Alucinações na caverna
Quando passou dois meses isolado numa caverna, o aventureiro DAN ROBSON foi obrigado a encarar uma série de ameaças criadas pela sua própria mente
COMECEI A TRABALHAR aos 11 anos e aos 30 tinha uma empresa de informática. Ficava 18, 20 horas na frente do computador. Foi quando deu um clique e decidi me jogar na estrada. Vendi a empresa a meu sócio e falei aos clientes que estava indo passar dois meses caminhando pelo litoral do Brasil.
A viagem se estendeu por todo o ano de 2001, tempo no qual pensei muito sobre a vontade de fazer da aventura uma profissão. Para isso, tinha que realizar coisas realmente diferentes. Ainda na caminhada, um amigo me falou sobre o fascínio despertado por cavernas. Mas vou entrar numa caverna e fazer o que lá dentro? Entrar e sair? Não podia ser. Então li sobre um pessoal que fez um confinamento de 21 dias dentro de uma gruta, estabelecendo o recorde sul-americano. E decidi que ia ficar dois meses numa caverna.
De alguma forma tinha que encarar isso como um trabalho ou seria visto como um maluco qualquer. Um professor da Unicamp (Campinas, SP), José Scaleante, que desejava medir o impacto ambiental que o ser humano causava numa caverna, vislumbrou que poderia usar meu projeto para servir à pesquisa. Ainda havia o objetivo de entender o biorritmo do ser humano na ausência de luz e sem um relógio. E um outro, de ordem pessoal, que era me conhecer melhor. Já eram boas desculpas, concluí.
Escolhi a caverna Alambari de Cima, no Petar (Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira, em São Paulo). Era ideal, pois se encontrava fechada ao turismo. Munido de todas as autorizações, para lá nos dirigimos, eu e minha equipe de apoio. O detalhe é que eu nunca havia entrado numa caverna na minha vida.
Desci com o pessoal, montamos a barraca, a estrutura de alimentação e um sistema de comunicação via cabo. Assim a base podia checar se estava tudo bem no interior da caverna. Havia uma tirolesa por meio da qual me enviavam alimentação periodicamente num saco estanque, e eu mandava de volta um saco com lixo.E lá eles me deixaram. Eu estava bem afastado da boca. Para chegar ali era preciso descer um precipício de rapel e atravessar um rio subterrâneo.
A luz era toda de velas. Eu tinha somente uma pequena lanterna de cabeça. Então com o tempo, a vista dilatou tanto que a vela virou um sol. Às vezes ia até o riozinho com a câmera. Via um crustáceo na água, tirava a foto, mas a lente não era capaz de captar a imagem.
Aí, quando estava havia cerca de um mês lá dentro, num certo dia fui buscar água no rio e escutei “Dan, vem cá”. E alguém passou correndo. Fiquei todo arrepiado. Um tempinho depois, o pessoal me ligou lá de cima e eu perguntei se eles haviam entrado na caverna, e eles negaram categoricamente. Fiquei ainda mais assustado.
Logo, recebi do pessoal uma carta dizendo que havia começado o período de alucinações. “Fique preparado”. Já tinha ouvido de um psicólogo que quando as pessoas são submetidas a uma estadia num local de escuridão total, o cérebro, que tem registrado sons e imagens diferentes de uma vida toda, começa a fabricar visões e sons imaginários.
E quanto mais o tempo passava, pior ficava. Com uns 40 dias de confinamento, via pessoas andando, nitidamente, passava a mão e não sentia nada. Isso me dava um medo danado. Às vezes dormia, tinha um sonho e acordava pensando que aquilo tinha sido real. Ficava tudo embaralhado, realidade e fantasia.
Chegou um ponto em que resolvi encarar. Comecei a trocar idéias com as alucinações. “Dan, vamos embora daqui”. Eu respondia “vá embora você”. E fui levando, sabia que era minha mente produzindo imagens. Mesmo assim era complicado. Eu não estava habituado a lidar com isso. Quando, num dia, vi minha família lá dentro caí na real. “Não é possível”. “Não é possível o que Dan?”.
Mas o mais irônico é que a situação mais apavorante naqueles dias acabou sendo vivida com um ser bem real. Pelo menos foi o que me pareceu. Pois sempre eu ia da minha barraca até o rio, pegar água ou tomar banho. A distância era de uns 50 metros. No começo ia de lanterna, carbureteira e tudo mais que tinha de luz ali. Passado um tempo, fui ficando mais relaxado e passei a ir só com uma pequena lanterninha na cabeça.
Havia um lugar em que eu me jogava na água a partir de uma pedra. E nesse dia, como sempre, pulei e… caí em cima de uma lontra. Ou um bicho parecido. Fiquei de quatro em cima dela. Ela avançou em mim, mas não chegou a me machucar. Acho que, na verdade, assustou-se mais que eu.
O pior veio depois. A única luz que eu tinha à mão, que era a lanterna, foi pro fundo do rio. Fiquei na mais completa escuridão e longe da barraca. Primeiro saí do rio, mas, na margem, não sabia que rumo tomar. A caverna era muito grande e a barraca estava no meio da galeria. Havia vários penhascos. Então pensei que o melhor seria esperar o pessoal chamar pelo interfone. Ouvindo o som, eu me localizaria. Aí caiu a ficha de que isso poderia demorar um dia, uma semana. Bateu o desespero e em seguida a lucidez. “Calma, calma, tenho que pensar!”.
E passando a mão no chão, tive uma boa idéia. Fiz algumas bolinhas de barro e comecei a jogar para todos os lados e com isso mapeei mentalmente onde havia parede. Até que ouvi o barulho da lona. Fui rastejando e cheguei. Nisso se passaram muitas horas, mas eu tinha me safado.
Tudo se acalmou até que um belo dia as pessoas do apoio desceram e vieram me acordar falando que os dois meses haviam acabado. Apertavam minha mão, abraçavam-me e eu só pensava que agora as alucinações estavam aperfeiçoadas. Quando saí da caverna, fiquei horas até me convencer de que era tudo real. Passei 72 horas acordado sem saber se aquilo era sonho ou alucinação. Com medo de dormir e acordar novamente sozinho e dentro da caverna.
