As mulheres estão superando os homens

Caroline Boller vencedora da Brazos Bend, de 80 km, no Texas - Foto: Paul Nelson

Por Meaghen Brown*

No verão passado, a norte-americana Lael Wilcox se tornou a primeira mulher a vencer a TransAm, uma prova de ciclismo duríssima e sem apoio de mais de 6.900 km, do Oregon até a Virgínia (EUA). Ela completou o percurso em apenas 18 dias e venceu depois de ultrapassar o ciclista grego Steffen Streich no meio da última noite (quando ela chegou perto da roda dele, Steffen propôs que os dois pedalassem juntos até a linha de chegada. Ao que a moça respondeu: “De jeito nenhum, isto é uma competição”).

Já entre as provas de corrida de longa distância mais famosas do mundo, a Ultra-Trail du Mont-Blanc é conhecida por ser especialmente brutal. O percurso de 170 km da prova pelos Alpes franceses, suíços e italianos sobe e desce mais de 10.000 metros de desnível ao contornar a famosa montanha que dá nome ao evento. O clima quase sempre é selvagem – chuvas densas, noites geladas e dias quentes e úmidos. Em agosto de 2013, a norte-americana Rory Bosio cruzou a largada sem grandes expectativas, sem nunca ter vencido uma corrida importante. Ela ficou bem atrás das líderes durante as primeiras seis horas. Entretanto, à medida que a competição avançava noite adentro e a maioria das competidoras ficava mais lenta, Rory mantinha o ritmo. Quando a corredora magricela e de cabelo castanho cruzou o pórtico de chegada, seu tempo de 22h37 aniquilava o recorde feminino anterior, reduzindo-o em 2h30. Rory acabou em 7º lugar na classificação geral entre homens e mulheres, tornandose a primeira mulher a chegar entre os dez primeiros colocados na prova e derrotando dezenas de corredores homens de elite.

Pam Reed, bicampeã da ultramaratona Badwater 135 – Foto: Michael Lewis.

Não foi a primeira vez que uma mulher arrasou em uma importante competição de endurance. No começo dos anos 2000, a norte-americana Pam Reed venceu diversas vezes consecutivas a ultramaratona Badwater, de 217 km. Na época, suas vitórias foram consideradas estranhas, especialmente porque a segunda mulher mais rápida estava a mais de sete horas atrás dela. No entanto o desempenho de Rory no Mont Blanc é apenas uma de uma série de performances femininas notáveis. Um ano antes, a corredora de obstáculos Amelia Boone, também dos Estados Unidos, ficou em 2º na classificação geral da World’s Toughest Mudder, uma competição de 24 horas, na qual ela percorreu quase 145 km. A atleta acabou com uma ampla vantagem de mais de 16 km do 3º colocado – que também era mulher.

Em um fim de semana do último mês de dezembro, corredoras conquistaram cinco vitórias em ultramaratonas nos Estados Unidos, com Caroline Boller, de 42 anos, estabelecendo um novo recorde nos 80 km da corrida de montanha Brazos Bend, no Texas. Para deixar as coisas claras, vitórias femininas em eventos mistos continuam sendo raras. Na maratona, as primeiras mulheres são cerca de 15 minutos mais lentas que os homens mais rápidos. Porém o crescente número de performances notórias de mulheres em provas de ultradistância tem feito com que atletas, treinadores e pesquisadores acreditem que as mulheres ainda possam estar longe de alcançar todo o seu potencial no esporte. Essa suposição é alentada pelo simples fato de que mulheres têm competido em quantidades significativas em esportes de endurance há um tempo relativamente curto. Acredite ou não, as mulheres não podiam participar da Maratona de Boston até 1971 – nada menos que 74 anos após o surgimento do evento.

O conhecimento científico sobre mulheres atletas também é profundamente deficiente. Durante décadas, as mulheres eram excluídas de grande parte dos estudos sobre exercício e biomedicina. Mesmo hoje são poucas as pesquisas focadas na performance feminina.

O consenso entre os estudiosos é que homens têm uma série de vantagens físicas decisivas em relação às mulheres que os tornam insuperáveis em níveis de elite em todas as modalidades, exceto em alguns poucos esportes altamente especializados. Porém eles também admitem que estamos apenas começando a compreender do que as atletas de endurance são capazes. Um padrão cada vez mais recorrente de resultados de provas sugere que, quanto mais longo e árduo for o evento, maiores são as probabilidades de que mulheres vençam os homens.

