Como o movimento Salvemos São Conrado tem lutado para despoluir uma onda que transforma vidas no Rio de Janeiro
Por Kevin Damasio
Fotos de Giulio Paletta
HÁ QUATRO ANOS, Marcello Farias levanta cedo todos os dias para ir de sua casa, na favela da Rocinha, até a praia de São Conrado, a cerca de 1,5 km de distância. Daquelas areias cariocas, com seu smartphone, o bodyboarder grava um boletim sobre a condição da ondulação e, sobretudo, a qualidade da água. Naquele ponto, o mar sofre há mais de uma década com a poluição crônica.
Os vídeos são compartilhados nas redes sociais do Salvemos São Conrado, um movimento que nasceu no fim de 2012 para lutar pela limpeza do canto esquerdo da praia carioca. O “Cantão”, apelido do pico, é um beach break tubular, de nível internacional, que transforma o dia a dia de muitos de seus frequentadores – especialmente crianças e jovens que vivem na Rocinha, a maior favela da América Latina, com 200 mil habitantes.
No último outono, a atividade do Salvemos não se limitou aos boletins matinais. Uma ressaca atingiu a zona sul da cidade na noite de 20 de abril, um dia antes de o trecho da ciclovia em São Conrado desabar e tirar a vida de duas pessoas. Marcello e Anderson Guerreiro, também bodyboarder e morador da comunidade, apressaram-se até a extensão do calçadão de São Conrado para fazer uma transmissão ao vivo.
Com a força das ondas, a estrutura, que cobre uma galeria de esgoto, entrou em colapso. “Com o dinheiro gasto nessas obras, o governo poderia ter feito coisas melhores para solucionar de vez o problema de São Conrado”, diz Marcello no vídeo, enquanto foca a cratera que se formou logo nos primeiros rugidos da ressaca.
Os problemas ambientais em São Conrado não são novidade. O esgoto vem da Rocinha e, depois de parcialmente tratado, segue até o mar pelo córrego da avenida Aquarela do Brasil, onde é encorpado por ligações clandestinas de prédios de luxo de São Conrado. Até o fim de 2001, tudo era despejado na praia, na faixa bem em frente aos hotéis Nacional e o antigo Intercontinental, hoje chamado Royal Tulip. A paisagem não era nada agradável, mas pelo menos a areia servia como filtro – retinha os resíduos sólidos e absorvia os líquidos.
O governador da época, Anthony Garotinho, que em 2002 sairia candidato à presidência da República, prometeu tirar a língua negra da frente dos hotéis e canalizá-la até o mar. Foi construído um deck integrado à orla e, por baixo dele, uma galeria fluvial. Perfuraram a rocha sob o cotovelo da avenida Niemeyer e abriram uma vala para despejar ali a sujeira. Tudo a 100 metros do lineup do Cantão.
Para piorar, no canto esquerdo de São Conrado ainda passam duas tubulações de ferro de 2,1 km de extensão, presas à rocha, que conduzem o esgoto in natura do bairro até a estação do Leblon, de onde seguem para o emissário submarino de Ipanema após tratamento e, de lá, são descartados em alto-mar.
Um dos dois canos, o mais antigo, está todo enferrujado pela ação do tempo e da maresia. Até ser desativado, toda semana a tubulação estourava e provocava uma cachoeira marrom e fétida de esgoto que só cessava depois de a Companhia Estadual de Águas e Esgoto (Cedae) remendar o problema. O segundo cano é novo, fruto de uma obra que começou em setembro de 2013 e foi entregue apenas no primeiro trimestre deste ano.
A troca fez parte do Sena Limpa, um programa do governo estadual com orçamento de R$ 150 milhões para despoluir São Conrado e outras cinco praias cariocas – promessa do governo ao Comitê Olímpico Internacional. Segundo medições de balneabilidade do Instituto Estadual do Ambiente do Rio de Janeiro (Inea), Ipanema, Leblon, Leme e Urca livraram-se da poluição. Já os frequentadores das praias da Bica (na Baía de Guanabara) e de São Conrado ainda colocam a saúde em risco no mar. As águas do Cantão são tão sujas que os níveis de coliformes excedem os estabelecidos como toleráveis pelo Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente). De 2000 a junho de 2016, a qualidade do mar de São Conrado só foi considerada “boa” em 2002.
“O problema da Rocinha se deve, em parte, à falta de conscientização da própria população”, analisa Marcello Farias. “Ao mesmo tempo, os governantes são os responsáveis por nosso saneamento básico. Pegar o esgoto e jogar no mar é irresponsável.”