Balão acorrentado
ISRAEL WALIGORA já praticou quase todos os esportes de aventura. Ele só não imaginou que o maior perrengue de sua vida aconteceria num singelo voo panorâmico de balão, ligado ao chão por um cabo de aço
EM 2000 RESOLVI PASSAR AS FÉRIAS na África com minhas duas filhas, na época com 8 e 10 anos. Fomos para o Zimbábue, onde tem um lodge que aceita crianças num lugar bacana, perto do Parque Nacional Hwange e das cachoeiras de Victoria. Várias atividades de aventura são oferecidas aos visitantes: rafting, safári num 4×4, bungee jump. E também um balão que sobe preso a um cabo de aço. Este nos pareceu ser uma forma incrível de se ter uma vista panorâmica das cataratas e da região, que é plana. Parecia a atividade mais tranquila do lugar. A estrutura do negócio aparentava ser muito segura: um balão de hélio sustentando uma grande gaiola circular de metal, com capacidade para cerca de 30 ou 40 pessoas. Tudo isso ligado a um cabo de aço com a espessura da coxa de um homem adulto, saindo de uma espécie de casamata de concreto. Eles vão soltando o cabo de aço e o balão vai subindo, chegando a mais de 100 metros. Depois simplesmente o cabo é recolhido. Além de tudo, foi uma empresa européia que montara a atração.
Eu gosto de atividades de aventura nas quais a segurança depende do praticante. Não me agrada parque de diversões, pois aí tem um risco que foge ao seu controle. Prefiro me pendurar num paredão de rocha, onde a segurança depende de minhas habilidades, limitações e prudência. Mas o balão me pareceu uma coisa segura. Todo dia tinha filas de gente de todo o tipo, muitos até fora do peso, sem aparentar aptidão alguma para esportes.
Escolhemos o horário do fim de tarde. Pagamos e fomos. Tudo estava indo muito bem lá em cima: a paisagem, o pôr do sol, as cataratas, o efeito do vapor que sobe. Enfim, um passeio perfeito.
A gaiola é fechada, cercada por uma tela de metal, e dividida em espécies de gomos. Numa gaiolinha menor, ia um funcionário com um rádio. Aparentemente não havia nenhum controle com que ele pudesse manejar o balão. Todo maquinário ficava em terra.
Num certo momento, começou a ventar. Pouco mais que uma brisa. O balão balançou um pouquinho, mas no começo foi bacana, deu uma pequena emoção. De repente, o vento apertou, dando lufadas fortes, e o balão começou a variar bastante lá em cima. A coisa foi piorando até que ele derivou totalmente para baixo, ficando com o cabo esticado na horizontal, quase na altura das árvores. Então a lufada parou e o balão ficou solto, subindo com tudo até dar um forte tranco quando o cabo estirou novamente. E a coisa foi se repetindo a cada nova lufada.
Quando olhei para baixo, comecei a me preocupar. Lá havia uma grande feira de artesanato. Percebi que a multidão toda estava parada olhando para o balão. A coisa devia estar ficando grave. E não dava para recolher rapidamente o cabo pois quando o balão derivava para baixo o cabo ralava no concreto da casamata e não podia ser puxado.
E, muito pior: o cabo também roçava em cima, na base da gaiola, que era de metal. Talvez eles não tivessem previsto isso, pois não havia nenhum tipo de proteção para o cabo. A cada baqueada do balão, a gaiola ralava um pouco o cabo e aos poucos começaram a arrebentar os fiozinhos de aço que formavam o cabo.
Nos poucos instantes em que o balão ficava na vertical, os caras iam puxando, porém isso acontecia muito lentamente. O vento foi ficando mais e mais violento e havia pouco tempo de cabo vertical para recolher o balão. Dentro da gaiola, as pessoas estavam apavoradas. Minhas meninas estavam muito assustadas também, mas por sorte não tinham muita noção do que acontecia. O cabo foi ficando como um novelo de cabo desfiado. E o funcionário com o radinho só falava “não entrem em pânico”. Não tinha mais nada a fazer.
Chegou uma hora em que as pessoas pararam de olhar para fora e só prestavam atenção no cabo. Ele não podia romper. Com toneladas de gás, caso isso ocorresse, subiríamos que nem um foguete para o espaço. E todo mundo morreria, não sei se de frio, de falta de oxigênio, ou dos dois.
Eu só pensava que alguém podia ter um fuzil lá embaixo, que pudesse dar um tiro no balão, o fazendo despencar antes que o cabo rompesse de vez. Melhor seria todo mundo cair e se machucar, mas pelo menos uma parte das pessoas sobreviver. Ficava pensando num jeito de sair fora, mas não tinha como. E algumas pessoas ficavam chacoalhando as portas, tentando sair dali. Se pudessem, acho que alguns teriam pulado, mesmo estando acima das árvores.
Por fim, fomos baixando e chegamos ao chão. Talvez tudo tenha demorado meia hora, mas nesse momento cada minuto dura muito. Antes de descer, dei uma última olhada no cabo. Não se via mais o miolo, só uma massa de aço desmanchado em volta, tipo um novelo de cabelo. Não sei quanto mais resistiria.
Minhas filhas estavam bastante assustadas. A mais nova saiu xingando e ficou dois dias sem falar com a gente.
Fiquei pensando: quando se faz uma atividade de aventura, volta e meia depara-se com uma situação crítica, mas aí depende da capacidade do praticante de manter a cabeça fria e encontrar uma saída. Ali, eu estava à mercê. A única coisa que podia ter feito era não ter entrado naquele balão.
Mar revolto
Quando o surfista e jornalista EDINHO LEITE entrou com um amigo no mar para um resgate, eles acabaram encurralados de frente para o costão, mantendo-se numa corda bamba entre pedras e vagalhões
UMA DAS MAIORES RESSACAS de que se tem notícia em Florianópolis (SC) coincidiu com a realização o Hang Loose Pro Contest, em 1986, campeonato internacional que deveria ficar para a história apenas pelas memoráveis ondas. Mas a coisa não começou bem.
