Travessia aquática pegando fogo

Neste ano, a tradicional prova 14 Bis consistiu em 24 km de muita correnteza e água viva, como descreve um finisher

FOI EM 2015 que o estudante de Educação Física Cristian Condé, de 24 anos, ficou sabendo da tradicional Maratona Aquática 14 Bis, através de um amigo da academia onde ele trabalha e treina. A prova, que acontece desde 1970, neste ano celebrou sua 49ª edição no dia 12 de novembro. É uma travessia de 24 quilômetros pelo canal de Bertioga – entre o Forte de São João (Bertioga) e a rampa da Base Aérea de Santos.

Como costuma acontecer em maratonas aquáticas, não é só a distância o único desafio. O mar é sempre imprevisível. Nem sempre é possível contar com a maré a favor e, além disso, as correntes e o vento mudam a todo o momento. Os organizadores recomendam: se você não estiver muito bem preparado, com um grande volume de treino acumulado, nem se arrisque.

Neste ano, ainda outro “obstáculo natural” colocou os competidores à prova. Nos primeiros quilômetros, um “enxame” de águas-vivas, provavelmente arrastadas ao canal pela chuva que caía durante a prova, foi como uma armadilha para mais de 60 atletas, entre homens e mulheres – dos cerca de 250 competidores. Muitos desistiram da prova depois de serem atacados. Alguns receberam atendimento médico e voltaram. Outros, mesmo se serem queimados, desistiram só de ver o desespero dos nadadores atingidos.

Cris foi pego. E sofreu até o ponto de achar que teria que desistir para tentar sair vivo dessa. Mas conseguiu superar a dor e o trauma para continuar nadando, como ele descreve mais abaixo.

“Em 2016, pensando em preparar meu psicológico para a 14 Bis, eu participei de um desafio que consistia em pedalar 1.000 km em 10 dias. Não estava a fim de desistir logo depois que a primeira coisa desse errado”, diz ele. “O Sergio Augusto de Souza, meu professor de natação, também havia me ensinado técnicas de mentalização: eu já tinha visualizado muito a prova inteira, desde a largada até a chegada.”

Cris se recorda também de outro treino de 10 km, divididos em 100 tiros de 100 metros, daqueles que prepara a cabeça mas destrói os braços. “Eu não devia estar em um bom dia. Quebrei; arrastei-me até o 75º tiro e fui embora”, conta. “À noite, no entanto, foi o Sergio que me convenceu a terminá-lo. Eu consegui algo que me deu muita confiança, e foi bem próximo do que aconteceu na prova: quase quebrei por conta de uma reação alérgica, mas depois tive uma excelente recuperação.”

Abaixo, Cris conta em detalhes.

“A ANSIEDADE DE NADAR era tanta que eu finalmente relaxei um pouco depois que consegui chegar no horário marcado, pegar o kit da prova, encontrar o barqueiro, colocar as minhas coisas no barco, marcar meu número, pegar o chip e passar protetor solar e vaselina. Esses procedimentos eram o que na verdade mais me preocupavam até então. Estou acostumado a nadar e tinha treinado muito. Minha alimentação para essa prova também estava bem ajustada: levei eletrólitos em cápsulas, sal, magnésio, sódio, cápsulas de potássio, gel de carboidratos, comidas salgadas e doces – tudo o que já tinha consumido nos treinos e que funcionara bem. Portanto, sabia que só em caso de risco de vida eu sairia da água para abandonar a prova.

Na largada, também encontrei alguns amigos que tinham ido só para me prestigiar. A surpresa me deixou ainda mais confiante.

A granada estourou: era dada a largada e, naquele momento, minha preocupação foi achar o meu barco, que era uma das duzentas embarcações de apoio aos atletas. Só depois de nadar uns 1.200 metros é que eu o encontrei. Foi um grande alívio! Cheguei a pensar: ‘meu barco quebrou, ou não ligou, ou virou…’

A bordo, estava o meu apoio, formado pelo barqueiro, Henrique, meu irmão, Michell, e minha amiga, Renata. E insisto dizer que eles foram essenciais para eu completar o percurso. Além de prepararem minha nutrição e cuidarem dos horários que eu me alimentaria, foram os responsáveis pela navegação. Sem mencionar o ‘apoio psicológico’ que deram. Só eles para conseguirem me fazer rir enquanto eu me hidratava. E isso fez toda a diferença.

Por volta do quilômetro 4, senti que estava em um momento muito ruim, que se configurou como o pior momento de toda a prova – e tenho certeza de que um dos mais difíceis de toda a minha vida. Eu sentia que estava travando da lombar para baixo. Fiquei um bom tempo sem mexer as pernas, gritava e chorava de dor.