Em 1992, os fisiologistas do exercício Brian Whipp e Susana Ward, da Universidade da Califórnia, publicaram um estudo na revista científica Nature prevendo que nos próximos cinco anos as mulheres começariam a superar os homens em provas de corrida de longa distância como maratonas. Nas últimas décadas, a participação feminina nos esportes disparou, e recordes foram quebrados constantemente. De acordo com os estudiosos, as mulheres estavam melhorando tão mais rapidamente que os homens que, se seguissem aquela trajetória, certamente os superariam.

Os pesquisadores estavam errados, e o estudo foi considerado excessivamente simplista – um modelo baseado em estatísticas levado ao extremo. Mas o trabalho chamou a atenção para o extraordinário avanço das atletas durante as duas décadas anteriores. A maior parte desse progresso foi resultado natural da oportunidade que as mulheres passaram a ter de competir. Em 1972, oito mulheres completaram a Maratona de Boston; em 2016, mais de 12.000 a terminaram.

A melhora de performance tem sido igualmente surpreendente. O tempo de 2h15min25 do recorde mundial da britânica Paula Radcliffe na maratona, estabelecido na Maratona de Londres de 2003, é 30 minutos mais rápido que o recorde feminino de meados dos anos 1970 (o tempo do recorde masculino diminuiu apenas cinco minutos durante o mesmo período). As triatletas baixaram seus tempos em 2h30 em relação ao tempo feminino mais rápido dos anos 1980 (já os homens reduziram o deles em 1h30).

No entanto, em muitos esportes, o processo de diminuição das diferenças entre os gêneros ficou estagnado, com as mulheres mais rápidas permanecendo cerca de 10% mais lentas que os homens mais velozes no ciclismo, natação, patinação de velocidade, remo olímpico e canoagem. Provas de ultradistância são a exceção. Ao longo da última década, a crescente popularização de competições especialmente duras com participação de ambos os sexos, como corridas de mais de 160 km ou repletas de extenuantes obstáculos, além de eventos de ciclismo cross-country, tem dado às mulheres oportunidade de competir diretamente contra os homens, produzindo resultados intrigantes. De acordo com a revista Ultrarunning, entre 2000 e 2016, o número de corredores que terminaram ultramaratonas aumentou de cerca de 13.000 para mais de 88.000, com um incremento no número de mulheres de menos de um quarto dos finalistas para mais de um terço. Em 2016, o número de inscritas na Meia Maratona do Rio superou o de homens, representando 53% do total dos participantes.

Na prova casca-grossa Hardrock 100, nos Estados Unidos, uma mulher esteve entre os dez primeiros colocados em oito das nove últimas edições, com duas mulheres entre os top 10 em 2015 e 2016. Mulheres também começaram a aparecer entre os top 20 na respeitada competição norte-americana de mountain bike Leadville 100, com a britânica Sally Bingham ocupando a 14a posição no ano passado e a dinamarquesa Annika Langvad fazendo o mesmo um ano antes.

Enquanto isso, pesquisadores sugerem que as mulheres continuarão melhorando a um ritmo muito mais rápido que os homens. De acordo com Sandra Hunter, professora de ciência do exercício na Universidade Marquette, em Milwaukee (EUA), que passou os últimos 20 anos estudando a fisiologia feminina com ênfase em atletas, a diferença entre as taxas de participação atuais corresponde a cerca de 34% da disparidade entre os tempos dos homens e das mulheres.

A mountain biker campeã muncial Rebecca Rusch em Sun Valley, Idaho (EUA) – Foto: Josh Glazebrook / Red Bull Content Pool

Atletas do sexo feminino têm bastante consciência de dados desse tipo. “O número de participantes mulheres está aumentando rapidamente, e recordes estão sendo quebrados”, diz a norte-americana Rebecca Rusch, 43, mountain biker sete vezes campeã do mundo e que tem competido contra homens em provas de endurance há 25 anos. “O que quer dizer que nós, simplesmente, ainda não chegamos nem perto de nossas capacidades genéticas máximas.” Em esportes de endurance, cinco fatores fisiológicos desempenham um papel importante na determinação do potencial atlético. Homens têm vantagens insuperáveis em três deles – tamanho do coração, massa muscular magra e VO2 máximo (a capacidade do corpo de levar oxigênio aos músculos). Mas há outros dois: o impulso central e a economia do movimento. O primeiro é a taxa com que o sistema nervoso envia sinais aos músculos, fundamental para manter a intensidade do esforço ao longo do tempo. O segundo é quão eficientemente o corpo se movimenta, determinado pela coordenação e pela estabilidade articular. Tanto o impulso central como a economia do movimento podem ser aprimorados com treinamento e, juntamente a um monte de outras pequenas variáveis, podem exercer um efeito igualador nos potenciais atléticos masculinos e femininos, sobretudo em esportes de endurance.