Logo na manhã do primeiro dia, quando cheguei à praia da Joaquina, palco do evento, o mar estava fora de controle. Havia surfistas sendo resgatados por companheiros, pranchas quebradas e ondas enormes. A prova foi suspensa até segunda ordem. Em meio à confusão geral, o locutor avisou que havia um bodyboarder próximo ao costão que não conseguia sair do mar. Eu e o Alberto Alves, meu melhor amigo, estávamos na areia e, é claro, caímos no mar para ajudar.
Não havia ali um barco que pudesse efetuar o resgate e ainda não existiam jet-skis. Não foi difícil encaixar o sujeito numa onda e logo ele estava na praia. Em seguida, ouvimos pelo microfone que havia um surfista lá fora, igualmente em apuros. Remamos para trás da rebentação, mas não conseguimos chegar ao ponto. O mar aumentava a cada série e começamos a ser arrastados. De tantas bombas quebrando, mal percebemos que nos aproximávamos perigosamente do costão.
A correnteza era impressionante nesse momento. Não dava para remar paralelo à linha da costa, tentando fugir das pedras. Era remar pra fora tentando sair da linha da rebentação, que se estendia muito naquele momento. Normalmente teria uma onda surfável ali para nos levar até a praia. Mas estava tudo fechado. E nós cada vez mais próximos do paredão.
Então começou nossa saga, pois a gente remava, remava, remava, explodiam ondas lá fora, tínhamos que tentar passar debaixo das volumosas espumas e éramos arrastados de volta pelo curto percurso conquistado. Por sorte, quando a onda explodia contra as pedras e voltava, dava um empurrãozinho pra fora. Mas não havia refresco: logo atrás vinha outra onda.
E foi juntando uma galera no alto das pedras, berrando pra gente e dando apoio moral. Era assustador. Sentia um misto de adrenalina, medo e até constrangimento por estar diante da possibilidade de morrer no principal evento que o país produzira até então. E com plateia! Isso não podia acontecer. Eu já havia surfado em boa parte do mundo. Não era esse o epílogo que havia imaginado para a minha vida.
Chegaram a berrar que um helicóptero estava a caminho, o que nos deu mais um choque de realidade sobre a gravidade da situação. Cheguei a ficar tão perto do costão (às vezes, via os mariscos) que aventei a possibilidade de me deixar levar e tentar agarrar numa pedra, mesmo sabendo que não se tratava de uma idéia viável. Não era nem uma loteria, mas um bilhete errado, com um prêmio catastrófico.
A presença do meu melhor companheiro de viagens, vida e surf na mesma roubada foi crucial para manter a fé na remada, a cabeça no lugar e desviar maus pensamentos. Se estivéssemos sozinhos seria muito mais crítico. Demos equilíbrio emocional um para o outro. E concluímos que não valia a pena lutar com todas as forças contra a ininterrupta rebentação. Seria impossível superá-la. Gastaríamos, à toa, toda nossa energia. O melhor era manter a perigosa – mas até aquele momento sustentável – posição, aguardando uma trégua do mar para tentar um ataque certeiro.
Depois de um tempo que teve a sensação de eternidade, a oportunidade surgiu com uma pequena janela entre as séries. Apesar da adrenalina máxima, que me deixou sem uma gota de saliva na boca, eu não estava num estado de tremedeira, em que os músculos ficassem pesados, sem reação. Muito pelo contrário, estava de alguma forma relaxado. E conseguimos. Tomamos umas três bombas na cabeça, mas saímos da zona de risco e começamos a remar de volta para a praia, lutando contra a forte correnteza.
Quando já estávamos na frente do palanque montado para o campeonato, mas ainda atrás da linha de rebentação, encontramos um colega bastante aflito, que não conseguia sair. As pranchas eram pequenas para aquelas ondas, mas teríamos que descer uma, nem que fosse estourada. De repente, ouvi toda aquela gritaria caótica novamente. Senti um frio na espinha pensando estar novamente na frente das pedras.
Não era isso. Quando olhei pra fora uma série que eu nunca havia visto se erguer tão longe, a uns 100 metros além da linha normal do outside, marchava direto em nossa direção. Já tínhamos passado tanto nervoso que começamos a rir. A maior parte das ondas quebrou na nossa frente. Mergulhamos e confiamos em nossas cordinhas. Deu certo. Depois disso cada um de nós conseguiu dropar uma onda e, como brinde de Netuno, foram incrivelmente boas.
Ao chegar à praia, a visão era de uma cena de guerra. Todas as tendas, o palanque, estava tudo destruído. O mar subia pelas dunas. Então percebemos: havíamos enfrentado o ápice daquela ondulação tenebrosa. Nesse momento, olhei para o oceano em fúria e vi ao longe o barco dos bombeiros chegando. Antes tarde do que nunca. De todo jeito, não poderiam ter ajudado em nada.
No dia seguinte, o mar se acalmou e Joaquina sediou um dos mais memoráveis campeonatos de surf do Brasil.
Fim da trilha
A trilha próxima ao pico das Agulhas Negras, no Parque Nacional do Itatiaia (RJ), acabou num precipício e o passeio de férias de FERNANDO LAMARDO virou um pequeno pesadelo
ESTÁVAMOS SUBINDO há um bom tempo e num certo momento atravessamos uma espécie de túnel na rocha em que não dava para ver o que havia à frente. Eu era o penúltimo da fila e ouvia o pessoal que já tinha passado falando algo como “nossa, estamos num lugar aberto”. Logo idealizei um gramado verdinho, algo bem bucólico. Aí eu chego lá e visualizo o que, na realidade, não passava de uma rocha de não mais de 1,5 metro de diâmetro, onde as pessoas se empilhavam. Um penhasco e nada mais. Pensei “caramba, o que estou fazendo aqui?”.
Não gosto de altura. Não se trata exatamente de pavor, mas altura é uma coisa que me incomoda. E lá estava eu quase no topo das Agulhas Negras, pulando de pedra em pedra na beira de precipícios.
