Um país movido a bicicletas

LOCOMOÇÃO URBANA: Ciclista aproveitando seu espaço pelas ruas de Bogotá (Foto: Guillermo Legaria/AFP/Getty Images)

Diferentemente das grandes potências do esporte, a Colômbia não conta com programas avançados de treinamento para ciclismo, muito menos equipamento de ponta ou grandes investimentos financeiros. Mas seus atletas são ídolos nacionais e vêm conquistando os mais altos postos dos pódios mundiais – incluindo o Tour de France. Nossa repórter passou uma semana no país acompanhando uma novíssima ultramaratona de mountain bike e tentando entender o que é que a Colômbia tem

Por Fernanda Beck, da Colômbia

MESMO ANTES DE SAIR do aeroporto internacional de Eldorado, em Bogotá, na Colômbia, já é possível notar os primeiros sinais de que o ciclismo ocupa um lugar central no imaginário coletivo nacional. Um imenso cartaz com uma propaganda de um cartão de crédito mostra dois jovens colombianos, sorridentes e de uniforme: Nairo Quintana e Mariana Pajón. “Nairinho”, de 26 anos, é o ciclista de estrada de maior sucesso que o país já produziu: foi campeão do Giro d’Italia em 2014 e ficou com a prata no Tour de France duas vezes (2013 e 2015), entre outros feitos. Conhecido pelo apelido de “El Condor”, virou estrela do asfalto, com direito a contrato com a prestigiosa equipe Movistar. Já Mariana é a rainha do BMX mundial, tendo conseguido o bicampeonato olímpico nos Jogos do Rio (o primeiro ouro foi em Londres, em 2012) e seis títulos em campeonatos mundiais. Nenhuma outra atleta da modalidade chegou perto das conquistas dessa colombiana de Medellín.

Saindo do aeroporto, a evidência da importância da bicicleta para o povo local fica ainda mais clara: mesmo no meio do trânsito pesado e enlouquecido da sexta-feira à noite da capital, há quase tantas bicicletas na rua quanto carros. Homens, mulheres e crianças pedalam em bikes simples, sem equipamentos de proteção e, aparentemente, sem nenhuma preocupação por conta disso.

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CONTRASTE: Um competidor na divisa entre a paisagem rural e a urbana, durante a prova La Leyenda del Dorado (Foto: Esteban Barrera)

Não à toa o país foi escolhido para sediar uma nova ultramaratona de mountain bike que, em agosto, reuniu estrelas nacionais e gringas, como o suíço Christoph Sauser. Disputada em seis dias, a primeira edição da La Leyenda del Dorado atravessou a cordilheira central da Colômbia, serpenteando os imensos montes verdes que compõem a região. As montanhas que serviram de desafio para os quase 60 ciclistas que partiram de Bogotá e chegaram a Medellín são formadas por rochas vulcânicas, resultando em picos suaves e cumes arredondados. Aliada ao clima relativamente ameno do local, a paisagem forma o cenário perfeito para quem quer se desafiar no pedal, engolindo quilômetros infindáveis de subidas implacáveis e exigentes, e descidas técnicas e divertidas. Um terreno perfeito para fomentar a modalidade em uma nação já apaixonada pelas duas rodas.

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ESTRANHOS NO NINHO: Competidores da La Leyenda del Dorado cruzam zonas rurais da Colômbia (Foto: Esteban Barrera)

Em cada uma das oito cidades por onde a competição passou, e por todas as ruas, estradas e trilhas do caminho, sempre havia uma infinidade de ciclistas locais. Homens, mulheres e crianças, usando suas bicicletas como sempre fizeram: como meio de transporte, como ferramenta de trabalho e como opção de lazer. Os próprios espectadores da prova, em cada vilarejo, muitas vezes também chegavam de bicicleta para admirar os atletas na linha de chegada. Ciclistas amadores treinam nas estradas bonitas e sinuosas que cortam as montanhas, mountain bikers de fim de semana aproveitam o sol para explorar o terreno desnivelado e rochoso das trilhas, e crianças pedalam para ir à escola em subidas tão puxadas e compridas que não entrariam em muitas planilhas de treino – e que fazem parte do dia a dia dos colombianos, muitas vezes desde bem jovens. A própria histíoria de Nairo é um exemplo disso.

A forte presença da bicicleta nas várias camadas da sociedade colombiana se explica por algumas razões, e talvez a principal delas seja a inversão demográfica que a Colômbia sofreu nos últimos 80 anos. A bicicleta sempre teve um papel fundamental nas comunidades rurais do país, em que a estrutura pública é tradicionalmente precária, e pedalar se torna quase sempre a melhor opção para os deslocamentos curtos – um método barato, de fácil manutenção, relativamente rápido e que pode ser usado por todos, garantindo autonomia à toda a família. Como em muitos países da América do Sul, a partir dos anos 40, a migração da população rural para os grandes centros urbanos da Colômbia (Bogotá, Medellín, e Cali, no oeste do país, principalmente) explodiu: a população urbana, que representava cerca de 30% do total do país, chega a 75% em 2005, número que se mantém até hoje. Junto com as populações rurais, foram para as cidades também o uso cotidiano e o laço estreito com as magrelas.