Um estudo realizado em 2012 por pesquisadores da Universidade Canterbury ChristChurch, na Inglaterra, descobriu que melhorias na eficiência propulsora dos nadadores podem refletir em consideráveis diferenças de desempenho entre atletas com o mesmo VO2 máximo. Um estudo anterior tinha mostrado que atletas com níveis de VO2 máximos inferiores podem se mover à mesma velocidade e intensidade que seus rivais geneticamente mais bem dotados em uma variedade de atividades desenvolvendo a economia do movimento.

“Um estilo elaborado conta mais do que muitos atletas pensam”, diz o fisiologista Michael Joyner, dos EUA, renomado especialista em saúde e performance. “Dependendo do esporte, você pode superar o fato de ter um motor menor se for um motorista melhor.”

A técnica é especialmente importante na natação de longa distância, onde pequenas ineficiências se multiplicam por milhares de braçadas. Assim não surpreende que, como o pesquisador do esporte Beat Knechtle, da Suíça, apontou em vários artigos publicados, mulheres superem homens em duas das três provas de natação de ultradistância em águas abertas mais desafiadoras do planeta: os cerca de 36 km da Travessia do Canal de Catalina, no Sul da Califórnia, e os 45 km da Maratona Aquática da Ilha de Manhattan (os homens são mais rápidos na Travessia do Canal da Mancha, a terceira prova mais dura), ambas nos EUA. Da mesma forma, não há diferença entre os sexos na escalada esportiva, disciplina que requer movimentos precisos. Em 2012, a norte-americana Ashima Shiraishi, então com 11 anos, se tornou a pessoa mais jovem, entre homens e mulheres, a completar uma via 11c.

“Embora homens sejam mais fortes, a escalada técnica envolve muito mais que força pura”, diz a norte-americana Sasha DiGiulian, 24 anos, campeã mundial feminina de escalada esportiva. “São necessárias muita técnica e muita resistência. Mulheres podem ter uma performance melhor que os homens, ou pelo menos equivalente.”

Outro fator significativo é a fadigabilidade, um redutor de performance induzido pelo exercício. Em uma revisão de estudos existentes publicada no ano passado na revista científica Medicine and Science in Sports and Exercise, Sandra Hunter escreveu que os dados disponíveis, embora limitados, indicavam que durante esforços prolongados as mulheres eram mais resistentes à fadiga muscular que os homens. Em 2004, ela realizou um estudo que mediu a fadigabilidade dos participantes realizando contrações isométricas de braços. As mulheres foram capazes de desenvolver uma atividade até a exaustão durante um tempo três vezes maior que os homens – 23,5 minutos versus 8,5 minutos. Sandra diz que isso se deve principalmente a dois fatores. O primeiro é a diferença entre as propriedades musculares de cada sexo: mulheres têm uma quantidade maior de fibras resistentes à fadiga, utilizadas durante exercícios prolongados de baixa intensidade; já os homens possuem mais fibras de contração rápida, melhores em movimentos curtos e intensos. O segundo fator é o fluxo sanguíneo – homens têm músculos maiores que demandam mais sangue, então seus corações precisam trabalhar mais duro.

Rory Bosio na linha de chagada da UTMB de 2013, quando ficou em sétima na geral – Foto: Alo Belluscio/The North Face

“Mulheres têm músculos menores, mas eles não se cansam tão rápido”, revela Sandra. Se um homem e uma mulher aplicam a mesma quantidade de esforço para realizar uma atividade física longa e lenta – que envolve principalmente músculos de resistência, ou seja, mais baseada em habilidades técnicas –, a mulher demorará mais tempo para se cansar, acrescenta a pesquisadora. Outro estudo indica que as mulheres se recuperam mais rapidamente de atividades físicas que os homens, seja lá qual for a intensidade do esforço.

Atletas de endurance do sexo feminino também têm outra vantagem metabólica em comparação aos atletas do sexo masculino – elas obtêm mais energia a partir da gordura ao realizar exercícios aeróbicos de intensidade moderada. Essa é uma vantagem nítida em eventos longos, porque a gordura é um combustível que é queimado mais lentamente que o carboidrato. Enquanto homens precisam ingerir calorias a cada hora ou com uma frequência ainda maior – ato que em si mesmo já requer mais energia do que simplesmente metabolizar a gordura disponível –, as mulheres podem seguir adiante.