Na noite anterior, tomamos vinho e martíni no acampamento. Isso foi em 1990. Éramos sete, tudo molecada de 18, 19 anos no começo da época de faculdade. Como duas dessas pessoas já haviam feito aquela trilha algumas vezes, não contratamos guia – nosso primeiro erro. O segundo: começamos a caminhada tarde, quase ao meio-dia. A trilha exige umas 3 horas para subir e outras duas para descer. Não fizemos sequer a simples conta de 2 mais 3 para saber que a caminhada levaria, no mínimo, 5 horas. Como era inverno e escurecia cedo, estaríamos de volta na melhor das hipóteses no final do dia. Analisando hoje, é óbvio que estávamos pedindo pra cair numa roubada.
Chegamos ao topo por volta das 15h30 e iniciamos a descida meia hora depois. Um dos caras viu uma seta marcada na rocha e falou “é pra cá”. E descemos por um caminho diferente do da subida. Imaginamos que era assim: sobe por uma trilha e desce por outra. Depois saberíamos que aquela descida era para o pessoal que faz alpinismo.
O terreno foi ficando íngreme, mas persistimos e avançamos. O que antes era um a trilha começou a exigir pequenas escaladas e alguns saltos de rocha para rocha de 2, 3 metros. A situação foi ficando tensa. Em alguns pontos, era preciso colar o corpo inteiro na pedra para descer escorregando a encosta íngreme. E íamos nos ralando.
Num determinado momento foi necessário atravessar uma fenda com a ajuda da corda. Até o penúltimo de nós foi relativamente tranquilo. Mas como faria o último, que tinha de levar a corda consigo? O mais alto, o Fred, se candidatou e falou que passaria dando uns pulos e agarrando-se às pedras, na raça. Só que no meio da passagem ele escorregou e foi com tudo em direção ao platô logo abaixo, numa velocidade que só poderia passar direto e cair no precipício. Na hora em que ele passava, minha prima, que estava ali, se atirou sobre ele e os dois bateram com tudo na encosta. Ninguém se machucou, mas foi o suficiente para o pânico se instalar. Finalmente caiu a ficha do óbvio: a situação era muito delicada.
Agora eu tinha a certeza de que estávamos perdidos. Agulhas Negras não é um lugar totalmente inóspito. Você vê marcas de pessoas. E ali não havia nada. Ninguém conhecia o lugar, uma das meninas estava entrando em pânico e a comida era quase nada. Lá pelas cinco da tarde, já começando a escurecer, ficou evidente que teríamos mesmo que passar a noite na montanha.
Escolhemos um vão entre duas rochas, com cerca 1,5 metro de comprimento e, no máximo, 30 centímetros de largura. Dava pra nos proteger um pouco do frio, porém era desconfortável a ponto de eu ter de colocar meu sanduíche embaixo como assento. Depois eu ia comer migalhas, mas era melhor assim.
Empilhamo-nos, os sete, do jeito que deu e ficamos cantando, tentando disfarçar o medo. Num dado momento uma das meninas se descontrolou. Ela repetia que não ia ficar ali, que preferia descer. Aí alguém deu um tapão nela, do tipo “acorda para a vida”. Uma coisa necessária. E isso teve o efeito de acalmar a todos um pouco.
Havia quatro estudantes de medicina e eles se mantiveram atentos a algum sintoma, por exemplo, de congelamento dos dedos. Não sei a temperatura que enfrentamos, mas no alto da montanha com o forte vento a sensação térmica era de muito frio. Sei que fiquei com o rosto todo queimado.
Como estávamos muito apertados, não dava para permanecer sentado, pois o corpo todo adormecia. Era preciso levantar, fazer algum movimento. Eu tinha pavor dessa hora porque estava na ponta, bem na beira do abismo. Se alguém desse um esbarrão em mim eu despencaria.
Eu pensava “e amanhã?”. Para completar a lista de imprudências, não tínhamos avisado ninguém. Para o pessoal do parque nacional, comunicamos que íamos acampar por alguns dias. Ou seja, iam demorar a achar algo estranho.
Mas lá pelo final da noite, vimos uma luzinha ao pé da montanha. Demos sinal de lanterna. Infelizmente fechou o tempo e começou a garoar. Depois de um tempo que pareceu uma eternidade, vimos a luz novamente, agora piscando. Lembro-me da sensação reconfortante de ver uma segunda luz sendo acesa e saindo no sentido contrário da montanha. Imaginei que iam avisar alguém.
Quando clareou, os dois caras que tinham a tal suposta experiência em escalada decidiram arriscar a descida. E se foram. Não tínhamos absolutamente nada a fazer. Lá pelo meio da manhã ouvimos gritos. Imaginamos que eram nossos amigos despencando, depois soubemos que estavam gritando por ajuda. Logo em seguida veio uma das melhores sensações da minha vida, ao ver quatro alpinistas chegando, com uma agilidade que jamais me esqueço. Parecia que se deslocavam no plano. Como era possível alguém andar assim num lugar desses? Eles nos conduziram em dois lances de rapel, um mais tranquilo e outro com inclinação negativa, para finalmente chegarmos em terra firme.
Quando encontramos os dois que tinham descido na frente, já havia umas 20 pessoas lá. É impressionante como a informação circula rápido mesmo num lugar como aquele. Nos falaram: “nunca faça o que esses dois fizeram. Não morreram por muita sorte. Eles desceram por uns lugares que ninguém passa. Vocês ficaram presos, iam ficar um, dois dias até serem resgatados, mas o que eles fizeram foi extremamente perigoso”. E esses dois garotos eram os nossos experientes guias na montanha.
Chegando ao acampamento, pegamos as coisas, enfiamos tudo no carro de qualquer jeito, e tocamos dali. Como se fosse uma fuga. Não consigo imaginar qual poderia ser a gravidade desse episódio caso não houvesse um grupo de alpinistas por ali preparados para nosso resgate.
O positivo dessa situação foi que criou um vínculo forte entre os que a compartilharam. Às vezes encontro com algumas das pessoas que estavam lá, de que nem sou amigo – vi dez vezes na vida, no máximo –, mas sempre acontece aquele abraço fraterno e o sorriso feliz de jovens cúmplices que aprontaram feio e saíram ilesos.
