As montanhas cada vez mais verdes e o mar, ainda semicongelado, sugerem que o inverno já chegou ao fim na Groenlândia. Após seis meses presa no gelo, a velejadora brasileira Tamara Klink celebra a luz da primavera e já começa a imaginar como será o seu reencontro com o mundo dos humanos.
Aos 27 anos, Tamara viveu uma experiência na qual pouquíssimos navegadores ousariam arriscar em suas vidas: a de ser totalmente bloqueada pelo gelo. Em uma aventura épica, ela também se tornou a primeira mulher a completar o período de invernagem sozinha no Ártico.
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Era julho de 2023 quando Tamara zarpou da França a bordo do seu veleiro, o Sardinha II, rumo à Groenlândia. Foram 20 dias e mais de 3.000 milhas náuticas superadas até chegar ao inabitado fiorde de Quitermiunnguit, em Disko Bay, uma região extremamente remota na costa oeste da Groelândia, onde Tamara viveria os meses seguintes cercada pelo mar congelado.
Nesta travessia, ela também se tornou a primeira mulher brasileira — e também a mais jovem navegadora do país — a cruzar o Círculo Polar Ártico em solitário, outro feito pioneiro em sua curta trajetória, mas que desta vez marcaria o início da maior aventura de sua vida.
Durante a invernagem no Ártico, Tamara enfrentou temperaturas de até -40°C, sobreviveu a uma queda no mar congelado e aprendeu a lidar com as intermináveis noites de inverno. Foram três meses sem ver o brilho do sol e outros quatro sem contato com humanos.
Por outro lado, a jovem desbravadora brasileira também pôde redescobrir alguns simples prazeres da vida outdoor, como as caminhadas, por exemplo, sempre silenciosas em meio a uma das regiões mais inóspitas do Planeta.
“Eu não era especialmente adepta da caminhada”, conta Tamara, direto de Ilulissat, em entrevista à Go Outside. “Mas eram os momentos que me faziam mais feliz”, relembra a velejadora, que apelidou essas escapadas de ‘passeios’. “Passear era minha prioridade. O prazer de andar, de ir para onde a gente quiser, apenas com as nossas pernas. Isso te permite conhecer o lugar em uma outra escala, é uma outra percepção do espaço”, destaca a exploradora.
Quando a neve e o clima permitiam, as caminhadas eram feitas a pé, mas também com o auxílio de esquis em dias mais extremos. A paisagem incluía praias congeladas, rastros de raposas, gaivotas e icebergs aprisionados pelo gelo. Mas os passeios de Tamara iam além da contemplação: eram também uma questão de sobrevivência.
“A minha rotina acontecia principalmente em função da água e da transformação dela”, relembra Tamara, que tinha a neve derretida como sua principal fonte e às vezes precisava caminhar pelo menos meia hora em busca dela. “Meu maior problema não era quando o clima esfriava, era quando esquentava. As fontes de água derretiam, então tinha que ir mais longe buscar o gelo”, relata a brasileira, destacando a dura tarefa de escalar icebergs.
“Eu ia até os icebergs carregando um balde, escalava ele pra quebrar os pedacinhos de gelo, colocava tudo em um balde e depois voltava arrastando”, detalha a exploradora, que iniciou sua preparação para a invernagem 15 meses antes, em Lorient, cidade onde reside na França.
Expedição pioneira
Enfrentar a natureza implacável do Ártico em seu estado mais brutal exige uma preparação meticulosa. Desde pequena, Tamara se encantava com as histórias do pai, Amyr Klink, e de outros grandes exploradores desafiando mares congelados. Amyr foi o primeiro brasileiro a invernar solo na Antártica, na famosa expedição de 1989 a bordo do veleiro Paratii.
Mas outros navegadores com experiência em invernagens também inspiraram e aconselharam Tamara durante a preparação: Jerome e Sally Poncet, Guirec Soudée, France Pinczon du Sel e Eric Brossier foram alguns deles.