Então vem a questão mental. Aqui as mulheres saem ganhando na decisiva arte de manter o ritmo, uma habilidade treinável que homens parecem ter mais dificuldade em aprimorar. De acordo com um estudo do especialista em estatística dinamarquês Jens Jakob Andersen, em maratonas com participação massiva as mulheres mantêm um ritmo 18,6% melhor que os homens ao longo de todo o percurso. “Eles são mais propensos a adotar um ritmo ‘arriscado’, no qual um indivíduo começa a prova a uma velocidade muito alta (em relação ao seu condicionamento), o que aumenta a probabilidade de que depois tenha que ir mais devagar”, escreveu Jens em sua análise. Falando de outra forma, os caras têm mais chance de quebrar.

Rebecca Rusch viu esse filme muitas vezes em provas longas de mountain bike. “Os caras saem torcendo o cabo, mas algumas horas depois eu pego eles”, diz. “Eles sempre perguntam: ‘Por que você larga tão devagar?’, e eu respondo: ‘Por que você termina tão devagar?’.” Embora pareça que as mulheres tenham algumas vantagens biológicas em esportes de endurance, essas vantagens ainda permanecem pouco compreendidas devido à escassez de pesquisas. Agora mesmo trata-se do que não sabemos. Como as diferenças entre os sexos se refletem em uma variedade de esportes e de condições? Há muitas hipóteses, mas nenhuma conclusão.

Dentro das comunidades de praticantes de esportes de endurance, é comum que atletas divulguem teorias infundadas. Entre as mais comuns – normalmente apresentada por homens –, está a ideia de que as exigências do parto fazem com que as mulheres tolerem melhor o sofrimento agudo das provas de ultradistância. Não há pesquisas que respaldem essa opinião. Até os dias atuais, estudos sobre tolerância à dor pediam que os participantes a classificassem em níveis através de uma enquete. Os dados mostraram que homens afirmavam sentir menos dor que mulheres. No entanto os cientistas sacaram que as respostas talvez não fossem tão confiáveis, uma vez que homens costumam ser culturalmente condicionados a não expressar o quanto sentem de dor.

De forma similar, embora os ciclos hormonais das mulheres tenham um impacto importante em seus desempenhos, pesquisadores ainda estão tentando entender essa dinâmica. Estudos mostraram que as flutuações hormonais podem alterar o metabolismo, o que quer dizer que as mulheres precisam se alimentar de forma diferente em distintos momentos de seu ciclo. Outro trabalho indicou que pode existir uma janela ótima para competir. Em um estudo, cientistas sul-africanos descobriram que quase três quartos das ciclistas foram mais rápidas em um contrarrelógio durante a fase de aumento de estrógeno pré-ovulação. Segundo a fisiologista do exercício Stacy Sims, da Universidade de Waikato (Nova Zelândia), a melhor hora para uma mulher competir é imediatamente antes ou depois de seu período menstrual. Essa recomendação contradiz uma antiga prática das atletas de elite de tomar remédios antes de competir para não menstruar durante a prova, para evitar o incômodo e também porque acreditavam que a menstruação as deixava mais fracas. Stacy diz que a falta de conhecimento prejudica tanto a performance das mulheres quanto os estudos científicos. Em Roar, livro que ela publicou em 2016 e que é o primeiro manual de treinamento de endurance escrito para mulheres, a estudiosa aponta o fato de que pesquisadores costumam não reconhecer quão significativamente as flutuações hormonais podem influenciar na performance. “Estou cansada de ver mulheres culpando a si mesmas por resultados que foram completamente afetados por seus ciclos”, fala.

O que é certo: todos os dias, mais e mais garotas e mulheres praticam esportes. Elas continuarão diminuindo as diferenças de performance em relação aos homens. E naquelas corridas loucamente longas, quando depois de muitas horas tudo dói, e os caras que começaram muito forte estão quebrando, e outros estão parando a cada 30 minutos para tomar um gel, as mulheres os ultrapassarão com tranquilidade a caminho da linha de chegada.

Aliás, este é o plano de Rory Bosio. “Quando cheguei entre os top 10 da categoria geral da Ultra-Trail du Mont Blanc, não estava pensando na minha colocação ou em ganhar a prova”, diz ela. “Francamente, queria apenas terminar. Isso me ajudou a correr com uma leveza e um foco que dependiam apenas de mim. O que pode ser a diferença entre homens e mulheres – a capacidade de se abstrair de tudo e apenas correr.”

*Reportagem publicada na edição nº 145 da Go Outside, outubro de 2017.







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