Barqueiro psicótico
O tempo estava bom e o mar da baía não assustava. O advogado RODRIGO NUNES já pensava na moqueca que iria saborear quando se viu nas mãos de um barqueiro surtado
DEPOIS DE PASSAR O ANO NOVO de 2001 no Pouso da Cajaíba, perto de Paraty (RJ), resolvemos – eu e minha namorada na época – voltar pra casa alguns dias antes do nosso grupo. Para quem não conhece, não se tem acesso para o Pouso por estrada: é preciso ir de barco a partir de Paraty, numa viagem de cerca de uma hora e meia pela baía. Teoricamente, uma travessia agradável e sossegada.
Havíamos acampado, durante aqueles dias, perto da casa de uma família de pescadores que nos dava um apoio em troca de uma pequena diária. Algo bem informal. E nesse último dia, estava nessa casa um barqueiro que ofereceu nos levar de volta a Paraty. Imaginamos que ele era aparentado do nosso anfitrião, e este nos pareceu ser um senhor respeitado naquele lugar, de forma que nos sentimos seguros em contratar o traslado.
Eu tinha notado que na casa eles estavam tomando um pouco de cachaça. Cheguei a vê-los virando copo. Mas não me preocupei com isso. Pensei, generalizando de uma forma ingênua, que pescador está acostumado a beber e fica sempre tudo bem.
Nossa turma, que incluía minha irmã, insistiu que ficássemos. Mas era um dia que teria trânsito bom e já estávamos a fim de voltar pra casa. E acabamos saímos por volta das 14h. Hoje, recordando, lembro que o barqueiro não tinha uma cara muito boa.
Mas estávamos absolutamente tranquilos até que, por volta da primeira meia hora da viagem, ele começou a passar mal. Só então percebemos que ele estava completamente embriagado. Depois que ele vomitou bastante, insistimos para retornar. Mas o barqueiro falou que dava para seguir.
A partir daí, passou a ter um comportamento agressivo conosco. Parecia ser uma espécie de delírio, meio como se estivesse sendo perseguido. Recordo-me que o pescador nosso anfitrião achava que eu era bombeiro, não sei por que cargas d’água. E nosso barqueiro tresloucado fez alguma associação maluca na cabeça dele e pensou que eu era policial. E que ia prendê-lo por estar bêbado e pilotando.
Numa dos momentos em que ele vomitava, avistei uma pequena fragata da Marinha. Sinalizei imediatamente. O barco encostou e aí cometi uma estupidez. Deveria ter relatado o problema, procurando me livrar da situação ali mesmo. Mas acabei não fazendo isso. Pois nosso barqueiro surpreendentemente se reergueu, falou que estava tudo bem e que podia seguir normalmente. Eu confiei, achando que aquela crise havia acabado. Evidentemente que foi uma vacilada, mas eu não queria que o cara ficasse contrariado comigo, pois minha irmã continuava em Cajaíba. Eu temia alguma represália. Isso, aliás, foi o que me amarrou na história toda. Lembro exatamente da sensação de vazio ao ver o barco da Marinha se afastando.
Pois a partir daí a coisa azedou de vez, tanto o enjoo do sujeito como sua animosidade. Num dado momento, quando ele foi vomitar mais uma vez, fiquei assustado e meio por impulso acelerei o barco, como quem quer dar um jeito desesperado de chegar logo. E o cara se enfureceu com isso.
O terror já estava instalado a bordo e agora o paranóico era eu. Ele tinha um facão que ficava sempre por perto, o que me incomodava profundamente. Eu pensava de tudo. Coisas como “ele vai me jogar no mar e ficar no barco com minha namorada”. Cheguei a cogitar pensar em empurrá-lo para a água, já que navegávamos muito perto da terra. Tinha a nítida impressão de que ele podia fazer algum mal a nós. E estávamos vendidos naquela situação: cercados por água, dentro de um barco com uma pessoa tomada por delírios persecutórios, armada com uma peixeira. E dependíamos justamente daquele sujeito para sair dali. Se fosse só a bebida, tudo bem, mas ele estava em surto. Porque um bêbado você leva no bico, mas um surtado é mais difícil de compreender e saber como agir.
Isso tudo aconteceu nos primeiros 40 minutos. Ainda tinha cerca de uma 1h20 de travessia, o que numa situação dessa vira uma eternidade. Fui segurando a onda, tentando mudar de assunto e levar o diálogo para uma zona de conforto. “Você é pescador, como está a situação da pesca?”.
Finalmente, em algum momento ele se restabeleceu e tive a impressão de que começou a tirar sarro da minha cara. Embora procurasse me mostrar dono da situação, meu medo era evidente. Quando entramos na baía de Paraty e já avistávamos o porto, ele de repente falou “vou voltar”. E começou a retornar. Aí tive que bancar. Travei o timão à força e falei: “agora nós vamos pra Paraty, que é o combinado”. Então, ele se afinou e encostou no porto, miúdo.
Ao desembarcar, tive vontade de bater nele, denunciá-lo à Capitania dos Portos. Mas, pensando na minha irmã, simplesmente paguei o combinado e fui embora. Pra terminar, entrei no melhor restaurante de Paraty. Depois dessa, precisava me sentir um pouco na civilização.
Bafo de onça
Os competidores da Jungle Marathon podiam optar entre seguir à noite mata adentro ou descansar até o dia amanhecer. A jornalista ANDREA ESTEVAM resolveu ir adiante. Estava acompanhada por pessoas experientes… e também por uma onça
Esta história aconteceu em 2003, durante a Jungle Marathon, ultramaratona de 250 quilômetros divididos em seis etapas que é disputada anualmente na Amazônia. O percurso é todo feito em trilhas demarcadas que correm ao longo do rio Tapajós, no Pará, com chegada em Alter do Chão, uma vila turística cheia de praias fluviais.