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ÍDOLO AMIGO: O suíço Christoph Sauser, um dos maiores mountain bikers do mundo, posa para foto com um agricultor colombiano.

Em 1951, acontecia a primeira Volta à Colômbia, competição inspirada nos grandes tours europeus e pedra angular da consolidação do ciclismo como esporte de alcance nacional – embora a prova tenha perdido muito de sua popularidade com o passar dos anos. Mas o impulso que a competição ofereceu ao esporte perdurou, e na década de 80 houve um boom no ciclismo colombiano, graças a um grupo de exímios escaladores. Apelidados de escarabajos (escaravelhos) pela mídia, suas figuras mais emblemáticas foram Luis Alberto “Lucho” Herrera, ganhador da Volta da Espanha em 1987, e Fabio Parra, o primeiro colombiano a conseguir um lugar no pódio no Tour de France, com um segundo lugar na edição de 1988. “Eu fui um dos muitos ciclistas aqui que cresceu sob a influência desses atletas”, diz Tomas Castrillon, de 35 anos, ciclista há mais de duas décadas e líder da Cyclotá, agência que organiza diferentes pedais pelo país.

O surgimento desses heróis da bike deu esperança à população de um país cuja história é entremeada por estatísticas de violência e pobreza – números oficiais de 2015 apontam que quase 30% da população colombiana ainda vive abaixo da linha de pobreza, com 8% em “pobreza extrema”. Em uma dinâmica muito parecida com a que existe no Brasil em relação ao “sonho” de se tornar jogador de futebol, na Colômbia é o ciclismo a modalidade capaz de tirar jovens de suas realidades pouco promissoras para uma rotina de treinos dedicados, que os coloca no alto de pódios, com prêmios em dinheiro, fama e glória. “Muitos de nós viemos de famílias com poucos recursos, e o ciclismo nos traz um senso de satisfação que não conseguimos em outros lugares. Acho que por isso somos tão apaixonados e dedicados a esse esporte”, conta o colombiano Diego Arias, 28, um dos vencedores da Leyenda.

A história de Nairo, o maior expoente do esporte até hoje, é um exemplo de trajetória clássica de “cinderela esportiva”. Criado com mais quatro irmãos por seu pai em Cómbita, no montanhoso departamento de Boyacá, ele teve uma infância humilde e começou a pedalar em uma bicicleta usada, comprada para que pudesse percorrer os cerca de 17 km que separavam sua casa da escola. Descida na ida, subida com até 8% de elevação na volta, e lá ia pedalando o pequeno Nairinho, de vilarejo em vilarejo, vender frutas e legumes para ajudar na renda familiar. Era o começo de uma relação fortíssima com a bicicleta.

Rigoberto Uran, medalhista de prata no Giro d’Italia em 2013 e nas Olimpíadas de Londres, também é outro caso colombiano de ascensão social por meio da bike. Seu pai, que lhe apresentou o ciclismo, foi assassinado por um grupo paramilitar – uma das presenças mais temidas na Colômbia – quando “Rigo” tinha 14 anos. A partir daí, ele passou a encaixar treinos na bike nos intervalos que existiam entre a rotina na escola e a rotina de trabalho, que mantinha para ajudar a mãe e irmã mais nova.

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TESOURO NACIONAL: Competidores pedalam à frente de plantação de café, um dos maiores produtos da Colômbia

Durante a Leyenda del Dorado, encontramos mais um caso de humildade e amor à bicicleta trazendo resultados fenomenais para atletas colombianos, em uma etapa tida como uma das mais exigentes da competição: a de subida do vulcão Nevado del Ruiz, com 5.321 metros de altitude. O percurso não foi cronometrado, para dar um respiro aos competidores e, principalmente, garantir que todos pudessem completar o trajeto sem sintomas do mal da montanha, que pode aparecer a partir dos 2.400 metros de altura. No início do estágio, a corrida passou pelo vilarejo de Murillo, situado a 3.000 metros e ponto estratégico para quem quer admirar a paisagem do Nevado. Desde o começo, alguns competidores notaram a presença de um rapaz os acompanhando, pedalando uma velha bicicleta de ferro, sem sapatilhas nem capacete, vestindo apenas shorts e camiseta. Como a rota da prova não era fechada aos participantes, era comum encontrar outros ciclistas a qualquer momento, e o rapaz e sua bike não chamaram tanto a atenção. Foi no primeiro posto de controle que a presença do moço começou a se destacar, e só no pórtico de chegada que realmente ganhou notoriedade. Após ser reconhecido pelos organizadores do evento, o rapaz, Edwin Peña, contou sua história, para a surpresa dos atletas: quando ficou sabendo que a Leyenda del Dorado passaria por Murillo, Edwin, 22, que adora pedalar, resolveu se juntar ao grupo durante a etapa que atravessaria o Nevado. “Minha ideia era sair com eles e pedalar até onde eu desse”, contou. Ele aguentou até o final em uma das etapas mais exigentes de toda a prova. Seu prêmio por estarrecer atletas de elite, organizadores e imprensa pela performance admirável foi bem recebido: Edwin foi convidado a se hospedar no grandioso hotel onde a etapa terminava e ganhou uma bicicleta nova, um capacete, um par de sapatilhas e um kit de Jersey e bermuda da Specialized, principal patrocinadora do evento.