Antes de Tamara, não havia nenhum registro de invernagem feminina solo no Ártico. Por isso, foi necessário preparar mente e corpo para lidar com todos os imprevistos possíveis, como sintomas causados pelo frio e pelo isolamento total.
A parte física incluiu corrida, exercícios de remo ergômetro e sessões de reforço muscular. Já a questão mental foi trabalhada com a psicóloga Nair Pontes, especialista em medicina comportamental, que conduziu uma preparação intensa com sessões de EMDR, uma técnica utilizada para reprocessar traumas, controlar a ansiedade, melhorar a respiração e ajudar a tomar boas decisões.
Já o barco Sardinha II, com apenas 10,5 metros de comprimento, precisou ser totalmente adaptado para a navegação em águas frias. O veleiro dos trópicos teve equipamentos e espaço ajustados para aumentar sua autonomia, com estoque de comida e combustível planejados para aguentar um ano sem reabastecimento.
Além disso, Tamara desmontou e remontou diversos equipamentos do Sardinha II para ser capaz de consertá-los sozinha em caso de problema. O veleiro também ganhou uma “dog house”, um posto de navegação no convés protegido do vento e das ondas.
Tamara ainda apendeu procedimentos de primeiros socorros que poderiam ser necessários a bordo, como costurar a própria pele.
O estoque de comida incluía: grãos (arroz, feijão, grão de bico, lentilha); féculas (macarrão de trigo ou feijão, pão feito no barco, tapioca); sementes (girassol, papoula, chia, abóbora); conservas de legumes e frutas desidratadas (uva, damasco, ameixa, tâmara).
Para evitar a produção de lixo Tamara pescou, e as raposas se encarregavam de limpar os restos de peixe. “Entendi no começo da viagem que quanto menos recursos eu consumisse, mais tempo eu teria. Isso em todos os sentidos. Quanto menos energia elétrica eu usasse, menos eu precisaria ficar dependente do gerador eólico e dos ventos. Quanto menos água eu desperdiçasse, lavando louça, por exemplo, mais tempo eu teria para passear, porque eu gastaria menos tempo indo buscar neve para lavar a louça”, afirma Tamara, que era vegetariana há 15 anos, mas precisou readequar sua alimentação no Ártico.
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“Eu entendi que aqui não fazia sentido ser vegetariana. Não tinha o mesmo sentido comer as comidas que eu comia no Brasil, que nascem da terra ou caem de árvores. Aqui a comida dos humanos é comida de outros mamíferos e aves também. Ela corre, nada, pula, foge… Não nasce comida embaixo da neve. Então eu decidi pescar”, diz Tamara, que além das raposas teve a companhia de animais como focas, jubartes, gaivotas, andorinhas, patos e gansos.
Com a comunicação limitada com o mundo exterior, Tamara apoiava-se nos livros, música e no seu diário de bordo. O contato com família e amigos era raro, feito apenas por e-mail através do sistema Iridium. Muitas vezes, Tamara também “cortou o fio”, ou seja, resolveu desligar o equipamento por dias – e até semanas – para ficar totalmente imersa na sua invernagem.
“Eu escolhi ter apenas texto, essa comunicação limitada, porque eu queria poder me separar da relação do tempo da cidade. E o que mais me marcou foi que quando eu não escrevia mais para outras pessoas, não fazia mais o processo mental de me colocar no lugar dela para traduzir o contexto e transformar aquelas experiências vividas em palavras. Não me comunicar me fazia, de certa forma, criar memórias sem palavras. E essas memórias, por mais que elas sejam potentes, são bem difíceis de acessar quando a gente aprendeu a lembrar delas através das palavras”, reflete.
Anestesiada pelo gelo
Ursos, avalanches, naufrágio, hipotermia, congelamento e intoxicação por monóxido de carbono são alguns dos potenciais perigos que Tamara enfrentaria durante sua invernagem. Isso sem contar sintomas de loucura e depressão, que podem pipocar após longas noites geladas de inverno.