Tradicionalmente, a quinta etapa da prova é sempre a mais longa, com cerca de 90 quilômetros. Mesmo largando cedinho, 5 da manhã, os competidores têm de passar a noite na mata – seja correndo, seja no acampamento montado pela organização.
Nesse dia, a prova começou com uns 40 quilômetros em trilhas fechadas, seguidos de outros 30 quilômetros numa estrada de terra cheia de aranhas gigantes (no começo, achei que eram alucinações de cansaço, mas depois vi que eram aranhas enormes mesmo). Chegamos já de noite na entrada do segundo trecho de single track no meio do mato fechado. Ali havia um acampamento da organização para os corredores que preferissem dormir e continuar à luz do dia (com o relógio correndo, claro).
Durante todo essa etapa eu acompanhei alguns militares do exército amazonense que estavam participando da prova. Os caras sabem andar no mato! Quando chegou o momento de decidir parar ou continuar, fiquei muito na dúvida. Por um lado, eu estava animada e me sentindo bem; por outro, a possibilidade de darmos de cara com uma onça arrepiava os pelos da minha nuca. O treinamento que nos deram antes da prova só servira para me deixar com mais medo desses bichos. Mas o tenente me assegurou que não havia perigo em continuarmos e que ele saberia como agir caso a danada aparecesse. Assim, eu, os dois militares e mais um brasileiro (o ultramaratonista Carlos Dias), mais um alemão que entrou de gaiato no grupo de última hora, nos embrenhamos na trilha, com lanternas na cabeça e fé que estava tudo bem.
Nem tivemos tempo de nos reacostumar com a umidade da mata. Em 10 minutos, o tenente, que seguia na frente, parou e disse de supetão: “ouvi barulho de onça”. Havia sons de tudo que era bicho ali. Aves, insetos e um mais forte que para mim parecia ser um sapo-martelo ou uma coruja, sei lá. Não era um rugido como eu imaginava ser o som de onça. Mas ele garantiu: “É ela. Esse é o barulho que ela faz quando está caçando. Ela está esturrando’”, ele disse.
Na hora fiquei com a perna bamba. Ficamos num dilema: voltar ou não voltar? O tenente manteve o semblante tranquilo. Falou que poderíamos prosseguir, com alguns cuidados. “A onça não vai atacar se achar que somos um animal maior que ela”, garantiu. Então ele ordenou que andássemos bem juntos, em fila indiana, e que falássemos alto.
Fomos gritando e cantando sem parar, mas a verdade é que eu estava em pânico. Tinha a impressão de que a qualquer momento a onça ia saltar de repente e nos atacar. Pra piorar, o cara do exército começou a demonstrar um pouco de tensão também. A cada som da onça, ele gritava: “junta, junta, fala mais alto!”. O barulho estava cada vez mais próximo, até que o tenente arrancou um galho de palmeira, entregou-o ao alemão, que ia ao fim da fila, e pediu para que ele o arrastasse atrás de si. Olhando de fora, a cena era ridícula: cinco adultos andando de “trenzinho”, gritando, e um deles balançando um galho de palmeira.
Eu segurava a mochila do tenente, que ia à minha frente, com a mão direita. Na outra mão, eu levava uma faquinha minúscula, ridícula. Era obrigatório carregar uma faca durante toda a competição, mas, preocupada em economizar peso, eu havia levado uma faca de cozinha mesmo, daquelas com cabo de plástico. Os caras do exército tinham facões, o que me dava uma certa segurança. Eu repassava mentalmente as instruções dadas antes da prova: nunca dar as costas para a onça, que geralmente ataca o último da fila (coitado do alemão!). Ficar de costas para uma árvore e levantar os braços. Era tudo o que eu lembrava.
E a bichona não deu trégua durante as três horas que passamos no mato. Ouvíamos o barulho à frente, à direita. E aí parava. De repente, percebíamos o mato se mexendo bem ao nosso lado. Cheguei a sentir o cheiro forte dela (graças a esse fedor inconfundível é que eu posso dizer com certeza que havia uma onça ali). Mas não a víamos, o que pra mim era quase pior. Até que finalmente chegamos ao fim da trilha. E aquele pequeno pesadelo se encerrou.
No dia seguinte, conversando com moradores da região, ouvimos que nos últimos dias estava havendo, nos poucos locais habitados dali, diversos casos de ataques de onça a vacas e cabras, pois era um período de caça escassa. E nós cinco quase viramos aperitivo.
Cercado por tubarões
O designer e surfista RODRIGO SILVEIRA nunca imaginou que depois de quase um ano surfando na Austrália – um mar de tubarões brancos e tigres – daria de cara com o tal bicho justamente na Indonésia. E que precisaria fica 10 minutos olhando para ele
JÁ ESTAVA QUASE COMPLETANDO um ano de intercâmbio na Austrália quando surgiu a ideia de fazer uma boat trip pela Indonésia, com uns amigos. Ou seja, já tinha tido tempo para aprender muito bem a respeitar os alertas de tubarão – frequentes em Bondi Beach (Sydney), onde eu morava – e a pensar três vezes antes de cair em mar vazio de ondas perfeitas. O risco de ataque desses bichos na Austrália é grande, tanto que várias praias são cercadas por rede para que eles não entrem. Ou seja, quando chegamos a Bali, eu e mais dez caras, embora não estivesse em território livre de tubarões, me senti praticamente seguro.
Foi nesse clima que embarcamos para a viagem de 12 dias. O barco que alugamos era como os de mergulho, só que adaptado para acomodar os onze de nós, mais cinco tripulantes. O destino eram ilhas em torno de Bali – Nusa Lembogan, Lombok e Sumbawa. Do roteiro todo, a atração principal para mim seria a praia Desert Point, um pico de Lombok famoso por uma onda entre as melhores do mundo, que nunca quebra. Chegamos lá no nono dia.
Desert Point é uma praia quase deserta, que beira mata fechada e tem mar azul transparente. De interferência humana se vê apenas algumas choupanas de madeira abandonadas. Sua principal atração, no entanto, mais que a paisagem, são as lendárias ondas. E lá fomos nós até elas em três viagens de bote inflável, já que o barco não podia chegar tão perto da praia, cerca de 100 metros. Algumas ondas depois, um dos caras gritou ter visto uma barbatana.