Marcello, de 40 anos, vive na Rocinha desde que nasceu. Começou a pegar onda em 1986, nas então cristalinas águas do Cantão. Em 30 de agosto de 2012, ele compartilhou no Facebook uma foto que mostra uma poça de esgoto no canto esquerdo da praia. O alcance da publicação e a revolta dos amigos foram tamanhos que, meses depois, Marcello e outros bodyboarders locais fundaram o Salvemos São Conrado.
O movimento ganhou visibilidade ao ser apoiado pelo músico Gabriel “o Pensador” Contino, que no fim dos anos 1980, aos 14 anos, contraiu hepatite naquelas águas onde aprendeu a surfar. Desde então Gabriel é um assíduo ativista na luta para limpar o pico.
A exposição do movimento aumentou ainda mais em maio de 2015, quando São Conrado foi descartado como palco alternativo da etapa brasileira do Mundial de Surf, uma opção caso as ondas da Barra da Tijuca deixassem a desejar. No desenrolar da etapa, os ativistas do Salvemos circulavam pela areia lotada, colhendo assinaturas para uma petição que exigia a despoluição de São Conrado. Entre as 4 mil pessoas que assinaram o documento, estavam os surfistas John John Florence, Filipe Toledo e os campeões mundiais Adriano de Souza e Gabriel Medina.
Enquanto cobra ações efetivas do poder público, o Salvemos organiza mutirões de coleta de lixo pela praia. No Largo do Boiadeiro, um dos pontos comerciais da Rocinha, um extenso canal, popularmente conhecido como Valão, estende-se pela rua e se perde pela comunidade. “Isso era para ser um rio mas, por ser aberto, as pessoas o usam como lixeira”, explica Marcello. “E toda vez que chove, o esgoto transborda e o lixo segue rápido pelo canal até a unidade de tratamento.” No fim do ano passado, uma ação do Salvemos reuniu moradores da Rocinha e de São Conrado, além de amantes daquelas ondas, como o big rider pernambucano Carlos Burle. Auxiliados por funcionários da Companhia Municipal de Limpeza Urbana, eles recolheram cinco toneladas de lixo da praia.
As ressacas do outono agravaram a situação. As fortes ondas danificaram a estrutura que envolve a galeria de esgoto. Com isso, a sujeira líquida vaza constantemente na areia e, na maré cheia, mistura-se às águas do Cantão. As rampas de acesso à praia descolaram-se do deck da orla e grandes pedaços de concreto espalharam-se pela areia. As pedras só foram recolhidas quando, cansado de esperar pela ação da prefeitura, o Salvemos organizou um mutirão.
É precária a condição de sanidade em que vivem os moradores da Rocinha. Enquanto caminha pela comunidade, Marcello encontra um amigo antigo. Carlos “Pamonha” tem 47 anos, mora no morro e surfa em São Conrado desde os 8. “Olhe à nossa volta e adivinhe o que falta por aqui?”, pergunta Pamonha. “Não precisamos de mais nada, só de saneamento básico”, ele mesmo responde. Os dois seguem para um ponto em que uma cachoeira de lixo – de sacolas plásticas a sofá e geladeira – desce até a base de uma pedra por onde passa o Valão que corta a Rocinha. Pelas vielas, não há cestos de lixo e os garis, apesar de circularem pela área, limitam-se aos trechos de fácil acesso.
Para estimular a conscientização ambiental dentro da comunidade, o Salvemos iniciou o projeto Pequenos Ativistas. Em 30 de maio, um grupo visitou o Centro de Referência de Assistência Social Rinaldo de Lamare, que fica ao lado do galpão da Acadêmicos da Rocinha, e fez uma palestra para jovens e crianças. Em seguida, promoveram oficinas de reciclagem com os alunos.
“Foi fantástico”, diz Fabrini Tapajós, 39, co-fundador do Salvemos. “Grande parte dos moradores da Rocinha não sabe que o lixo jogado no Valão vai dar na praia. As crianças ajudam a conscientizar os próprios pais, então esse trabalho é fundamental para minimizarmos os impactos ao meio ambiente.”
O plano do Salvemos é realizar ações em mais escolas. Primeiro dentro da Rocinha, depois em outras favelas cariocas e centros de educação estaduais e particulares. “Os alunos levam para dentro de casa o que ouviram, contam o que está acontecendo em nossas praias, rios e lagoas”, diz Marcello. “O trabalho é a longo prazo, não vamos ter resultados tão cedo. Mas são as crianças que podem fazer nosso mundo melhor – elas são a nossa última chance.”