A navegadora conseguiu vencer essas tormentas, mas também sentiu na pele que prazer e perigo frequentemente andam juntos no Ártico. Durante um dos seus passeios, a brasileira caiu na água ao pisar no gelo fino e passou por uma experiência quase fatal.
“Eu sabia desde o começo que o maior perigo seria cair no mar congelado. Porque se você cai na água não é certo que vai conseguir escalar o gelo e voltar. Ele pode continuar quebrando e quebrando… Então sabia que isso me daria poucas chances de sobreviver”, conta Tamara, que estava a cerca de 1,5 km do barco, à procura de uma passagem firme para voltar, quando foi surpreendida por uma borda fina, caindo na água sob uma temperatura de -26°C.
“Estava com as pernas molhadas e sabia que uma hora ia congelar. Então tinha que achar um jeito de voltar para o barco e ligar o aquecedor o mais rápido possível, tirar aquelas roupas molhadas. Ali não sentia mais dor, medo, aflição, frio. Mesmo que estivesse -26°C, eu só estava concentrada em sobreviver. Era quase uma espécie de anestesia”, afirma.
Ao chegar em segurança, Tamara ficou um tempo sem vontade de sair do barco, uma mistura de medo e apreciação por estar viva e fortalecida.
“Era quase como se estivesse numa espécie de sonolência. Isso durou três dias. Ficava dentro do barco o máximo possível. Foi quando cheguei à conclusão de que se eu ficasse presa ali para sempre, não teria nenhum sentido o que eu estava vivendo”, conta.
Levantar âncora
Após meses isolada na vasta paisagem do Ártico, Tamara segue em Disko Bay, mas agora livre para navegar entre os fiordes e retomando aos poucos o contato com a civilização. Tudo enquanto acompanha a chegada do verão no Polo Norte. Inspirada em navegadoras contemporâneas como Djemila Tassin, Mathilde de Giclais, Hermine Le Mintier, Amélie Grassi e Marie Gendron, ela vem se consolidando como um marco inspirador para mulheres em todo o mundo.
Em 2020, Tamara completou a sua primeira grande travessia solo: as 1.000 milhas náuticas da Noruega à França, no mar do Norte. No ano seguinte, tornou-se a mais jovem brasileira a fazer a travessia do Atlântico em solitário: 5.000 milhas náuticas, da França ao Brasil. Agora, com a travessia do Círculo Polar Ártico e a invernagem ela espera mais uma vez mudar o imaginário do que as mulheres (mas não apenas elas, ressalta) são capazes de alcançar.
“Gostaria que todas as mulheres pudessem ter essa oportunidade de descobrir, com toda liberdade, o que é ser você mesma”, afirma Tamara. “Quando a gente vive oito meses sem ser mulher, nem homem, sem precisar ter gênero, a gente muda as nossas próprias crenças sobre as nossas limitações, nossas capacidades”, diz a exploradora.
“Antes de vir para o fiorde eu conheci alguns caçadores de foca que me aconselharam fortemente dizendo ‘você não vai conseguir, o inverno é muito perigoso, muito hostil’. Ou ‘se você tiver um problema, vai ter que ser resgatada e nem sempre isso é possível, porque o clima pode ficar muito ruim’”, complementa.
“Tentaram fortemente fazer discursos protetores, mas é o que as mulheres sempre ouvem. Não importa onde a gente vá, se somos mulheres ou estamos sozinhas, somos automaticamente associadas à fraqueza. Somos vistas como incompletas, sem autonomia”, argumenta.
Ao vencer a escuridão gélida do Ártico e sair ainda mais fortalecida, Tamara provou que os caçadores de foca — e a sociedade em geral — não poderiam estar mais errados. Sua invernagem solitária não foi só um testemunho da capacidade das mulheres de superar limites, mas também uma nova abordagem de encontrar beleza e propósito nas circunstâncias mais adversas da vida.
“Eu mudei a minha definição de felicidade e o entendimento de qual é o nosso propósito na vida”, finaliza Tamara, que agora sabe mais do que nunca que a verdadeira felicidade pode morar num simples passeio no parque.