OK, não era a primeira vez que ele fazia isso. O cara é meu amigo e eu sei que ele morre de medo de tubarão. E em águas transparentes como aquelas é fácil ver bichos e se apavorar. Eu mesmo, dias antes, quase precisei de fraldas quando um bicho enorme e escuro, maior que meu pranchão, resolveu ficar parado exatamente embaixo de mim. Nadou e simplesmente parou embaixo da minha prancha, mesmo sendo bem maior que ela. Encolhi braços e pernas pra dentro da prancha enquanto gritava para meus amigos. Todo mundo achou que era um maldito tubarão ou algo do tipo, mas descobri depois com nativos que o monstro não passava de um mamífero enorme chamado elefante-marinho. Vai explicar isso na hora que ele está bem abaixo de você.
Enfim, foi por isso que ninguém deu ouvido quando meu amigo começou a gritar “Barbatana! Tubarão!”. “Ah, Guga, relaxa! Que tubarão o quê”. Mas vou falar uma coisa: a barbatana veio chegando perto rapidinho e passou na nossa frente em linha reta. No máximo, fazia movimentos com ângulo reto. Tubarão tem um jeito inconfundível de nadar. Quando pareceu a segunda barbatana, paramos os onze de respirar.
Havia dois tubarões à nossa frente, vindo de direções opostas, e que resolveram ficar por ali. Ora os víamos fazendo aquele zigue-zague característico, ora não. Ninguém queria saber de sequer se encostar na água, mas se quiséssemos sair dali, não teria jeito. Toca todo mundo então de entrar até a cintura na água e levantar a prancha para acenar com ela. Era o sinal que tínhamos combinado com os tripulantes do barco e o momento em que mais sentimos medo. O bote demorou 5 minutos para chegar, e então subiram nele os cinco que estavam mais perto. Claro, eu não. Nesta hora, quando o bote foi embora e deixou a mim e mais cinco na água, foi o pico de adrenalina da história. Não havia nada a fazer a não ser esperar. Foi o que fizemos. Em silêncio, pernas e braços pra cima, olhos nos bichos, durante os mais intermináveis 10 minutos até o bote voltar.
Turbilhão de águas brancas
PEDRO OLIVA e seu amigo David Stefan, dois feras das corredeiras, foram surpreendidos por uma tromba d’água em um rio classe V no Equador – e juram terem sido guiados para fora do rio por um casal de senhores nunca encontrado
PARTICIPANDO DE UM CAMPEONATO de caiaque freestyle em Brotas em 2005, eu e o David Stefan conhecemos um canoísta equatoriano, o Altamirano. Já sonhávamos em fazer uma expedição internacional de caiaque, e essa era a oportunidade. Combinamos que nós levaríamos os equipamentos que ele comprou no Brasil, e ele nos mostraria tudo dos rios da região.
Embarcamos num ônibus com 580 quilos de bagagem, entre botes de rafting, caiaques e equipamentos de canoagem, rumo a Quito, capital do país. Durante nossa passagem pela Bolívia, fomos assaltados na rodoviária. Roubaram nossas filmadoras e dinheiro. Para completar, ao chegarmos ao Peru, sem grana para comer, ficamos dois dias retidos na polícia de imigração por causa da quantidade de equipamentos que estávamos levando. Foram 10 dias de perrengue para chegar ao Equador.
Lá, Altamirano acabou nem nos pagando pelo transporte de tudo aquilo e ainda sumiu com a namorada depois de vender o equipamento. Só nos restava nossa experiência e nossos próprios equipamentos, e foi com isso que saímos batendo na porta das agências de rafting e canoagem, à procura de trabalho.
Fomos contratados pelo Alfredo Menese, da Equador Adventure, para guiar expedições em rios e trekkings para o vulcão Cotopaxi e para a selva Amazônica. Vivíamos em Baños de Água Santa, uma cidade mágica, na beira de um vulcão. Além do trabalho de guias, fazíamos segurança no rio e às vezes filmagens. Depois de uns cinco meses por lá, a vida já estava estabilizada e dava até para curtir os dias de folga.
Em um desses dias, resolvemos explorar o rio Pastaza, um classe V que nenhum guia local havia descido. A agência oferecia 150 dólares de recompensa para quem o remasse. Fomos até lá uns dias antes e achamos que dava para encarar. O visual era incrível: um cânion bem profundo, água verde esmeralda, muitas curvas e corredeiras cercadas por floresta amazônica.
Já com chuva, pegamos uma carona na cidade até o ponto de entrada do Pastaza. A descida levaria entre 4 e 5 horas, e um carro nos pegaria no ponto de saída – uma ponte pênsil abandonada. Logo que entramos, depois da primeira sessão de corredeiras, começamos a perceber que o nível da água estava subindo muito rápido. Uma comporta fora aberta na parte de cima do rio para dar vazão às águas da chuva e aquela tromba d’água fez o nível subir de 2 para 4,5 metros em poucos minutos. As pedras foram cobertas com muita rapidez e as corredeiras começaram a gerar ondas enormes. Não conseguíamos mais parar nos remansos para analisar as próximas corredeiras.
Tínhamos que sair do rio, mas para isso era preciso cruzar para a margem esquerda. Só que não havia como vencer a força das corredeiras para chegar do outro lado. A força da remada era insignificante perto do volume das ondas. A situação estava ficando fora de controle. De repente, tanto eu quanto ele vimos um casal de velhinhos no alto da margem esquerda. Nessa hora, tivemos a sensação de que deveríamos tentar chegar ali, pois se havia gente na margem, é porque deveria haver uma saída. Analisamos o rio para decidir como encarar as próximas corredeiras classe V.
O David foi na frente. Havia ondas de dois metros que faziam uns buracos. Ele sumiu dentro de uma dessas ondas. O rio suga o canoísta e o caiaque e continua arrastando tudo por baixo da água, te jogando lá na frente, como um submarino. Depois de ficar preso no refluxo, ele conseguiu sair e parar numa pedra para me esperar – só que eu não sabia disso. Eu estava preocupado porque não sabia se o veria novamente.
