O mundo mal respira uma relativa estabilidade da Covid, e lá vem outro vírus infernizar a vida humana: trata-se da doença descoberta há mais de meio século, chamada varíola do macaco. Os símios são hospedeiros transitórios do vírus, que circula entre roedores, e, uma vez que ele seja transmitido ao ser humano, há o contágio de pessoa para pessoa por meio de contato físico, relação sexual e gotículas de saliva de quando falamos. Existe, no entanto, uma profunda diferença entre as duas enfermidades. Na eclosão do Sars-Cov-2 estávamos no escuro – até a descoberta de vacinas, ele era a antessala da morte. Em relação à varíola há imunizantes, embora precisem ser reavaliados e revalidados na hipótese de o vírus sofrer mutações em nosso organismo que o tornem perigoso.
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Existe a varíola do macaco, que passa para o homem, e há também a varíola tipicamente humana. Os vírus são da mesma família, mas originam males distintos. A do macaco muito maltrata, porém, felizmente, pouco mata. Já a segunda é uma das doenças que mais causaram óbitos na história das epidemias: aproximadamente quatrocentos milhões de mortes no século passado. Foi erradicada no País em 1970 e, no restante do planeta, dez anos depois. A varíola do macaco chegará agora ao Brasil? Provavelmente sim: vírus alcançam qualquer destino em período de tempo idêntico ao que dure, por exemplo, a viagem de avião por alguém contaminado. É o efeito colateral do intenso tráfego aéreo. O Brasil está preparado para imediata vacinação? Não, não está: carecemos de estoques e de produção nacional, interrompida quando se conseguiu a erradicação.
É natural que surja uma questão. Se a varíola do macaco, em princípio, não é grave, então por que os cientistas andam tão preocupados? Esse temor advém de duas questões. Primeira: por qual razão o vírus do macaco tem contaminado indivíduos que não estiveram no berço da doença, que é o continente africano? Segunda dúvida: por que o vírus está se alastrando com tanta velocidade? Até a quinta-feira 26, a OMS contabilizava cerca de duzentas pessoas, entre infectadas e observadas, em pelo menos vinte países. Parte da resposta a tudo isso veio na semana passada, embora não haja endosso nem consenso da comunidade científica. Segundo o consultor da OMS David Heymann, houve aglomerações, contato físico e relações sexuais entre pessoas contaminadas de diversas nacionalidades, em duas grandes raves, uma na Bélgica e outra na Espanha. Se Heymann teve ou não informação direta de gente que frequentou as festas, isso ele não esclareceu. A sua teoria precisa, no entanto, de ser vista com muita cautela para não gerar preconceitos como o do início da década de 1980 em relação ao HIV. Se o quesito saúde é o que está em pauta, não cabem moralismos nem julgamentos de valores.
Sabe-se que vírus passam por mutações e tornam-se mais contagiosos e letais. Os especialistas acompanham com especial atenção a República do Congo, uma vez que nos cinco primeiros meses de 2022 registraram-se dois mil setecentos e oitenta casos. Eles envolvem um subtipo exponencialmente mais virulento se cotejado com a variante que está circulando pelo mundo. As manifestações na pele, contudo, são as mesmas: reações alérgicas e uma infinidade de pústulas. Em visita ao Japão, o presidente dos EUA, Joe Biden, mostrou-se bastante alarmado com a contaminação que atingiu o seu país. “O impacto da varíola dos macacos pode ser bem preocupante se os casos continuarem se espalhando”, disse ele. Na avaliação da infectologista da Unicamp e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia Raquel Stucchi, “não podemos descartar a possibilidade de o vírus já ter sofrido mutação e de ser ela a responsável pelo surto atual”.
No Brasil, até a quinta-feira não se registravam casos da enfermidade (um brasileiro adoeceu na Alemanha), mas, ainda assim, a Anvisa passou a recomendar o uso de máscaras e álcool em gel em aeroportos e aeronaves e alertou que um único medicamento está disponível no País – na verdade, indicado para outra variante viral. “Também é necessária a vigilância nos países europeus”, afirma o sanitarista Gonzalo Vecina Neto. Jamais foram vistos tantos casos simultâneos em países extremamente distantes, uns dos outros. “Ainda bem que estamos falando, nesse momento, de varíola do macaco”, diz Raul Rivas Gonzáles, professor espanhol de microbiologia da Universidade de Salamanca. “Ela é muito mais branda que a sua terrível versão humana”.
A derrota dos negacionistas em 1908
O Brasil tem sólida tradição na área de vacinas contra quase todas as doenças cuja profilaxia possa ocorrer por esse método. Para se ter uma ideia, o vírus da varíola humana foi aqui erradicado em 1970, dez anos antes que a OMS declarasse a sua erradicação mundial. Essa jornada brasileira teve origem no início do século passado, com o médico e sanitarista Oswaldo Cruz (ao microscópio).
Era o ano de 1904 e a cidade do Rio de Janeiro, então capital do País, estava empestada pela febre amarela, peste bubônica e, sobretudo, pela varíola. Já existia uma vacina desenvolvida pelo médico inglês Edward Jenner. O cientista brasileiro viajou para a Inglaterra e França, trouxe o método da “vacina desidratada” e aqui a desenvolveu. A seu pedido, o presidente da República Rodrigues Alves encaminhou projeto de lei ao Congresso criando a imunização obrigatória. Movidos por ideologia e mesquinharia politicagem, os civis negacionistas de então, junto com militares, se opuseram e promoveram a Revolta da Vacina.
Rodrigues Alves a sufocou, mas teve de anunciar o fim da obrigatoriedade. Em 1908 uma nova epidemia de varíola humana matou no Rio de janeiro cerca de seis mil e seiscentas pessoas. A população voluntariamente quis ser imunizada. O negacionismo perdeu.