindo o vento no rosto.

E assim seguimos Taiwan adentro, em um dia que totalizou 67 km em mais de sete horas em cima do selim. Ao sair do parque, outra grata surpresa: em praticamente todas as estradas e ruazinhas, há um espaço considerável exclusivo para o tráfego de bikes e motos – e, o que me deixou pasma, são poucas as motocicletas por lá, então não há estresse nesse sentido. Quando chegamos, já à noitinha, ao vilarejo de Fenglin, o cansaço e a vontade de ir direto para a cama foram seriamente nocauteados pelo jantar. Ah, Taiwan e suas riquezas gastronômicas! Em enormes mesas redondas cujo centro rotaciona para que todos possam ter acesso aos diversos pratos sem importunar os demais, rolou outra viagem, desta vez a do paladar. O domínio japonês, que durou de 1895 a 1945, aliado às culturas das etnias locais, além obviamente da infl uência chinesa, fazem dos quitutes taiwaneses verdadeiras joias da Asian fusion. Porco caramelizado, moon cakes (bolo de feijão doce), vegetais suculentos e sempre uma sopa no fim de cada refeição viram uma premiação e tanto após os desafios em duas rodas.

Cidadezinhas taiwanesas te recebem (muito) bem ao fim de cada dia

No segundo dia, nós nos despedimos da província de Hualien para adentrar o verdejante condado de Taitung. Foram 96 km de queixo caído com o entorno de campos de arroz verdinhos e cenas inesquecíveis, como as de trabalhadores rurais cuidando de plantações de abacaxi – experimente parar e tirar uma foto deles para receber em troca sorrisos e acenos. Vez ou outra, surgiam atrações peculiares: um monumento celebrando o chá, com um bule gigante; ou um templo chinês sem uma viva alma dentro, exceto estátuas de divindades barbudas meio mal-encaradas.

Mas o ponto alto do dia ainda estava por vir. Sem aviso prévio de nossos guias, entramos na ciclovia de Yufu, um percurso de 10 km, 100% exclusivo para bicicletas, construído sobre uma antiga estrada de ferro. Certamente esse trecho foi um dos rolês de bike mais impressionantes de toda a minha vida. A ciclovia corta, em uma estradinha suspensa, arrozais imensos, circundados por montanhas, para depois virar um trajeto cercado de mata e bananeiras. O passeio termina na estação de trem desativada de Antong, hoje totalmente dedicada a bikes. É uma visão para lá de surreal: em volta, paisagem verde-clara, bem úmida, com sons de grilos por todos os lados; de repente dá uma sensação de que uma maria-fumaça pode surgir a qualquer momento – mas, em vez disso, o que aparecem são bicicletas, apenas elas, poucas, carregando ciclistas com sorrisos de orelha a orelha. Na estação, faça uma pausa para um chá gelado – o calor e a umidade de Taiwan podem ser sufocantes, dependendo do mês – e tire uma horinha para admirar a vida que passa tranquila e sem pressa.

No meu grupo, havia uma interessante heterogeneidade de ciclistas. O casal de conterrâneos Robson Cadore e Natalie Duck deixou a vida no Brasil há três anos para viajar o mundo com seu projeto de turismo Love and Road. Sempre sorridentes, comungavam comigo a sensação de alegria por ter a chance de visitar de bike uma terra como aquela. A norte-americana Krystle Marcellus levou sua elegante bike de bambu, feita por sua empresa Werk Arts, do Havaí. Da Malásia, o fotógrafo Shon Voon sofria – mas sempre com graça e piadinhas – por seu completo destreino (a última vez que pedalara havia sido em 2016). Julia Kho, também dos EUA, tirava fotos e se descobria uma valente ciclista, mesmo sem quase nenhum conhecimento do assunto ou treino prévio. O fotógrafo Roman Siromakha, de Nova York, era o mais “pró” da turma: fortão, daqueles ciclistas de estrada focados que por pouco beiram o obsessivo. Para ele, a princípio, os dias de pedal lentíssimo que duravam horas infi nitas, com paradas incontáveis, o irritaram – Roman queria agito, velocidade, adrenalina. Depois, com o passar do tempo, ele foi, mesmo sem se dar conta, se readaptando. No fi m, já fazia seus próprios pit-stops estratégicos para fotos lindíssimas.

Taiwan é repleta de ciclovias paradisíacas como esta que corta o lago Moon, no condado de Nantou

NO TERCEIRO DIA, a província de Taitung seria explorada ainda mais a fundo. É lá que fi ca a “Mr. Brown Avenue”, onde foi fi lmada, anos atrás, uma campanha da marca de café local Mr. Brown. A tal avenida é, na verdade, um emaranhado de estreitos caminhos que cruzam um vasto e surreal campo de arroz. Cada estação do ano confere diferentes cores à plantação, dependendo da época. Tivemos a sorte de ver os campos verdinhos, quase fosforescentes, molhados por uma quente chuva fi na e tropical que deixava a paisagem ainda mais exótica a olhos latino -americanos. Nesse cartão-postal adorado pelos taiwaneses, o segredo é chegar bem cedo, antes das multidões de turistas locais e seus “paus de selfi e”. Acordamos às 5h da manhã, tomamos um café rápido e partimos para a Mr. Brown Avenue. Um senhor e sua bike antiga enfeitavam a cena verde, composta ainda por um dramático céu cinza com nuvens pesadas. De repente comecei a ouvir cânticos, vindos de um pequenino templo das redondezas, onde monges entoavam suas rezas de boas-vindas ao dia que se iniciava. Caminhei, sozinha, por um pedaço da estradinha, para agradecer em silêncio – Taiwan era mesmo incrível.

