Por Claudia Bento e Paula Kapp
“Após experimentarmos algumas expedições guiadas, foi surgindo o interesse de vivenciarmos algo mais autêntico e verdadeiro com as montanhas. Entre conversas, amizades que nasceram nas montanhas e incentivos de amigos, chegamos à conclusão de que faríamos uma expedição pequena, formada só por mulheres e que seguiria de forma autônoma – sem guia nem estrutura comercial. Escolhemos o Aconcágua por ser também um parque, que tem um fluxo maior de pessoas e um ambiente mais controlado do que alguma outra montanha mais remota. Ainda sim, seria um desafio pela altitude e logística para chegarmos até o cume, além das baixas temperaturas e dos fortes ventos que circundam a ‘Sentinela de Pedras’ (ou Aconcágua, em quéchua).
Nevou do primeiro ao último dia. Às vezes, quando estávamos em uma altitude mais baixa, parecia chuva. Às vezes, nevava forte mesmo, com vento. Na descida do cume, ficou tudo branco, e não conseguíamos mais distinguir onde terminava a montanha e começava o céu. Reclamamos todos os dias da maldita neve que molhava tudo, que entrava até na barraca fechada, que limitava a vista e queimava a nossa pele.
Pisamos no cume do Aconcágua, ou o topo das Américas, no dia 12 de fevereiro de 2017. Era final de temporada, estávamos cansadas e com medo de não conseguir voltar – mais do que com medo de não conseguir chegar. Era uma noite tão fria, o pé da Paula quase congelou. Mas o sol, quando chegou, aqueceu nossos corpos e iluminou os nossos espíritos, nos dando mais determinação e perseverança. Quando finalmente chegamos ao cume, estava tudo tão branco que apenas tiramos algumas fotos e imediatamente começamos a descer. Sabíamos que a jornada ainda seria longa.
Não tivemos muito tempo para planejar e organizar esta expedição, pois foi um período em que trabalhamos muito e mal tínhamos tempo de treinar. Ao todo, foram 13 dias na montanha. Utilizamos somente o serviço de mulas até o campo base (Plaza de Mulas, a 4.230 metros de altitude), e levamos um GPS e um rádio para nos comunicarmos com os guarda-parques. Para aclimatar, passamos dois dias no Acampamento de Confluência (3.300 m), onde carregamos barraca e comidas. Fizemos a caminhada até Plaza Francia (4.200 m), onde a neve que caía nos impedia de ver sequer um rastro da parede sul do Aconcágua. Até passamos por um terremoto, no segundo dia. Estávamos em Confluência. Disseram que foi forte, mas é comum por lá. Não importa, para mim foi uma loucura. A Claudia estava dormindo, e tomou um susto com o estardalhaço que fiz.
Chegamos ao Plaza de Mulas no meio de uma nevasca. Continuávamos sem ver nada. Não estávamos preparadas para aquela friaca e chegamos ao limite suportável do frio. Era desanimador pensar que ainda tínhamos que montar barraca e cozinhar. Mas foi um alento ganhar água quente de outros montanhistas. No dia seguinte, descansamos um pouco e tomamos um banho quente, de baldinho, de 5 minutos. Que maravilha! Renovadas, pero no mucho, iniciamos no outro dia o porteio de nossos equipamentos e comidas. Montamos outros três acampamentos (em Canadá, Nildo de Condores e Berlin). Primeiro subíamos com uns 23 kg de bagagem e equipos, então descíamos novamente para somente no outro dia subirmos e montarmos o acampamento definitivo.
Foi uma experiência dura, mas ao mesmo tempo única para entender que os nossos limites vão muito além do que imaginamos. A mulher pode até não ser fisicamente tão forte quanto o homem, mas a nossa resistência e a nossa capacidade de tolerância às adversidades são muito grandes. Quando estávamos no limite da exaustão e da insegurança, parece que nós conseguíamos nos integrar mais plenamente à natureza, nos nutrindo de sua força vital para seguir caminhando. E isso nos motivava a seguir mais um dia, e outro dia, até o cume!
O ataque ao cume foi um momento muito difícil. Desde então, tínhamos feito a subida quase o tempo inteiro juntas. Mas, um pouco antes da Canaleta (a parte mais difícil, a partir dos 6.700 metros, que transforma o caminho ao cume em uma trilha íngreme de pedras soltas), acabamos nos distanciando um pouco, apesar de não nos perdermos de vista. Nossos ritmos estavam diferentes, apesar de respeitarmos isso, sabíamos que nos momentos finais isso poderia ser um grande desafio para nós.
Sabíamos também do horário limite para chegarmos ao cume: a previsão prometia uma tempestade no início da tarde. Claudia sentiu mais os efeitos da altitude e estava mais lenta. A descida seria bastante dura para nós duas, mas sabia que precisávamos nos cuidar, e que teríamos que ser autossuficientes até o fim. Entre erros e acertos, desentendimentos e risos, conseguimos entrar em sintonia novamente e decidimos não desistir. Achamos uma boa estratégia e, entre choro e risos, chegamos ao cume.
A montanha é um lugar onde acontecem coisas inexplicáveis. Reaprendemos a lição de que a natureza é soberana e, nessa nossa ‘insignificância’, a mente tem um poder que muitas vezes desconhecemos, capaz de transcender as limitações do corpo. É ela que nos permite isso, mesmo quando pensamos estar completamente exaustos. Mas, ao mesmo tempo em que temos uma força interior, a imensidão da montanha também revela a pequenez dos nossos passos. Não acho que sejam coisas separadas. Pelo contrário, estão integradas: a humanidade e a natureza, a unidade e o todo, o pequeno e a imensidão.”