Foi insano!

O pior é que, no começo, eu gritava embaixo d’água para não deixar a minha equipe de apoio assustada.

Eu tinha sido pego por dezenas de águas-vivas, e sofri queimaduras pelo corpo inteiro. A pior foi no rosto. Elas me pegaram até dentro do nariz. Sentia dificuldade para respirar.  

Pedi um remédio para a dor e, assim que tomei, começou uma reação anafilática por causa das toxinas cravadas na minha pele. Minhas narinas queimavam. Vomitei muito. Tentava nadar crawl, peito e costas, mas nos três estilos eu vomitava praticamente a cada braçada que dava. Senti uma pressão intensa na lombar, e mexer as pernas ficava cada vez difícil. Também não estava fácil respirar, e a sensação de morte já era uma realidade. Vi uma atleta chorando de dor e frustração ao ser levada por um barco. De repente, pensei que aquela prova era longa, e que, portanto, eu tinha tempo para me recuperar e cruzar a linha de chegada. Mas ainda me sentia como um animal lutando pela sobrevivência. Podia sentir o meu corpo reagindo para combater o veneno. Voltei a nadar, espirrando e tossindo muito, e sem conseguir mexer as pernas. Estava sem ritmo, com muito medo de ser pego novamente pelas águas vivas. Essa sensação durou uns 40 minutos.

Por volta do quilômetro 6, restabeleci o ritmo e a confiança. As pernas também voltaram a funcionar. Passei a comer e a me hidratar novamente, e parecia que eu já tinha a certeza de que iria concluir aquela prova. Na hora, pensei ‘É só a natureza mostrando quem manda, mas agora ela vai me deixar ir até o fim’.

As braçadas começaram a render bem e, com a maré a favor até o quilômetro 14, o tempo passou rápido. No quilômetro 16, começaram as fortes ondulações. Passou a ventar muito, mas eu continuei me sentindo forte e, como disse posteriormente à Renata, integrante da minha equipe, eu liguei o turbo: ultrapassei vários atletas e avistei a bendita ponte – todos dizem que, ao avistar esta ponte, você praticamente chegou, já que ela está a apenas quatro quilômetros da linha de chegada. Mas a correnteza ficou absurdamente forte. E eu precisei nadar mais forte ainda. A ponte não chegava nunca! Demorei muito para alcançá-la e me agarrar no pilar, que me protegeu da corrente por uns instantes, enquanto eu retomava o fôlego. Até os barcos estavam dificuldade para passar e, apesar de já ser o quilômetro 20 da prova, vi que algumas pessoas ainda estavam desistindo.

Eu estava muito bem psicologicamente e, quando olhei novamente aquela correnteza violenta, dei uma risadinha irônica pensando ‘esses caras são tudo louco mesmo!’ – e claro que eu me incluía nessa. Mas a Renata logo me olhou com cara de treinadora e ordenou, brava: ‘Vai logo, Cris. Nada!’. Deis dois goles no energético e fiz a maior força de todo o percurso. Quando avistei a chegada, meus óculos se encheram de lágrimas novamente. Desta vez, de alegria, de alívio, de felicidade. Muita emoção mesmo.

Ao ficar em pé, em terra firme, fui auxiliado pelo pessoal da organização. Ganhei um cobertor térmico, uma medalha, dada por um militar, e uma canja de galinha, que estava maravilhosa. Fui encaminhado em seguida para a enfermaria para tratar as queimaduras de água viva e verificar o meu estado clínico. Depois, foi muito emocionante poder compartilhar aquele momento com meus amigos, minha mãe e a minha namorada, Patrícia. Minha amiga Isabella ainda me presenteou com uma caixa de brigadeiros.

Nesta prova, acho que vivi dois momentos muito marcantes: um por volta do quilômetro 6, quando eu me recuperei do ataque das águas vivas e pude retomar a confiança – como uma Fênix ressurgindo das cinzas. Outro foi na chegada, quando vi a minha mãe e abracei-a. Ela estava chorando de alívio, principalmente por eu ter sobrevivido a tudo aquilo, e foi algo que me comoveu.

Acredito que saí da 14 Bis outro cara: mais forte e mais maduro. Finalmente, aprendi na prática que para a mente não há limitações. E que a natureza pode te abraçar ou te bater, como ela bem quiser. Espero que o meu relato sirva de inspiração para outras pessoas que, como eu, sempre sonhou em aprender a nadar. Eu, por exemplo, nado há apenas quatro anos. Era asmático, já fui fumante e, na infância, era obeso. Hoje, posso dizer que o esporte mudou minha vida, e tenho a certeza de que ele pode curar as feridas mais profundas na nossa alma.”