O país é repleto de ciclovias

Que outro país você pode conhecer inteiramente de bike, unindo o exótico e o tradicional, experimentando iguarias saborosas porém nunca antes vistas, com direito a trajetos totalmente exclusivos para as bicicletas, com tiozinhos de cavanhaque branco acenando sorridentes? Há espalhadas pelo território 26 “bikeways”, ou ciclovias, que cortam 12 áreas de parques nacionais. Em todas elas, placas com QR codes mostram qual o percurso a seguir, com indicações de quilometragem, restaurantes, áreas para observar a natureza… Em umas férias de algumas semanas em duas rodas, você pode pedalar à beira-mar e, logo depois, subir montanhas desafi adoras de deixar animado até meu amigo Roman (o fotógrafo competitivo do grupo)!

O último dia de pedal também foi recheado de grandes surpresas. Se até ali os trechos de bike tinham sido relativamente planos, com algumas raras exceções, enfim encaramos uma serra na perna final da cicloviagem. Foram 7 km de subida, já adentrando a província de Taitung. Lá no topo da montanha, uma grata recompensa: multidões de ciclistas juntos, tirando fotos, ouvindo música e celebrando a chegada ao topo. Dali, pegamos aquela que, para mim, entrou para a lista das estradinhas mais lindas para se pedalar no mundo. Cheio de curvas, todo enfeitado por mata fechada e cercado de montanhas, o caminho é marcado por descidas gostosas (obrigada, minibike, pelo freio a disco providencial e a suspensão traseira e dianteira!).

De repente surgiram algumas poucas casas marcando a paisagem. E então o “susto” do dia: rostos de pele mais escura e traços muito diferentes dos taiwaneses que vi até então começaram a aparecer em meu campo de visão. Senhoras usando um adorno na cabeça que lembrava um nó gigante de lenço chamaram minha atenção. Perdão pela minha falta de pesquisa prévia, mas só descobri naquele momento que parte de Taiwan é ocupada por povos aborígenes das montanhas. Seus ancestrais habitavam a ilha há mais de 5.000 anos em relativo isolamento até o século 17, quando chineses da maioria Han invadiram o território, destruindo parte dessa cultura. Sua língua e tradições estão mais próximas dos povos das Filipinas e da Polinésia que da atual população de origem chinesa que habita a maior parte do país.

Ao parar no Maljipa Aboriginal Restaurant para o almoço, outra descoberta: a culinária desses povos! Batata-doce cozida regada com molho de soja apimentado, melão azedo frito, algas de rios locais e uma linguiça bem parecida com a de nossos churrascos brasileiros foram uma bênção servida ao faminto grupo de ciclistas forasteiros.

E você acha que o dia de aventuras terminou ali? Engano seu. Após descermos por quase 40 minutos sem parar, entre caminhões e carros de uma rodovia, seguimos para o vilarejo de Checheng, famoso por seu Templo de Fuan. É o maior templo de Taiwan a celebrar Tu Di Gong, o Deus da Terra. Naquele dia, uma espécie de festival religioso estava acontecendo. E chegar ali, em meio à festa, em cima de nossas minibikes foi a melhor pedida! Homens carregavam estátuas de deuses, enquanto uma pequena plateia assistia a uma apresentação de um tradicional teatro taiwanês, em um palco montado ao ar livre na entrada do templo. Um show de marionetes nos fez gargalhar: apesar de não entender nada do que falavam, dava para sacar que os dois bonecos estavam em uma treta braba, com miniespadas na mão e até uma minimáquina de gelo-seco para deixar o clima ainda mais “pesado”. Sensacional.

Infelizmente, como diz o ditado, tudo o que é bom dura pouco. Um ônibus nos esperava para nos levar até Kaoshiung, a segunda maior cidade do país depois de Taipei – e dali direto para a capital, de trem-bala. Desci da minibike – aos mais curiosos, trata-se do modelo Reach T20 da marca Pacifi c Cycles – e, sem ninguém perceber, praticamente dei um abraço em minha fi el escudeira de alumínio. Depois fui até meu guia, que naqueles quatro dias havia se tornado um forte companheiro de pedal, e fi z uma reverência aos moldes asiáticos. Ao que ele respondeu com um aperto de mão e um olhar de camaradagem. Só mesmo a bicicleta para aproximar pessoas tão diversas, de forma tão intensa, em tão pouco tempo.

No trajeto de ônibus até Kaoshiung, aproveitei para rever as fotos e os vídeos, talvez em uma tentativa de absorver melhor tantas experiências vividas naquela semana. Antes de desligar o celular e encostar a cabeça para uma soneca após um dia de 80 km e quase oito horas de pedal, cheguei a uma conclusão importante: Taiwan, voltarei logo para conhecer o lado oeste de sua terra, e isso nem vai demorar muito para acontecer.

*Reportagem publicada na edição nº 148 da Revista Go Outside, jan/fev de 2018