Criador da prova, o britânico Brian Murphy não conteve a alegria ao descobrir um possível talento local. “A partir do ano que vem, pretendemos distribuir ainda mais bicicletas à população colombiana, aumentando nossa contribuição no estímulo a atletas que não têm muitas oportunidades para crescer no esporte”, diz.

A falta de estrutura e apoio ao esporte na Colômbia determinam uma lógica de funcionamento um pouco às avessas para os ciclistas colombianos: primeiro, é preciso ser bom ciclista. Depois, é preciso se destacar em competições regionais e nacionais, para só então, talvez, surgirem chances de um patrocínio. Mas o que não faltam são ciclistas colombianos se destacando no pelotão, por uma combinação de razões: a primeira e mais gritantes delas é a geografia do país. A Colômbia é um país andino, ou seja, parte da Cordilheira dos Andes passa por seu território. A região andina colombiana é a zona mais populosa do país, o que favorece o aproveitamento de seu terreno pelos atletas em potencial. As cordilheiras ocidental, central (onde aconteceu a Leyenda del Dorado) e oriental se dividem em inúmeros vales, cânions e mesas, compondo um imenso centro de treinos ao ar livre, pronto para ser usado por quem se dispuser a explorá-lo de cima do selim. “Nosso quintal é um paraíso para treinar, com subidas, altitudes elevadas e clima variado”, diz Leo Paez, parceiro de Diego na conquista do ouro na Leyenda. É comum encontrar por ali trechos em subida contínua que se estendem por 30 ou 40 km. Uma das escaladas mais clássicas do ciclismo também está no país e atrai corajosos do mundo todo para pôr seus pedivelas à prova em seus exigentes 83 km de percurso: a famosa e desafiadora Alto de las Letras, em Mariquita, que acumula mais de 3.000 de desnível em sua ascensão.

As montanhas possuem outro papel importante no bom desempenho dos atletas da região. Além de oferecer ótimas (e duras) condições para treino, propiciam uma “arma secreta” embutida em seus corpos, a maior capacidade de oxigenação sanguínea e consequentemente muscular – o que pode gerar um aumento na performance de até 3%, segundo estudos. Acostumados a pedalar em altitudes que muitas vezes ultrapassam os 2.500 metros, os ciclistas colombianos já trazem em si o que muitos demoram dias e até semanas para obter, depois de treinar em altitude. O tipo físico dos heróis colombianos, com traços tipicamente indígenas, também ajuda na hora do pedal. A pouca altura e o torso franzino característicos dessas populações rendem uma ótima relação força x peso, o que pode fazer toda a diferença na hora de vencer uma subida ou atacar um adversário.

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CORDILHEIRA: Uma das duplas que participaram da Leyenda sobe a ladeira com as montanhas da cordilheira central colombiana como pano de funo

Um dos maiores mountain bikers de todos os tempos, o suíço Christoph Sauser, 40, participou da Leyenda del Dorado e viu de perto, pela primeira vez, o terreno “feito sob encomenda” para o ciclismo de que o país dispõe. E sentiu na pele seus efeitos: junto com o parceiro, o costa-riquenho Paolo Montoya, ficou em segundo lugar na competição, atrás dos colombianos Leo e Diego. Sauser frisa, porém, que não bastam apenas características geográficas e genéticas para produzir Nairos, Rigobertos e Estebans (Esteban Chaves é outro nome que tem se destacado no calendário de grandes provas de estrada). Segundo o suíço, ir para a Europa treinar com uma equipe sólida é a chave para transformá-los em craques das duas rodas.

Mas nem só de medalhas e louros vive o amor pelo pedal. “Quando olho pela minha janela em Bogotá, vejo montanhas desafiadoras me chamando, com nuvens baixas que envolvem picos ensolarados, em um convite para que eu vá e os explore”, diz Tomas. O garoto Edwin, com sua nova bicicleta em mãos, tampouco parece tão interessado na glória das competições oficiais. “Talvez eu passe a treinar agora que estou de bike nova, mas não sei ainda. Eu pedalo para me divertir, porque amo andar de bike”, diz, com um jeito simpático e um sorriso no rosto. O mais importante, e os colombianos sabem disso, é que a bicicleta continua sendo uma das melhores invenções de todos os tempos.

* A jornalista Fernanda Beck viajou a convite da La Leyenda del Dorado e da Procolombia
** Matéria publicada originalmente na Go Outside 133, de setembro/2016.

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>> Traning Camp de altitude
Um “retiro” dedicado ao pedal de altitude em Medellín, cortando as estradas que circundam a segunda maior cidade do país. A combinação ideal entre boas estradas para treino e vida urbana vibrante; sessões customizadas em novembro e dezembro.

* Pacotes da agência Cyclota; valores e datas sob consulta.

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