Tomei um caldo muito longo no mesmo local. Fiquei preso em um rodamoinho, minha glote travou e eu fiquei sem força nenhuma nos braços, pois não havia oxigênio nos músculos. Eu não tinha força para remar e já estava passando do ponto de saída da corredeira. Mais um pouco e eu cairia numa sessão classe VI e dificilmente sobreviveria.
O David jogou o cabo de resgate na hora exata e eu consegui me segurar para que ele me puxasse para fora do redemoinho. As paredes do rio eram muito inclinadas e formadas por pedras e muita vegetação. Não havia trilha e era muito difícil caminhar. Finalmente na margem, conseguimos nos sentir a salvo e respirar aliviados. Foi muito assustador. Aquele volume de água chega a arrastar casas e nem pode mais ser considerado canoagem.
Vencemos o cânion e percebemos que não havia casa alguma e nenhum sinal do casal, que mais parecia dois anjos na margem nos iluminando.
Serpente no caminho
Urbana por essência, a produtora de cinema Júlia Bock se aproximou da natureza após ser picada por uma cobra
CANSADA DEPOIS DE UMA SEMANA estressante em São Paulo, fui passar um feriado na casa de uma amiga no sertão da praia da Barra do Una [litoral norte paulista]. Fomos eu e meu namorado na época. Isso aconteceu em outubro de 2007.
Chegamos à noite e pela manhã acordei disposta a me aventurar pelas cachoeiras da região. Ali há duas cascatas mais conhecidas, uma seguida da outra. Vesti uma sandália, coloquei roupa de caminhada e seguimos até a última delas, que se chama Poção do Escorrega.
Estou acostumada a caminhar, mas comecei a cansar, pois a sandália machucava meu pé. Que ideia! Era uma coisa bem de quem mora na cidade, ir caminhar de sandália. Eu estava completamente arrependida da ideia da trilha e já infernizava meu namorado, reclamando muito, quando enfim chegamos.
Faltava só descer uma espécie de escadinha nas pedras e mergulhar no poção. Meu namorado passou direto, pulou a escadinha e caiu na água. Eu, muito cuidadosa, fui descendo, degrau a degrau, olhando a cachoeira.
Um, dois, três e … aiiiii!!! Urrei e pulei na água. Quando pisei num dos degraus, senti uma dor absurda como se dez marimbondos tivessem mordido meu pé ao mesmo tempo. Percebi também uma movimentação, mas demorei a entender o que acontecera. Aí vi que havia dois furinhos sangrando no meu pé, próximo ao calcanhar. Olhei para a escada e tremi nas bases: havia uma cobra me olhando, completamente parada. Ela não era grande, tinha mais ou menos 1 metro, bem fininha. Tratava-se de uma jararaca – mas isso eu só saberia depois.
Nesse momento bateu um desespero absoluto. Pensei que ia morrer. Minha primeira reação foi de histeria. Tentei me pendurar no meu namorado pois tive a sensação de que havia várias cobras à minha volta.
Percebi que ele também estava muito tenso e isso me deixou mais assustada. Ele é bastante experiente no mato; se estava preocupado, é porque a coisa era feia. Mas acho que aí bateu uma frieza nele. Colocou-me no chão e foi matar a cobra, que estava no caminho que tínhamos que pegar para voltar.
Lembro que na hora do desespero, arranquei o biquíni e fiz um torniquete no pé. E ele imediatamente falou para tirar. Ainda bem! Depois descobri que realmente teria sido péssimo. Fazia-se o torniquete antigamente, quando não existia soro antiofídico, para isolar o veneno do resto do corpo. Você perdia o pé e não morria. Eu não queria perder meu pé. E nem morrer.
Pus os pés na água e fui me acalmando. Bateu algo com uma pós-adrenalina e fiquei bem calma mesmo, como se fosse o efeito de algum calmante. Mas não conseguia mais andar. Meu pé latejava muito.
Ele deu uma paulada na jararaca, guardou-a num saco de salgadinho (para identificá-la posteriormente) e pôs na mochila. E me carregou nas costas. Eu estava super mole, tão relaxada que pensava que o máximo que podia acontecer era eu morrer e que isso não seria tão ruim. Estava quase alucinando: fiquei pensando e falando só coisas boas durante todo o trajeto de volta.
Meu namorado, pelo contrário, era adrenalina pura. Acho que isso o ajudou a fazer as coisas certas e a ter forças, porque ele me carregou por uma hora na trilha de volta, que era bem difícil. Tinha que atravessar riozinhos, pular por cima de árvores caídas… E ele não parou um só momento.
Quando sentei no carro, aquela alegria e tudo de bom que estava pensando sumiu totalmente e me desesperei de novo, porque a dor voltou com tudo. E deu muito medo mesmo do que podia acontecer. Caiu a ficha: “caramba, fui picada por uma cobra; isso não é brincadeira”.
Por fim chegamos ao pronto-socorro, fui medicada com o soro antiofídico e dali segui para o Instituto Butantan, em São Paulo, onde há um hospital especializado em acidentes com animais peçonhentos. Tive que passar as três semanas seguintes sem encostar o pé no chão, mas me recuperei completamente.
Lembrando hoje, penso que foi, de verdade, uma experiência boa. Todo mundo queria ouvir a história, os amigos me ligavam preocupados. Isso me aproximou das pessoas. Outro ponto foi que nessa parada que fui obrigada a dar, pensei muito na vida. Essa vivência de achar que vai morrer e sobreviver traz uma reflexão profunda.
Sou bastante urbana, nada aventureira. Esse episódio de alguma forma me aproximou da natureza, fez nascer uma cumplicidade. Depois, fiz questão de voltar lá. Claro que fiquei mais atenta, mas consegui aproveitar, nadar na cachoeira e curtir a trilha. De galocha e calça jeans, evidentemente.
Matéria publicada originalmente na revista Go Outside.
*Colaboraram nesta reportagem Isabel Malzoni e Fernanda Franco